31 de maio de 2011


Le Lit de la Vierge (1969)
Philippe Garrel

Le Lit de la Vierge é, antes de mais, o completo antagónico quer de Les amants réguliers quer de La frontiere de l'aube, é coisa tão arcaica, tão experimentalista, hipnótica, alucinante, tão perto de Pasolini ou de Straub, objecto de influência a tanto Lynch (Ereserhead à cabeça), Cronenberg na fase do Stereo. Há tanto onirismo ali, tanta pressão na desmitificação do mito, tanta preocupação no raccord, na teatralidade das acções, dos movimentos, tanta moral atrás daquilo tudo. Le Lit de la Vierge é um filme sombrio, negro, um autêntico pesadelo psicadélico ou coisa assim, é tudo desmesuradamente enigmático, simbólico, hiper-melancólico, mordaz, coisa obcecada pela representação, pela veracidade da representação, sei lá, peculiar mas belo, muito belo. Filme de planos, de mestre a filmar, completamente de mestre, incrivelmente atraente, duma beleza ímpar, com movimentos de câmara brutais, o enquadramento, o ritmo, o tempo dos planos e das acções, os planos e a paisagem, a profundidade de campo, está lá tudo nesta obra-prima. É entrar no mundo de Garrel, naquele mundo alegórico, descrente, erosivo, brutal mas ao mesmo tempo tão lírico. Le Lit de la Vierge mais que bíblico é apocalíptico, brutalmente apocalíptico, é no fim de contas a constatação de que o ser humano é feio, é cruel, é uma condenação, um julgamento, sei lá…acima de tudo um lamento.
I believe my point of view on the Christian myth is quite clear in The Virgin’s Bed. It is a non-violent parable in which Zouzou incarnates both Mary and Mary Magdalene while Pierre Clémenti incarnates a discouraged Christ who throws down his arms in face of world cruelty. In spite of its allegorical nature, the film contains a denunciation of the police repression of 1968, which was generally well understood by viewers at the time.
Philippe Garrel

Philippe Garrel provides himself with a genuine liturgy of bodies, he restores them to a secret ceremony whose only characters are Mary, Joseph and the Child. This is hardly a pious cinema, even though it is a cinema of revelation. If the ceremony is secret, it is precisely because Garrel takes the three characters 'before' the legend, before they have made a legend or constituted a holy story : the question posed by Godard "What did Joseph and Mary say to each other before having the baby ?", not only heralds a project of Godard's but sums up Garrel's experiences. The theatrical hieratism of characters, noticeable in his first films, is uncreasingly focused on a physics of fundamental bodies. What Garrel expresses in cinema is the problem of the three bodies: the man, the woman and the child. The holy story as gesture.
Gilles Deleuze

30 de maio de 2011

L'Enfance nue (1968)
Maurice Pialat

L'Enfance nue é coisa tão pueril mas tão pueril como já há muito tempo não via, breve candura da infância a misturar-se com a rebeldia da mesma, resultado da crueldade do abandono. L'Enfance nue, filme da perda e da reconquista, filme da reconciliação e da resignação, filme da orfandade brutal que explode naquela criança, coisa irascível porque de irascibilidades vive o abandono/orfandade, brutalíssimo mas tão simples tão belo tão real tão desprovido de quaisquer moralismos ou julgamentos. Tudo é sentimento sem lamechice, sem sensacionalismos, sem choradeiras, o olhar sobre a reacção infantil à nova condição, filme da vida e dos laços afectuosos, a compreensão do ser, da mágoa e da inadaptação de quem foi abandonado. Pialat, cineasta da forma, da simplicidade da temática, dos filmes crus e vivos, cineasta do olhar sobre o ser humano que influenciou tanto cineasta contemporâneo (Dumont, Dardenne…). Nada de segundas intenções, de ambiguidades, de mensagens sociais e outras merdas (embora o filme inicie com uns breves planos duma manifestação), é tudo tão directo no que quer mostrar. L'Enfance nue, primeira longa-metragem de Pialat é uma obra-prima sobre a crueldade da orfandade e a inadaptação ou a recusa infantil ao novo meio social, à(s) nova(s) família(s), é sobre a violência do crescimento precoce do órfão, é sobre a conduta rebelde de quem carrega consigo toda a mágoa do mundo pelo abandono maternal e paternal, é sobre a descoberta do amor naquele casal de idosos. Grandioso.

