7 de dezembro de 2019








O que Bing faz em Dead Souls é quase como o que Lanzmann fez em Shoah, a mesma “visita” aos locais e a mesma captação do testemunho da sobrevivência… é no vislumbre fantasmático do passado e do tormento do genocídio vivido que vivem essas duas obras monstruosas e assombrosas, na paciente e directa observação do relato/testemunho do sobrevivente, na crueza da matéria, na asperidade do espaço e da imagem, no realismo do objecto e na negação do romancismo.

Dead Souls, nas suas oito horas e tal de duração, transmuta o absurdismo lancinante e desumano da fase mais vigorosa do comunismo chinês naquelas palavras daqueles sobreviventes, nas expressões, nos olhares, nos passos e nos lugares. Tudo tão seco e tão directo quanto possível. São aqueles rostos e aqueles corpos arrasados pelo tempo e vilipendiados por um regime totalitário, opressivo e impiedoso que transcendem o espaço e engrandecem o relato da descida ao inferno e à mais pura e elementar forma de primitivismo a que foram lançados. São aqueles rostos e olhares vazios, absortos pela fome e pela desumanidade do regime, aqueles corpos afrouxados e prescritos que aceitam ser filmados e descrever o passado e o horror (sobre)vivido que tornam Dead Souls um dos melhores filmes das ultimas décadas.

Dead Souls é, de resto, mais uma incursão documental como a de quase todos os seus filmes, sempre na fuga do convencionalismo cinematográfico ao estilo referente, sempre companheiro da simplicidade e da crueza, directo e sem rodeios, sem entrelinhas, sem facilitismos e embelezamentos… sem romancismo aliado… apenas o relato daquelas almas vilipendiadas, consumidas pela injustiça e pelo absurdo a que foram condenados (muitos apenas por expressarem a sua opinião), a morte sempre presente, a luta pela vida… A desumanidade é exposta nos relatos e nas expressões, no registo da passagem do tempo, naqueles sobreviventes que “a cada passo” vão desaparecendo (são doze anos de filmagens e de entrevistas), naquelas ossadas deixadas na província de Gansu a exprimirem reminiscências do horror vivido, na simples ideia de “reeducação” e o que isso implica, naqueles movimentos decrépitos e imputados pela dor, na viagem por aqueles lugares onde o vento vai, gradualmente, levando o que os comunistas deixaram. Grandioso.

4 de dezembro de 2019

a registar:

(1932) L’Atlantide - G. W. Pabst
(2018) Ahlat Agaci - Nuri Bilge Ceylan
(2013) Blue Jasmine - Woody Allen
(2014) Magic in the Moonlight - Woody Allen
(2015) Irrational Man - Woody Allen
(2019) Variações - João Maia
(1971) Lawman - Michael Winner
(1978) Convoy - Sam Peckinpah
(1968) Hang 'Em High - Ted Post
(1958) The Left Handed Gun - Arthur Penn
(2019) Joker - Todd Phillips
(1961) The Last Sunset - Robert Aldrich
(1955) Man Without a Star - King Vidor
(2018) The Old Man & the Gun - David Lowery
(2015) Creed - Ryan Coogler
(2015) Cinzas e Brasas - Manuel Mozos
(2017) Jeannette, L’enfance de Jeanne D’Arc - Bruno Dumont
(2016) Ma’ Rosa - Brillante Mendoza
(2013) Alberi - Michelangelo Frammartino
(2018) Donbass - Sergei Loznitsa
(2012) Post Tenebras Lux - Carlos Reygadas
(2015) As Mil e uma Noites - Volume 1, “O Inquieto” - Miguel Gomes
(2015) As Mil e uma Noites - Volume 2, “O Desolado” - Miguel Gomes
(2015) As Mil e uma Noites - Volume 3, “O Encantado” - Miguel Gomes
(2013) Redemption - Miguel Gomes
(2015) A Glória de Fazer Cinema em Portugal - Manuel Mozos
(1991) Um Passo, Outro Passo e Depois... - Manuel Mozos
(2017) Ramiro - Manuel Mozos
(2013) Miss Violence - Alexandros Avranas
(2018) Dead Souls - Wang Bing
(2019) Ad Astra - James Gray
(2015) L’aquarium et la nation - Jean-Marie Straub


revisões:

