14 de março de 2021




 

(…)

 

“A visão que Ozu tem sobre a vida não é, efectivamente, reconfortante. Em Verão Prematuro, uma personagem comenta que a vida é um jogo de azar: “A felicidade é só uma esperança – uma esperança mais ou menos como um sonho, como esperar que vais ganhar nas corridas de cavalos.” Este conceito é explorado em O Gosto do Arroz com Chá Verde. Uma personagem queixa-se acerca do pachinko, o eternamente popular jogo das pequenas esferas que caem ao acaso. “É mau que um jogo destes seja tão popular – arrependo-me de ter aberto este lugar… Convidará à decadência, destruirá a moral da nação.” A sua atracção é mais tarde explicada por um amigo: “O pachinko transforma-se numa paixão… Permite sentires-te isolado numa multidão e gozar uma espécie de solidão. Tu e a bola fundem-se num só e estás completamente sozinho. Uma solidão feliz. E, então, percebes que a bola é, em si própria, uma espécie de ciclo. E o jogo transforma-se num símbolo da própria vida.”

                Se a vida é um sonho, uma esperança, um jogo, então nós, os jogadores, não temos sobre ela muito poder. Uma das razões é porque a vida é assim mesmo; outra é porque os seres humanos não são, na verdade, criaturas tão especiais como julgam ser. Em Ervas Flutuantes um dos actores denuncia um plano para roubar os fundos e abandonar a trupe: “Nunca… a única diferença entre nós, humanos, e os animais é que não somos ingratos,” uma distinção que ele próprio apaga quando rouba os outros e foge. Em O Gosto do Arroz com Chá Verde, uma das personagens diz iradamente a outra: “Olha, Setsuko, não somos cães ou galinhas, é verdade… e tu podes pensar que somos seres elevados ou o que o valha, mas aos olhos de deus somos todos meros animais.” Embora Ozu não se demore demasiado nestes picos (a frase imediatamente a seguir é: “Gostas desta massa?”), sabemos qual a sua opinião.

                Outra das razões porque não podemos mudar o mundo é porque o mundo, ele próprio, está sempre em mudança. Em Fim de Verão, Manbei diz à sua amante: “E não nos teríamos encontrado naquele dia se eu tivesse apanhado o primeiro eléctrico.” “É verdade,” concorda ela. “Destinados a encontrar-nos.” “ E depois não nos encontramos durante dezanove anos.” “E encontrarmo-nos num lugar daqueles.” Ele recorda: “uma corrida de bicicletas. Bem, a vida é um rio que corre, sempre em transformação.” “O nosso mundo mudou mesmo,” concorda ela. “É perturbante,” diz ele, ao que ela acrescenta: “Tenho saudades dos velhos tempos. Lembras-te da loja do chá?” “E da noite em que fomos ver a neve, e da caça aos pirilampos – aquela noite de luar.” “Claro que me lembro disso,” diz ela. “Essa foi a noite em que fizeste de mim uma mulher.” O tema do mundo em transformação é enunciado recorrentemente nos filmes de Ozu. Em Viagem a Tóquio, por exemplo, a mãe diz, ao ver o filho: “Estou tão contente por ter vivido para ver este dia. O mundo mudou tanto.” Ao que os filhos respondem: “Mas a mãe não mudou nada.”

                É assim que o mundo funciona, os velhos já não mudam, os jovens continuam a mudar, tal como os pais desse filme descobrem. No entanto, os pais nunca perdem a esperança de que as suas próprias vidas encontrem alguma verificação na dos seus filhos. A felicidade que buscam é uma miragem. A maior parte dos filmes de Ozu é acerca de pais e filhos, ambos sofrendo diferentes graus de desilusão. Como diz Shuichi em Primavera Tardia: “Criá-los e depois lá vão eles. Se eles não se casam, preocupas-te, e se se casam sentes-te decepcionado.” Em o Gosto do Saké, Hirayama e Kawai estão à conversa. “Sabes,” diz o primeiro, “no fim de contas, um filho é melhor. As raparigas não servem para nada. “ Kawai responde: “Rapaz ou rapariga, é tudo a mesma coisa. Vão-se todos embora, mais tarde ou mais cedo.” Como diz o pai em Viagem a Tóquio, referindo-se ao filho que perdeu na guerra: “Perder um filho é difícil; mas viver com eles também não é fácil. Esta desilusão é parte integrante da condição humana, como descobrem muitas das personagens de Ozu ao longo dos filmes. Começam por esperar que tudo corra bem, que as coisas aconteçam como desejam; acabam frequentemente consolando-se com o facto de, pelo menos, não terem sofrido tanto como outras pessoas que conhecem.