29 de maio de 2011

A Corte do Norte (2008)
João Botelho

João Botelho, cineasta do tudo ou nada, faz com A Corte do Norte aquilo que Oliveira faria, ou seja, ali é tudo Botelho a revisitar Oliveira. Não conheço o romance de Agustina Bessa-Luís, por isso não posso falar de hipotéticas fidelidades ou não à obra literária, nem me interessa discutir isso. Como obra cinematográfica A Corte do Norte é uma tragédia obscura, filme de época, que pisa terrenos Oliveirescos (e Viscontianos) onde o rigor estético dos décors, do guarda-roupa e da narrativa imperam. História de uma mulher ou o olhar sobre essa mulher e o que a sua conduta deixou de herança. Coisa romanesca, barroca, duma beleza hipnótica, tão perto do realismo como da fantasia ou do onirismo, atenção desmesurada aos planos e à sua disposição pictórica, o tal rigor da fotografia, da representação da teatralidade. A mise-en-scène.

28 de maio de 2011

La frontiere de l'aube (2008)
Philippe Garrel

Só o termos novamente como protagonista Louis Garrel, filho do cineasta, aparência dividida entre o intelectual e o libertino, individuo à procura do seu lugar no mundo, o que fazer com a vida e coisa e tal; só isso nos faz lembrar Les amants réguliers (que embora venha desmitificar algo continua a ser um objecto fresco e sedutor). La frontiere de l'aube é melhor, brinca com a mente, coisa obsessiva, melancólica, brutal, física, negra, trágica, física com a câmara com o espaço, afinidades realistas ou hiper-realistas.

História do amor não de amor, erros e lamentações, arrependimentos e consciencializações, psicologismos. É isto, mais não seja porque acima de qualquer destas coisas está o ser humano e as suas decisões, escolhas, sonhos, desilusões, amores… é tudo o que o Homem é, os seus medos, os seus fantasmas, as suas instabilidades emocionais, as consequências da acção humana, as descobertas sentimentais e emocionais, o amor. É tudo tão forçosamente psicológico, emocional, brutal e desprovido de quaisquer maneirismos e facilitismos. Tragédia da vulnerabilidade. É a força do plano e do seu enquadramento, do campo/contra-campo e do raccord, da mise-en-scène e da beleza do preto e branco de Garrel (a cinematografia de William Lubtchansky sobretudo).

27 de maio de 2011

À Nos Amours (1983)
Maurice Pialat

Aquilo que Pialat filma é qualquer coisa de tão visceral, tão agressivamente brutalmente e vigorosamente sexual, sensual, leviano, descoberta de novos sentidos, procura constante e sem fé da felicidade, do amor, coisa maldita, forçada ao fracasso, expiação de qualquer coisa, incapacidade de amar ou de encontrar o amor. À Nos Amours, filme de uma tal magnitude que arranca tudo às vísceras, moral e eticamente abalado e a abalar tudo e todos, disfunção familiar, violência quer física quer psicológica, intensidade frenética, adolescência à deriva inserida num meio inadaptado…

Pialat filma tudo simples e directamente, na procura do realismo, da crueza, na explosão iminente dos histerismos uivantes daquela família disfuncional e desmembrada a pouco e pouco, coisa física entre os personagens, demasiado físico em tudo o que rodeia aquela história duma adolescente que perde a virgindade por um acaso num acto irreflectido de revolta. Revoltosa passará a ser, para com o mundo mas sobretudo para com a mãe, semblante oposto ao seu, espírito rebelde e autónomo, a candura que se perdeu e que resultou nessa índole agridoce para com a vida, disposta a tudo porque para ela tudo vale e nada é suficiente, refazer da vida na sombra do erro, do primeiro erro, o primeiro amor que será sempre o único porque o restante percurso é fruto do seu erro, é a procura desse amor em outros tantos amores que ela sabe nunca ser igual ao primeiro, porque do primeiro resta a candura - amor de criança - coisa pueril, antagonismo de tudo o resto em que ela mergulha. À Nos Amours, filme da descoberta.

26 de maio de 2011

E está tudo dito...