(1995) Braveheart - Mel Gibson
(1959) Rio Bravo - Howard Hawks
(1968) C'era una volta il West - Sergio Leone
(1984) Once Upon a Time in America - Sergio Leone
(1956) The Searchers - John Ford
(1960) The Unforgiven - John Huston
(2002) Gangs of New York - Martin Scorsese
(1993) Manhattan Murder Mystery - Woody Allen
(1972) Roma - Federico Fellini
(1995) Heat - Michael Mann
(2004) Collateral - Michael Mann
(1997) L.A. Confidential - Curtis Hanson
(1970) The Ballad of Cable Hogue - Sam Peckinpah
(1997) Cop Land - James Mangold 

13 de agosto de 2019

a registar:

(2014) Os Maias - Cenas da Vida Romântica - João Botelho
(1969) Law and Order - Frederick Wiseman
(1972) Sleuth - Joseph L. Mankiewicz
(1973) The Way We Were - Sydney Pollack
(2017) Mrs. Fang - Wang Bing
(1959) Der Tiger von Eschnapur - Fritz Lang
(1948) Thunderhoof - Phil Karlson
(2018) The Mule - Clint Eastwood
(2017) Krotkaya - Sergey Loznitsa
(1988) Flores Amargas - Margarida Gil
(2012) Tabu - Miguel Gomes
(2018) Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos - João Salaviza, Renée Nader Messora
(2004) Tout un hiver sans feu - Greg Zglinski
(2010) Filme do Desassossego - João Botelho
(2017) Peregrinação - João Botelho
(1986) Der rosenkönig - Werner Schroëter
(2018) Monrovia, Indiana - Frederick Wiseman
(2018) Manbiki kazoku - Hirokazu Koreeda
(1956) Aparajito - Satyajit Ray
(1959) Apur Sansar - Satyajit Ray
(1964) Charulata - Satyajit Ray
(1983) El Sur - Víctor Erice
(2015) Mission: Impossible – Rogue Nation - Christopher McQuarrie
(1931) Seas Beneath - John Ford
(1965) Arizona Raiders - William Witney


revisões:

(1988) Die Hard - John McTiernan
(2007) Chacun son Cinéma - vários
(1988) Kárhozat - Béla Tarr
(1984) Paris, Texas - Wim Wenders
(1965) Pierrot le fou - Jean-Luc Godard
(1989) Lock Up - John Flynn
(1981) Francisca - Manoel de Oliveira
(1987) Sous le soleil de Satan - Maurice Pialat
(1939) The Wizard of Oz - Victor Fleming
(2008) Gran Torino - Clint Eastwood (segunda visualização que mudou totalmente, para melhor, a minha percepção do filme. dos últimos grande filmes de Eastwood.)
(1962) Hatari! - Howard Hawks

12 de junho de 2019


Seis meses após um incêndio devastar o celeiro da sua quinta e com ele levar a filha de cinco anos, Jean e Laure lutam, cada um à sua maneira, para enfrentar a realidade e as marcas que a perda deixou. Laure está alienada, amortecida no seu “mundo” como forma de fugir ao que aconteceu… Jean é quem tenta reconstruir o que se perdeu, retomar a vida e o funcionamento da quinta, é ele quem tenta “curar” as feridas dos dois, ultrapassar a dor e continuar a vida…

O filme de estreia do polaco Greg Zglinski, premiado inclusivamente em Veneza, é uma comovente e sensível história de amor e do poder do amor (quando é verdadeiro). Ainda que incorra em alguns clichés (que me parecem até incontornáveis para a própria história em questão), “Tout un hiver sans feu” de 2004, caminha e emerge na sobriedade e na lucidez dum cinema realista e existencialista preocupado com os conflitos interiores das suas personagens. Ali luta-se pela reconstrução e pela cura da dor da perda. Nisso, Zglinski faz um filme bastante intimista, onde progressivamente a implosão da dor se vai manifestando exteriormente por “vias” diferentes nos dois personagens desta história de perda e de reconstrução familiar.

O título do filme é a metáfora inicial para aquilo que ao longo de uma hora e pouco se atravessa na nossa vista, o gelo do inverno é o mesmo que se instalou naqueles dois corações após a perda da filha, e, esse inverno sem fogo do título é todo o processo que aquelas duas almas imersas na dor da perda vão atravessar na reconstrução e recuperação desse fogo, o amor (e porque “o amor é fogo que arde sem se ver”…). No final fica-nos a convicção de que o amor é o antídoto para a dor e que quando se ama verdadeiramente não há terceiros que possam extinguir esse amor! Agradável surpresa este “Tout un hiver sans feu”.