                Em Viagem a Tóquio, a mãe vira-se finalmente para o pai e diz: “Alguns avós parecem gostar mais dos seus netos do que dos seus filhos – e tu?” “Eu gosto mais dos meus filhos, mas surpreendo-me com o quanto eles mudam,” responde ele. Um pouco mais tarde, ela arrisca: “Os filhos não cumprem as nossas expectativas.” “Pensemos,” diz ele, “que os nossos acabaram por ser melhores do que a maioria. Estão seguramente acima da média.” “Temos sorte,” diz ela. “Acho que sim,” conclui ele. Em Verão Prematuro, chega-se a uma conclusão semelhante. Uma das personagens diz: “A nossa família é toda diferente, mas saímo-nos melhor do que a maioria – caramba, fizemos montes de coisas juntos. Não devíamos ser demasiado exigentes. Fomos mesmo felizes.” É claro que não foram tão felizes como ele sugere; ele próprio já se deu conta da inevitabilidade da cisão da família.

                Ozu mostra nos seus filmes tanto a natural relutância dos velhos em largarem os jovens como a natural impaciência dos jovens em se verem livres dos velhos. Não está, no entanto, interessado em comparar as virtudes de uns com os defeitos dos outros. O que Ozu relata, ao invés, é a impossibilidade de acordo. Os críticos – sobretudo os jovens japoneses de há umas décadas – que tomavam Ozu por antiquado e reaccionário estavam claramente a interpretar mal os seus filmes. E os outros críticos, que se queixavam de que ele havia perdido interesse pelos problemas sociais, estavam obviamente a restringir a sua definição aos problemas políticos, já que não há maior problema social do que os inevitáveis desentendimentos entre gerações, a indubitável injustiça inerente a qualquer sociedade, e a busca por segurança num mundo sujeito exclusivamente à mudança.

                E o fim está sempre presente, fitando-nos nos olhos. Quando lhe perguntam porque parece estar tão triste, Kawai, em O Gosto do Saké, diz: “Solitário, triste – no fim de contas, um homem está só.” Uma pessoa está só e, como nota uma das personagens perto do final de Fim de Verão, “A vida é muito curta, não é?” A conclusão de muitos dos filmes de Ozu – entre eles, Primavera Tardia, Viagem a Tóquio, O Fim do Outono – sublinha este destino comum. É, na verdade, tão comum que a sua aparição no cinema, como na literatura, é sempre surpreendente. A solidão e a morte são, em certo sentido, factos tao banais da experiência humana que apenas um grande artista, um Tolstoi, um Dickens, um Ozu, podem emprestar-lhes alguma da urgência e tristeza que todos por vezes experimentamos. Ozu fá-lo através de uma deliberada descrição dos factos, da sua plena exibição, e – o que surpreende em alguém tão comummente descrito como defensor da tradição – através do confronto. Ozu é dos poucos artistas cujas personagens se encontram conscientes das grandes leis imutáveis que governam as suas vidas.