Trinta minutos, um pouco menos ou um pouco mais, bastaram para perceber como se varre e se cose o tão badalado épico de Oliver Assayas, "Carlos". Uma estrela pop intercontinental do terrorismo, quebrador de fronteiras, entre o burguês e o desejo de rebeldia (muito a ver com tanta gente dos dias de hoje, mérito aqui, sem dúvida), narcisista um pouco para o fanfarrão, um sedutor e também alguém que acredita em causas justiçeiras e na força das acções subterrâneas e individualistas contra o imenso e o esmagador. Assayas, que em certos filmes pequenos de facto se interessou pelo frágil e pelo intimista, como por aí se disse, fragilidade e intimismo dos meios e da carne, questão formal e humana, coisa de olhar e acolher, tentar perceber o que a velocidade e a adicção fazem aos corpos e à mente, os pontos perdidos no cosmos, nessa massa ou nessa sujeira, becos e labirintos, ar e suspenção de respiração, etc...


Certo que apesar da longuíssima duração tudo dá ainda a ilusão do estar junto e justo ao que filma, relação bem selada, complexa, essa câmara que não sobe às alturas nem se fixa muito nem abre muito e parece fazer gato-sapato de todas as linguagens, signos, reconheçimentos e admirações do género em que se filia ao mesmo tempo que o parece querer vilipendiar. Ao lado do género e contra o género. Atirando às feras o homem e colando-lhe a câmara. Muito se perdeu agora, daí que pareça ilógico mas com toda a certeza lógico, neste panorama, que desta vez tanta gente se tenha rendido ao que antes cuspiu ou ao que nem sequer passou cartão. Também outro tipo de sentido ou de reacção, a excitação obviamente, fora da escuridão e das aventuras e descobertas da infância, ainda sem ter chegado à acalmia e apaziguamento do tempo que tanto passou , esse ver em paz e prespectiva, tanto ou nada saber, nada e tudo esperar, levar coisas para a frente...estamos na idade da excitação e da masturbação ou do deslumbramento como prova a forma nojenta como a câmara de Assayas capta a tal estrela terrorista ou de como os jornalistas falam do que vêem.

Câmara que não proteje, antes expõe e fere.

Daqui, impossivél agora aceitar o tom (anti) pictórico das superficies dos planos que se confundem com as imagens chanel dos painéis publicitários de rua e assim realçam o que de tão belo e esteticamente aprazível um daqueles seres humanos pode conter. Nem o bom, nem o mau, opaco, claro – só a fotografia e o "belo" traço. Impossivél aceitar esse bailado pornográfico câmara-corpo-meio-corpos, essa dança que entre as bombas, as passareles, o álcool, o fumo e as fodas eleva Carlos ao vedetismo e à moda, nessa vontade de não lidar com o concreto que está em causa, com as coisas e a razão/desrazão, a história, saber-se posicionar, justiça languiana, a tal relação não viciada pela pré-definição e pelo determinismo, logo uma falsidade, ou seja, tudo o que Assayas deixou de parte em direcção ao grande tema e ao barulho elevado da escrita, numa abstracção e numa fragmentação que ao invés do palpável e do suor, o que lhe permitiria ali chegar bem como à fantasmagoria, se fica pelo empolamento cortes-de-segundo faux raccords vestidos com o som pop-punk das passagens que pretendem engatar speed, os discuros ou engates que já outra coisa não podem ser do que preparações para o espéctaculo do audiovisual e da multimédia que tanto percorre os ossos do filme e assim vicia a história e o mundo. Não falemos de politica...pior das idades para isso, a adolescência... Mete impressão ainda o falso enquadramento pelo feito documental que exclui qualquer pulsão de verdade e de abismo que a assunção da ficção que se assume poderia desiminar. Contradição. Longe, bem longe de Bresson - dos modelos homens que fatalizavam cada quadro, espessura de cada parede - mestre confesso. Vibrações e sensorial húmido, racional e ready-made como as músicas coladas e separadas das imagens que se desvaneçem à partida, ossos sem carne. Que agora os jornais e revistas e festivais cubram isto de elogios, nada mais em conformidade com a imposição e regime das imagens e dos formatos que pingam e escorrem e se metarmofoseiam uns sobre os outros e nos outros para se tornarem coisa nenhuma. Televisão no cinema nos ecrãs pc nos laptops ou em último ou primeiro caso no telemóvel ou na playstation. Híbrido como muitos híbridos feitos para ficarem bem nas capas das caras revistas de paris e nos seus textos versando essa contaminação das imagens e dos formatos. "Carlos", coisa nenhuma.