27 de maio de 2019


O mais interessante de ver em Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos é um certo “progressismo” naquela tribo indígena, os krahô. Vemos isso na disparidade (ainda que não seja muito acentuada) entre as gerações, entre o “velho” e o “novo”, principalmente na forma de vestir, como que uma vaticinação duma certa perda de identidade (ainda que lenta) em que o próprio percurso do personagem com a sua fuga (ou tentativa desta) ao seu destino xamânico assim o atesta ou augura. Acho que Salaviza e Renée fogem, o quanto podem fugir, à etnografia que um filme como Chuva… poderia exigir, a “comunhão” entre espectador/personagem, que desarma qualquer distância entre eles e nós, envolve-se numa ficção que rompe a “linha” documental que à partida possa parecer primordial, isto porque a inevitabilidade do realismo e de tudo o que isso acarreta (ritos, crenças e costumes, linguagem) está lá, mas a envolvência estende-se ao tal progressismo e a uma certa fusão cultural “profetizada” ou, talvez, apenas ansiada. Para o superar envolvemo-nos na ficção “do que não é” mas que carrega consigo “tudo o que é”, ou seja, ainda que a história seja ficcionada todos os passos de Ihjãc são e transportam os “krahô” e o que eles são (e num dos diálogos na cidade entre Ihjãc e uma enfermeira acentua-se isso quando cada um diz que o outro não sabe ou não conhece o mundo dele). Realismo ficcionado.

Compreendo a comparação com o cinema de Weerasethakul mas parece-me que a similaridade é escassa, ainda que aquele início prometedor duma espiritualidade (coisa inerente aos povos indígenas) assim o fizesse transparecer, ainda que o “destino xamânico” de Ihjãc a isso aluda, acho que Salaviza e Renée distanciam-se absolutamente disso para se embrenharem numa procura sensorial de momentos, espaços, rituais e processos - o naturalismo, os sons, a imagem… como também me parece mais próximo de qualquer Ke-Jia do que a qualquer Weerasethakul. Rouch e Flaherty eram outra coisa, mais pura e rudimentar!

8 de abril de 2019


A Krotkaya (Uma Mulher Doce - 2017), atribua-se-lhe toda a desolação do mundo (neste caso daquela Rússia caótica e decadente que já em Schastye Moe Loznitsa tinha filmado - e no seu todo, Krotkaya é um filme-irmão da primeira ficção do bielorusso). Talvez por isso, esta viagem angustiante e degradante que aquela mulher faz até a uma Sibéria - que apenas perpetua um “estado” caótico, desolador e absurdo dum país (e neste registo Krotkaya até me pareceu um filme mais político e corrosivo que Schastye Moe, ou pelo menos mais transparente) - na incessante procura de respostas a uma devolução dum pacote enviado ao seu marido preso numa cadeia na Sibéria, Uma Mulher Doce caia um pouco na repetição ou na incidência do tema (e parece-me sobretudo que tudo aquilo já tinha sido dito em Schastye Moe).

Ainda assim, Krotkaya serve muito bem ao que vem, caminhando desde o início num registo kafkiano e numa tragicidade sempre à espreita que no final, de forma alegórica e satírica, a abraça (literalmente) naquilo que me parece ser mais uma metáfora da condenação ou da falta de compaixão (ou até dalguma resignação face ao caos social e à desolação duma Rússia imersa na corrupção e na ausência de valores éticos e morais). Aí, nesse final alegórico que envolve toda a dimensão crítica que percorre todo o filme, Krotkaya grita de forma surrealista e absurdista (e não só no final como em todo o filme, o universo kafkiano vem-nos constantemente à memória) aquilo que já em Schastye Moe nos tinha transmitido, não só a desolação e uma certa perda de identidade, mas também a condenação duma Rússia tão negra, tão perversa e tão corrupta onde até quem defende os direitos humanos (tolhida à partida de quaisquer capacidades na luta e na reivindicação desses direitos) aconselha a ter cuidado e a pensar muito bem em apresentar queixa.

Assim, Krotkaya é (assim como o era já Schastye Moe) uma viagem alucinante onde a candura é exposta e gradualmente perdida (e o final, ainda que alegórico, onírico e risível, é a brutalidade dessa aniquilação da candura e da consagração da tragicidade) e onde a feiura dum país imerso na alienação, na desolação, na decadência e podridão da ausência de moralidades (e de respeito e de tolerância e de compaixão…) vaticina o futuro duma Rússia onde a alma está condenada e dispersa na escuridão e na sua implacabilidade. O arrebatamento deu-se com Schastye Moe e, por isso, com Krotkaya dá-se uma desconsolação!