                O filho de Eu Nasci, mas... diz que se toda a vida adulta é como a do seu pai, então não quer crescer. Em O Fim do Outono, uma das raparigas fica desiludida porque uma amiga não lhe acena. “E éramos tão boas amigas, ainda por cima,” diz ela. “Sim,” responde a outra, “mas o tempo passa e os amigos afastam-se.” A primeira rapariga fica impressionada pela resposta. “Os amigos são só isto? Os homens são assim, também? Bem, se a amizade não significa mais do que isto, então penso que é revoltante.” Mais à frente no filme, a filha queixa-se dos seus problemas. “Mas é assim que a vida é,” diz-lhe a mãe, uma frase ouvida vezes sem conta nos filmes de Ozu, uma asserção que não condena nem aprova. Acrescenta a mãe: “A vida de crescido não é tão bonita como possas pensar. Portanto vê se páras de ser uma criança.” Na belíssima e comovente cena do final de Viagem a Tóquio, Noriko, a cunhada, está a falar com Kyoko, a irmã mais nova. Esta última queixa-se. “Até estranhos teriam tido mais consideração,” diz ela dos seus irmãos e irmãs. “Olha, Kyoko,” diz Noriko, “com a tua idade eu também pensava assim, mas os filhos começam a afastar-se dos pais…; todos temos de cuidar da nossa própria vida.” Kyoko olha para ela: “A sério? Bem, eu não vou ser assim. Isso seria demasiado cruel.” “E é,” concorda Noriko. “Mas os filhos ficam assim – gradualmente. E, então, tu…” “Eu posso ficar assim?” pergunta Kyoko. “Contra a minha vontade?” Ela faz uma pausa, e depois diz: “Não é decepcionante, a vida?” Noriko sorri, um sorriso belo, gracioso, conformado, e responde: “Sim, é.”

                Se as personagens de Ozu conseguem aceitar a vida como uma esperança, um jogo, ou uma decepção, é porque olham conscientemente para a vida dessa forma. Até os homens e mulheres tolos dos filmes de Ozu são invulgarmente astutos relativamente ao seu próprio carácter, e os sábios são geralmente profundos conhecedores de si próprios; sabem que tipo de pessoas são, quais as suas limitações, a que ambições podem aspirar. É este grau incomum de autoconsciência, o qual obviamente não impede comportamentos absurdos e ilógicos, que permite às personagens de Ozu lançarem um olhar irónico sobre a vida. São personagens implicadas, mas não enredadas. Esta autoconsciência não conduz ao cinismo (ao contrário das personagens de Ivy Compton-Burnett, que exibem um grau sobrenatural de autoconhecimento) nem à sentimentalidade (como, por vezes, acontece com Tchékhov, onde o autoconhecimento dos indivíduos se aplica apenas às suas limitações). Ao invés, como em Jane Austen, o autoconhecimento leva a um sentido equilibrado da vida e de si próprio, a uma compreensão do mundo e ao nosso lugar no seu seio, e a uma morigerada e tolerante apreciação das nossas capacidades. Neste sentido, Noriko, bem como tantas outras jovens mulheres em Ozu, são como Emma. Ao conhecerem-se a si próprias, podem aspirar ao contentamento.

                É aqui que a moralidade entra nos filmes de Ozu. Ele não afirma que os costumes antigos são melhores, ou que a juventude tem de ter o seu arrojo, ou que vimos ao mundo e deixamo-lo em plena solidão – embora todas estas ideias tenham o seu lugar no universo de Ozu. O que ele afirma, em vez disso, é que dados os constrangimentos inevitáveis, o nosso carácter é formado por uma decisão consciente em enveredar por um caminho ou por outro. Uma pessoa não mergulha em si própria para encontrar um carácter plenamente formado e para depois o reconhecer como seu. Ao contrário, um ser humano singular forma-se a partir dos materiais incipientes da natureza humana, incluindo as suas inconsistências inerentes.

                A moralidade existe para que possamos aceder a um caminho através do labirinto. A moralidade de Ozu, como a da maioria dos asiáticos, é simples. Devemos agir em consonância com a Natureza, porque ao observarmos a nossa relação com os outros seres, apercebemo-nos de que somos apenas parte do mundo natural que nos rodeia, nem seus escravos nem seus soberanos. Cumprimos as leis da nossa civilização até ao ponto em que elas interfiram seriamente com o nosso próprio bem-estar, e então estabelecemos um compromisso. Comportamo-nos como o hóspede que realmente somos neste mundo.

                Estamos de passagem num mundo transitório. Com um sentimento que deve ultrapassar largamente as exigências da boa educação, celebramos gentilmente (mono no aware) as exactas qualidades que ameaçam (e que, por fim, extinguirão) a nossa existência pessoal. Fazemo-lo porque somos parte deste mundo e conhecemos as sias regras, aceitamo-las. Elas são inquestionavelmente correctas.