Coisa nenhuma e curiosamente muito próximo do academismo que Assayas criticava nos anos 80, e continua a criticar, a um certo cinema americano, Spielberg sobretudo, só que ainda mais paradoxal e irónico, porque se Spielberg e outros sairam de um classissismo, ou mesmo de um neo-classissimo, Assayas e os outros tantos Assayas, ao filiarem-se nessa destruição, uma espécie de promessa e de pequenez e de "indie" seja para qual coisa for, criam assim uma moda e algo evidentemente próximo da linha de montagem onde tudo ou tanta coisa parecem iguais. Retrocesso.

25 de maio de 2011

Jardins en Automne (2006)
Otar Iosseliani

Jardins en Automne é coisa burlesca, romanesca, comédia satírica, coisa mordaz e seca, aglutinador de estórias, de sátiras, de seres humanos, de visões da própria realidade. Tudo é claro, clarões de luz e resplandecentes, coisa tão sóbria quanto ébrio é aquele ex-ministro que às origens retorna, coisa tão mordaz mas tão mordaz ao ser humano seja rico ou pobre, capitalista ou proletário, tudo é burlesco em Jardins en Automne, tudo é constantemente a procura da volúpia que já acontecera em Adieu, Plancher des Vaches!, o sentido da vida ou a busca da felicidade nos ricos e nos pobres, a sátira ao ser humano acima de tudo.

24 de maio de 2011

Drums Along The Mohawk (1939)
John Ford

Ford O cineasta, o lírico dos líricos, patriótico dos patrióticos, poeta das imagens e dos sentidos, cineasta da história da América em toda a sua plenitude, toda a sua monumentalidade, toda a sua grandeza. Drums Along The Mohawk é um portento de filme, coisa irascível na monstruosidade da negrura do cinema e da história da humanidade, coisa que brota tão dentro mas tão dentro da visceralidade do homem, que do sonho do homem foi capaz de triunfar, do nascimento duma nação que luta e resiste por um pedaço de terra (legitimamente ou não face aos índios isso já é outra história), glorificação dessa nação. Drums Along The Mohawk é o filme mais americano que pode haver, mais glorificante, mais apaixonado, mais exaltante, mais patriótico que pode haver no cinema americano. A exaltação da Revolução Americana, o nascimento de uma nação, é isso que é Drums Along The Mohawk, o brotar ou o irromper duma nação das trevas e do fogo e da animalização duma guerra, a conquista do território, o primeiro americano. Ford o maior dos maiores, o contador de histórias, o sentimentalista dos pequenos gestos, o glorificador da sua pátria. Ford O cineasta americano.
Uma lista nada recomendável:

Titanic
Inception
Slumdog Millionaire
Kingdom of Heaven
Eternal Sunshine of the Spotless Mind
Armageddon
Cold Mountain
Brokeback Mountain
Con Air
Avatar