1 de fevereiro de 2019


a registar:

(2009) Le roi de l'évasion - Alain Guiraudie
(2001) Il Mestiere delle Armi - Ermanno Olmi
(2000) Les glaneurs et la glaneuse - Agnès Varda
(1987) Assa - Sergey Solovev
(1978) Blue Collar - Paul Schrader
(2017) First Reformed - Paul Schrader
(1962) David and Lisa - Frank Perry
(1980) Poznavaya belyy svet - Kira Muratova
(1998) He Got Game - Spike Lee
(1941) Hellzapoppin - Henry Potter
(1986) Pisma myortvogo cheloveka - Konstantin Lopushanskiy
(1973) Sanatorium pod Klepsydra - Wojciech J. Has
(2016) Ang babaeng humayo - Lav Diaz
(2015) Bone Tomahawk - S. Craig Zahler [o mais fraquinho de todos, mas ainda assim merecedor de registro]
(1955) The Tall Men - Raoul Walsh
(1945) Dakota - Joseph Kane
(1970) Bloody Mama - Roger Corman
(1942) Reap the wild wind - Cecil B. DeMille
(1943) A Lady takes a chance - William A. Seiter
(1958) Unruhige Nacht - Falk Harnack
(1955) The Kentuckian - Burt Lancaster
(1950) American Guerrilla in the Philippines - Fritz Lang
(1946) The Killers - Robert Siodmack
(1948) The Three Musketeers - George Sidney
(1941) Swamp Water - Jean Renoir
(1966) Erogotoshi-tachi yori: Jinruigaku nyûmon - Shôhei Imamura
(1980) Larisa - Elem Klimov
(1979) Steiner, Das Eisern Kreuz, 2 Teil - Andrew V. McLaglen
(1954) The Hight and the Mighty - William A. Wellman
(2001) Akai hashi no shita no nurui mizu - Shôhei Imamura
(1973) Scarecrow - Jerry Schatzberg
(2017) Der Hauptmann - Robert Schwentke
(1949) On the Town - Stanley Donen, Gene Kelly
(1955) Man with a gun - Richard Wilson
(1967) Custer of the West - Robert Siodmak
(2011) Arirang - Kim Ki-Duk
(2006) Ober - Alex van Warmerdam
(1939) Stanley and Livingstone - Henry King, Otto Brower

revisões:

(1919) Herr Arnes pengar - Mauritz Stiller
(1935) Mutiny On The Bounty - Frank Lloyd
(1993) Schindler’s List - Steven Spielberg [no limiar do interesse em destacar/registar]
(1945) The Bells of St. Mary’s - Leo McCarey
(1957) Men in War - Anthony Mann
(2014) Mr. Turner - Mike Leigh

29 de janeiro de 2019


"(...) E se nesse filme de 1970 tal plano corta a meio o coração e a alma de quem a tiver, o plano também último de um filme que Jerry Schatzberg realizou em 1973 pode ser ainda mais agudo, aflito. “Scarecrow” vai dos abertos horizontes de todos os sonhos e possibilidade até à tragédia consumada, dos possíveis recomeços e das dádivas do american dream até ao melodrama desossado. Mas como estamos em território e ofício orgulhosamente clássico, mesmo que implantados nessa profana década, só se pode começar a falar destas coisas pelo principio, antes de uma bifurcação oferecida aos que numa ordem e num tempo cruel do cada-um-por-si tiveram o descaramento de sorrir.
O descaramento da inocência. Da bela e altiva inocência. Reza assim: no meio do nada, do alto de uma colina da américa profundíssima desce Max a pé, no seu depois inconfundível estilo fanfarrão. Cá nos baixos vai-se deparar com um tipo bem mais novo do que ele, Francis, o tal alegre mas também tímido, a quem irá até ao fim tratar por Lion. Até ao fim, é justo que se reforce. A situação é tão caricata como a de Cary Crant nos milheirais de Hitchcock no célebre filme de 1959. Logo aí as personalidades de cada um e as maneiras de ir ao mundo se vão marcar. Max acaba de sair da cadeia meia dúzia de anos depois de entrar, meio trapalhão, com resposta sempre pronta para o que quer que seja, desconfiado, “filho da puta” como se define com orgulho, dos que não confiam em ninguém nem aparentemente amam nada, sempre com a violência de resguardo. Também fica birrento como uma criança quando se zanga. Lion pode ser à primeira vista o negativo deste, divertido mesmo que por vezes se note a diversão como abafador da solidão e do medo, dos que gracejam defronte aos problemas e que se apresentam com esperança e humor e amor mesmo que saibam que uma tempestade se aproxima. Ao contrário de Max costuma fugir dos obstáculos e das grandes decisões e, como o Robert do filme de Rafelson, entregou-se à marinha e deu corda às sapatilhas de rabo entre as pernas aquando de um filho e de responsabilidades prometidas. Max vai gostar quase logo de Lion pois este ofereceu-lhe o seu último fosforo, e aí nesse revolucionário vento e nessa revolucionária poeira de oeste deserto vão nascer partilhas e uma amizade sem limites. Seguidamente comem até rebentarem e fazem-se à vida pois a morte é certa. Ambos têm em comum a vagabundagem e o gosto pelo risco, mesmo que riscos diferentes. Puros drifters.