19 de maio de 2011

Il Dono (2003)
Michelangelo Frammartino

E enquanto espero (e desespero) por ver Le Quattro Volte (grande curiosidade da minha parte), vê-se Il Dono, primeiro filme de Frammartino, objecto tão lúcido quanto a consciência da gente daquela aldeia despovoada que espera o fim. É por isso um filme da espera, filme de velhos como velha é aquela aldeia condenada ao abandono (como tantas outras) pelas grandes metrópoles. Il Dono é um olhar seco, lento…desmesuradamente lento, lúcido e desprovido de qualquer emoção ou sensibilização sobre a velhice e principalmente sobre a espera do fim. Que fim? O fim desses velhos, o fim daquela aldeia enquanto local habitado e sobretudo trabalhado, a alusão ao fim da agricultura (que ainda vai sendo, para aqueles velhos, a única fonte de subsistência e de ocupação). Mas Il Dono é mais do que esse filme da espera da morte e do fim disso tudo, é um olhar isento, observador, rudimentar e simples do quotidiano e dos fantasmas daqueles velhos que resultam desse quotidiano e sobretudo do despovoamento, é o registo de memórias daqueles locais que filma, uma certa nostalgia dos tempos de outrora em que a desertificação nem sequer era imaginada, é filmar o que resta, a decadência do que resta, é filmar o nada porque para o nada caminha aquele local. Il Dono funde-se numa oscilação entre o olhar documental e o ficcional, prende-se (literalmente…não há movimentos de câmara) à visão decadente da despovoação (e há tantos planos a aludirem/metaforizar a isso) e segue um velho (o avô do cineasta) e uma puta (que se julga possuída pelo demónio) que vai alimentando os desejos sexuais dos habitantes e dos visitantes. E o filme é isso, o quotidiano daquela gente, o lento esmorecer daquele povoamento e dos seus habitantes, a letargia daquela gente que já nada espera da vida. Aqui não há bandas sonoras, há ruídos há sons há a natureza, aqui não há diálogos ou os que há são de fundo e quase nem os conseguimos ouvir nem interessam para nada, aqui não há um plot e uma narrativa à sua volta, há a procura de filmar o Homem ou o objecto ou o local, o momento, as acções, o realismo acima de qualquer coisa. Há ali tanta influência em Bartas, na lentidão, nos planos, na procura da expressividade, no olhar, na despreocupação da beleza imagética…e lembrei-me tanto de Alonso e do seu rudimentarismo, de Benning e da sua procura no registo. Il Dono é um grande grande filme mas é cinema para pouca gente.
Ao ver isto é caso para perguntar ao palhacinho Se não fosses parvinho que é que gostavas de ser?

18 de maio de 2011

Men in War é muito mais que um simples filme de guerra, é o abarcar de toda a complexidade moral da guerra, é a força da brutalidade da guerra, coisa feroz, seca e desmesuradamente animalesca, é a veemência do confronto entre o humano e o desumano, a irracionalidade da guerra e a forma como transforma o ser humano. Men in War é sobretudo um filme psicológico, brutal no seu realismo e no tal psicologismo que afecta aqueles homens e as suas decisões, ambiguidade da guerra mas mais importante do ser humano, a resignação da barbaridade da guerra. Anti-guerra acima de todas as coisas.

17 de maio de 2011

Овсянки - Ovsyanki (2010)
Aleksei Fedorchenko

A Ovsyanki atribua-se-lhe toda a melancolia do mundo, mais que qualquer dor de perda o que reina ali é a melancolia aliada à frieza própria dos russos. Mitos e ritos a misturarem-se com o presente e com as memórias do passado, saudade e lamentos dos que foram e um estado inexorável de melancolia que atravessa o filme inteiro naquela viagem ambígua em direcção ao ritual de incineração do cadáver. Mas a frieza que existe, coisa que sempre me pareceu inerente aos russos (e aos nórdicos), talvez pela neve que quase sempre está lá e que os molda, aqui é qualquer coisa também ambígua. Porque Ovsyanki não é um filme frio por mais neve que tenha, por mais metódicos que aquele homem que acabou de perder a mulher e o narrador que o acompanha (a voz-off é dele) sejam nas suas acções. Não, Ovsyanki é um filme cinzento (e não há melhor cor para a melancolia), singelo, lírico, repleto de movimentos de câmara estrondosos a fazer lembrar Tarr, enquadramentos e planos-sequência monumentais, alguns momentos na procura dos olhares e das expressões na impressão da dor, uma fotografia lindíssima, contemplativo muito contemplativo, naturalista, sempre no caminho de Tarkovsky e Dreyer. No final percebemos que é uma fábula, que é acima de qualquer coisa um filme sobre o amor ou sobre a resistência do amor à morte. Melodrama e romantismo sem lamechices, sem choradeiras e as merdas do costume. Um filme belo.

16 de maio de 2011

The Informer (1935)
John Ford

The Informer de John Ford são fluxos de sombras de implacabilidade a rasgar o ecrã uma e outra e outra vez incessantemente, qualquer coisa tão feroz e tão brutal quanto a culpa da traição que remói e remói a consciência do homem. Tudo é arrancado às trevas que as traz com ela (com a culpa) para naquela noite, negra de tão negra quanto a morte e quanto a névoa tão cerrada que paira pela cidade e que turva qualquer visão que possa resplandecer na multidão, assombrar o mundo e aquele homem que por um impulso que veio da fome e, acima de qualquer coisa, do amor, trai o melhor amigo condenando-o assim ao destino fatídico a que assistimos. Sobre ele cairá toda a culpa do mundo e sobretudo todas as trevas que se possam imaginar, nada de fugacidades ou de implicações fugidias, tudo é tão interminável quanto a certeza da morte, tudo é tão perpetuamente terrífico na certeza do destino que foi e daquele que virá, abrupto e irrompido tanto da traição quanto da morte, nas sombras da bruma (que poucas vezes tão bem exprimiu as trevas do mundo) cerrada que amaldiçoa aquela noite maldita naquele submundo duma Dublin a ferro e fogo com o jugo inglês. Não admira portanto, em tempo de sublevações e resistências obscuras, a desmesurada magnitude que a palavra traição assume. Gypo, o judas da história, não só traiu o amigo como traiu a causa, tem, por isso, de ser forçosamente eliminado. E é ele próprio, dominado pelo medo e pelo martírio da culpa, que aos poucos e poucos (e com a ajuda do álcool) se vai “entregando” (ou denunciando) à organização. Grandioso.
E enquanto anda tudo com altas expectativas para o novo filme do Malick (não que eu não as tenha também), as minhas vão principalmente para o Le gamin au vélo dos Dardenne e, claro, para o novo do Dumont...e o Kaurismäki também lá anda!

15 de maio de 2011

Schastye Moe (2010)
Sergei Loznitsa

Schastye Moe começa com um cadáver a ser lançado numa cova e a ser coberto por cimento e terra. Pouco depois somos levados a seguir o homem, o camionista que irá mergulhar (parafraseando Vasco Câmara) "nas profundezas da História, da mentalidade e da sociedade russas". E no trajecto, no primeiro trajecto deste road movie frio e brutal (e não há palavra melhor para qualificar o filme), desde o que parece ser uma estação ferroviária até sua casa onde vai buscar a merenda, ouvimos dentro do veículo uma música que (a julgar pela tradução inglesa) nos diz tudo sobre o filme e principalmente sobre a tal Rússia profunda: How to atone for mother’s tears? We will not return here anymore So many of us fell in this long campaign Our work remains unfinished, but… We are going away, going… Farewell, mountains, you know best What price we paid here What enemy we didn’t conquer What friends we lost here Friend, empty the bottle into three glasses That’s how many survived of out brave unit A third toast, even the wind falls silent on the slopes We are going away, going… Farewell, mountains, you know best What we had, what we gave away Our hopes and our sorrows…Está aí tudo sobre o que é Schastye Moe ou My Joy, os lamentos e a desolação do povo russo (da “mãe Rússia” sobretudo), os fantasmas da guerra e do comunismo (a História), a mentalidade, as profundezas dum povo tão gélido quanto a neve que os envolve. Da História virá logo depois do primeiro encontro com aqueles dois polícias (engraçado como Loznitsa vai lá ter, àquele “checkpoint” policial, no final) na estória do velho (que o salvará mais tarde) onde abruptamente passamos do presente para o passado (segunda guerra mundial) para nos contar como ele (aquele velho) perdeu a sua identidade (e a noiva). E começamos a perceber que Schastye Moe será filme de perda, até porque a canção já assim o augurava. Mas muito mais há ainda para escrever, e mais ainda para perder (que sobretudo se alastra à identidade nacional), mesmo que tudo aquilo, aquele presente que se confunde com o passado, seja mesmo isso de repercussões do passado que estranhamente se volta uma e outra e outra vez a repetir, o não aprender com os erros de que o cineasta falava numa entrevista a VC, e por isso o velho é quem o recolhe do meio da neve e o leva para casa, por isso o reencontro final com o lugar e os polícias como se tudo aquilo fosse um círculo vicioso (palavras do cineasta na tal entrevista) aludindo não só à História como à mentalidade e consciência daquela Rússia tão actual como a de à cinquenta anos atrás.