Longe dos grandes centros se vão manter e nos percursos clandestinos entre Denver, Detroit e a tão almejada Pittsburghg as mudanças e os cenários serão então mais sentimentais do que físicos. Serão transformadores como transformador e decisivo vai ser o conselho do jovem ao mais velho quando este quer sempre partir para a porrada. Ensina-lhe a ter a mesma reação que segundo ele os corvos têm diante dos espantalhos que protegem os campos plantados, que em vez de se assustarem, riem-se, e assim deixam os autores dos espantalhos em paz. “Não tens de lhes bater se os fizeres rir”. É Max que imediatamente se rirá de modo trocista do conselho, mas algo ficará. E se à custa de mais aprendizagens nunca suficientes os dois vão passando realmente coisas um ao outro, uma das coisas que mais me desarma neste filme para mim absolutamente desarmante e assombroso, é a forma como estes dois tipos fogem a qualquer arquétipo que desta década se poderia supor. Max, o velho que poderia representar o antiquado studio system é o mais selvagem, o anárquico, sem dúvida o idiossincrático, iconoclasta, ou seja, um Dennis Hopper ou um Francis Ford Coppola. Lion, na flor da idade e com sangue na guelra apresenta-se mais manhoso, protetor de nobres valores, humanista sincero, um Walsh ou um Lubitsch. À tão propalada fuga para a frente na década de 70 do cinema americano, Schatzberg vai tudo pôr em causa e tudo complexizar. Max só quer concretizar o desejo de uma vida, abrir um negócio. Lion embarca como seu sócio e antes disso só quer ver o filho e a mulher que abandonou num impulso. Depois vem aquilo que na vida sempre vem – relações entrevistas e prometidas, voltes faces, encarrilhamentos, inesperados. A vida e o tempo que consistem em não parar, modifica, e as coisas entre ambos começam a confundir-se e mesmo a reverter-se lentamente. Max passa do aterrador e do ridículo, como define Lion, só até ao ridículo do espantalho; assim como Lion, que um pouco na contramão tanto riu, tanto banalizou dores e nefastos, já não consegue fazer o luto quando ele surge verdadeiro e assim indispensável, daí até ao baque e a uma possível demência por atrofio dos valores é um passo tão rápido como o final, sem pinga de sangue. Pobre Lion, que não percebeu que a diferença entre os da sua raça terráquea, ou pelo menos ele próprio e os da sua boa natureza, em relação aos espantalhos tem a ver com a carne que esses simulacros não têm. Carne carne, como veias veias e ossos ossos. Sangue. Do que ferve ou congela. Organismo convulso verdadeiramente oposto à palha e ao oco dos tais que assustam ou fazem rir aves. E sobretudo, sobretudo o coração. A parte fulcral que a modernidade mais do que moderna da "sociedade perfeita" fez esquecer, ridicularizar. A parte feminina do homem, tal como nos disse Melville em relação aos demais bons que rareiam por esta terra, como esse inesquecível Billy Budd, com certeza da mesma arvore genológica de F. L. Delbuchi. Há gente que muda efectivamente, como Max. Outros que de tão anestesiados e rotinados são há muito incapazes de rir, como a mulher que o mata em infame escorregadela. E felizmente os tragicamente bons, esses tão raros, que como definiu G. Sand a propósito do já referido Chopin, são de uma organização demasiado perfeita e esquisita a este mundo grosseiro para que possam viver aí demasiado tempo. A beleza de uma pessoa que um mundo destes teve obrigatoriamente de castrar. Tal e qual como outras esferas se deleitaram na trucidação e abafamentos de belezas como as que por esta época Michael Cimino, outro desta casta, ousava erguer. Desse sorriso eterno e alegria na vida ao baque e à maca e à sedação por drogas, esse término de um caminho que era ainda uma aurora, tiro no coração de uma humanidade que transforma em vegetal quem por ela vive verdadeiramente - perfeito desenlace e perfeita imagem de uma sociedade corrompida e por tantos a ideal. (...)"

José Oliveira, daqui