Schastye Moe é uma viagem que se torna alucinatória e assombrosa (de pesadelo) onde a tal Rússia profunda se manifesta. O que encontramos é a recusa nalgum tipo de compaixão como quando aquela garota com aspirações a puta recusa o dinheiro sem ter que foder, porque ela sabe que aquela Rússia é desprovida de humanismo ou uma qualquer compaixão e o melhor mesmo é habituar-se à brutalidade desta, realismo exacerbado ou visceral que reifica por ali, é a perversão e o abuso de poder da polícia, a implacabilidade daquela noite em que Georgy se perde como tantas outras noites que marca a tal História russa que de violências em violências, resultados de tantos abusos de poder e de discriminações sociais, acabam por seguir sempre o seu rumo (o da violência) sem que nada em contrário o possam fazer, noite essa que determinará o curso daquela viagem, o destino daquele homem, brutalidade das brutalidades que resulta na perda da memória quer do homem quer da sociedade, coisa que os condena a viver naquela desolação animalesca em que o frio e a escuridão da noite rouba qualquer sentido de calor humano ou de fraternização. Mais tarde, noutro flashback, voltamos à História e aí veremos como se tratavam aqueles que acreditavam que ceder aos alemães era um mal menor (mais palavras do cineasta na tal entrevista), episódio dum dos vagabundos que naquela noite se cruzam com Georgy, filho da violência ao qual os outros chamam de mudo, as tais repercussões do passado que está tão embrenhado no presente e nos quais, na verdade, não há distinção, a mentalidade violenta que tarda a desaparecer.

Schastye Moe é uma obra-prima brutal, filme da perda duma identidade à muito perdida, a da própria Rússia que vive desolada e imersa num caos social e mental de perversão, violência e corrupção onde o passado controla o presente e assombra o futuro. Monumental, brutal, implacável…
Les amants réguliers (2005)
Philippe Garrel

Les amants réguliers é coisa de megalómano sem rumo, talvez um furioso em desavença com o passado ou na amargura do presente, não sei, Garrel parece querer desacreditar toda a mística e todo o prestígio do movimento estudantil do Maio de 68, mete-los nas antípodas, faz um filme lento e lento e lento sem que nos leve a algum lado, a alguma ilação que não seja a que tiramos ao fim de pouco mais de meia-hora de filme, arrasta-se e volta-se a arrastar como se não houvesse amanhã, esforça-se por denegrir a imagem do mítico mês e ano revolucionário, resume tudo (ou aquele tudo que parece ser auto-biográfico) numa questão burguesa de obstinações artísticas e amorosas/sexuais que se mergulham num mar de drogas (ópio acima de tudo) em detrimento do espírito revolucionário e intelectual que identifica a revolução estudantil. Banaliza, desmitifica, desvaloriza tudo, toda uma geração – a sua geração – coisa de rebelde infantilizado, chega à conclusão de que afinal o amor é mais importante que os ideais e acima dessas duas está o dinheiro, o sucesso, a carreira profissional, o futuro, é isso que Garrel nos diz, que aquilo tudo eram balelas, todos os ideais, que no final somos todos materialistas, vendidos, cheios de ideais falsos ou efémeros, opacos, coisas que se banalizam ao primeiro contacto com o capitalismo, com o poder da burguesia essa praga social que controla o mundo. É isso que Garrel faz, desvirtua tudo numa fotografia a preto e branco estilizada, foge a qualquer subversão ou sublevação jovial, imerge na letargia daquela geração, etc…

13 de maio de 2011

Sicilia! (1998)
Jean-Marie Straub & Danièle Huillet

Sicilia! de Straub e Huillet, pouco mais de uma hora de declamações e conformações ou demarcações do espaço e do tempo, do diálogo e do tom operático que reifica Sicilia!. Não é documentário, é ficção dentro da realidade ou realidade dentro da ficção, coisa seca e organizada ou simétrica na posição dos actores e de tudo o que os rodeia, do espaço, no décor, na découpage, na mise-en-scène, nos movimentos, nos olhares, na condução narrativa e fílmica, no ritmo, no tom e nos espaços dos diálogos (o declamar). É tudo uma questão de colocação, de como enquadrar, de como declamar e entoar a obra de Elio Vittorini, de como filmar aqueles espaços e aqueles momentos, aquela gente, aquela história e as histórias por detrás da história, a luz e a sombra, o campo e o contracampo. Acima de tudo, liberdade cinematográfica e sua inteligência. Aconselha-se a leitura deste magnífico texto.

Essential Killing é daqueles filmes que sabem a pouco. Porquê? Porque está tão perto mas tão perto de ser tão grande, um grande filme, e pelos momentos espalhados pela hora e vinte e cinco minutos do filme onde Skolimowski envereda por alguns clichés (comer formigas e outras merdas do género), pelos flashbacks que me parecem desnecessários, por uma certa ausência de crueza, de frieza e de brutalidade que me parece faltar ali tanto na imagem como na narrativa. Por isso sabe a pouco, porque podia ser tão grandioso mas tão grandioso…
Thriller onde os diálogos são escassos porque não fazem falta nenhuma, o argumento é das coisas mais simples que há porque da simplicidade nascem as obras mais poderosas, seguimos o homem em busca de algo que ele sabe que não vai encontrar, a salvação (porque ele está perdido no meio do nada onde nem sequer sabe onde fica esse nada, perseguido pelo exército americano, ferido e cada vez mais esfomeado e enregelado pela neve), e seguimos esse homem na sua luta permanente pela sobrevivência. Ali não há bons são todos maus, a merda é toda a mesma, só muda a nacionalidade, só muda o poder dos homens (nada mais verdadeiro). Essential Killing é um bom filme, mas tinha potencial para ser tão melhor!

11 de maio de 2011

Sergeant York (1941)
Howard Hawks

Sergeant York é o mais Fordiano filme de Hawks, o mais humano, o mais patriótico, o mais singelo e o mais lírico dos filmes de Hawks. Sergeant York habita ou passeia-se pelo coração/alma do cinema clássico norte-americano/hollywoodiano, mas mesmo aí, em terrenos tão comuns a Hawks, Sergeant York é das coisas mais puras e mais belas jamais feitas no cinema americano. A história de um herói nascido da terra que à terra (e pela terra mas não só - já lá iremos) anseia voltar (durante o seu percurso na guerra), já que é pela terra que York tudo faz (e a terra assume um dos mais altos valores, assim como a família (sobretudo a figura maternal), coisa que só fortifica o seu universo Fordiano (ao filme claro) - e há tanto mas tanto de The Grapes of Wrath aqui, o lirismo de Young Mr. Lincoln), e é neste tudo (e noutros) que Hawks não só glorifica (mais Ford) Sergeant York como lhe atribui a sua dimensão bíblica. Lembremo-nos do momento em que York, embriagado e enraivecido com Nate Tomkins que lhe dera a sua palavra e depois não a cumprira, cavalgando em plena noite tempestuosa em direcção à terra deste, com a sua arma e encolerizado e disposto a fazer justiça com as próprias mãos, lembremo-nos desse momento em que os trovões (e o pastor Pile já lhe dissera antes que era o diabo que falava por ele, que o atentava e o possuía, e se há coisa que figure as trevas e a sua tenebrosidade é o trovejar) ou clarões caem como mais tarde na guerra bombas cairão e farão tombar companheiros, anacronismo da simbologia, coisa pueril que lavra a redenção que daquele trovoar ou daquelas trevas irá emergir. A luz, York vê a luz como mais tarde a voltará a ver para conseguir distinguir a fé do patriotismo, lirismo não só das imagens como da estória, ideais ou valores morais a bradar mais alto que qualquer sentido de vingança ou de irascibilidades, caminho de integridades (que é o mesmo que dizer caminho de Capra). Nesse momento York renasce das trevas (não só das daquele momento como daquelas em que estava imergido) e o que faz? Vai à igreja. Sim, vai à igreja e dá-se a remissão depois da redenção, o começo duma nova vida, um novo York (e tudo começou por causa de Gracie, pelo seu amor por ela). Depois virá a guerra e nela se solidificará o homem com a sua fé e o seu patriotismo para no fim (ou perto do fim) se erguer a sua integridade moral e ética. Sergeant York, filme das trevas e das sombras (as sombras de Hawks) dessas trevas, negrura que de tão negra como daquele momento antes da ida à igreja se desvanece para nunca mais voltar (nem mesmo na guerra), filme da terra, do amor à terra e da família. Monumental.