                Para alcançar esta relação com o mundo, aprendemos a exercer a escolha. Assistimos às personagens dos filmes de Ozu a escolher e a deliberar incessantemente, geralmente conscientes de que é através da escolha que se forma o carácter. Somos o que fazemos, nem mais, nem menos; o somatório total das nossas escolhas, das nossas acções, é o somatório total de nós próprios. Ao exercermos a escolha, mais do que criarmos a individualidade, transcendemo-la. Permanecemos, de certo modo, o individuo que sempre fomos, mas a consciência das alternativas oferece-nos a consciência do facto mais importante da existência humana: não existe realidade interior imutável, não existe personalidade interior, não existe alma. Escolhemos aquilo em que nos transformamos.

                Talvez esta seja a razão pela qual, como já mencionamos, as personagens de Ozu não tenham passado. Podem referir-se a tempos passados, mas nunca os vemos. Ozu é um dos poucos realizadores que nunca usou um flashback durante a sua carreira. O passado de uma pessoa fez o seu trabalho, mas não é interessante. Pode verdadeiramente dizer-se acerca das suas personagens que o que é importante não é o que a vida lhes fez, mas o que elas fazem com o que a vida lhes fez.

                Compreendemos, então, o desagrado e a desconfiança que Ozu nutria por enredos narrativos. O enredo só é possível se aceitarmos que a personagem é um certo tipo de individuo com um certo passado que, desta forma, levará previsivelmente a cabo certo tipo de acções e não outras – que ele é, em resumo, limitado de uma forma que as pessoas nunca são, antes de morrerem. Compreendemos, também, porque é que as inconsistências de carácter são tão importantes para Ozu: são um sintoma de vida porque são reflexos de escolhas. A escolha é importante para todas as personagens de Ozu, como o é para todos nós, e isto é uma das coisas que as torna tão verosímeis. Aquilo que aqui está implicado, deve ser dito, não é nada tão abarcante como o livre-arbítrio absoluto. A liberdade das personagens de Ozu é, desde o princípio, restrita. Elas são, apesar de tudo, seres humanos, o que implica um certo tipo de constrangimentos; têm de viver juntas, outro constrangimento; e fazem parte de uma sociedade que os engloba, outro constrangimento ainda. Não lhes é oferecido um menu à la carte, mas antes a table d’hôte. Tal como para qualquer pessoa, não existem para elas opções ilimitadas, mas a escolha que lhes é apresentada é suficientemente diversificada para poder ser significativa, para permitir que as personagens de Ozu formem o seu próprio carácter.

                E isto é, finalmente, o que os filmes de Ozu nos mostram – personagens que se formam através de escolhas. Vimos as diversas formas pelas quais isto é feito; podemos agora apreciar mais plenamente a enorme dificuldade da tarefa. Ozu e o seu colaborador tinham de trabalhar de forma semelhante à das suas personagens terminadas: ponderando, decidindo, escolhendo. A personagem de Ozu tem apenas as suas próprias preocupações, mas o realizador e o argumentista tinham as preocupações de todas as suas dramatis personae. Não admira que Noda dissesse que mesmo depois de quarenta anos a escrever argumentos, cada novo argumento se apresentasse como um tremendo problema. “Como é que este deveria ser, e como pegar nele – isto era algo que nos fazia suar a ambos.”

                O filme resultaria, ou não, em função do argumento. Era, portanto, natural que Ozu ficasse sempre muito aliviado quando terminava o trabalho. Chishu Ryu recorda:

 

Ozu parecia sempre mais satisfeito quando o argumento estava terminado…; pela altura em que o tinha acabado de escrever – cerca de quatro meses de trabalho – tinha já imaginado todas as imagens de todos os planos, de modo que nunca alterava o argumento depois de chegarmos ao plateau. E o diálogo era de tal forma afinado que ele não nos permitia um único engano. Ele contou-me que ficava muito feliz quando acabava o argumento, mas também me contou, embora na brincadeira, que muitas vezes ficava desapontado ao ver como as suas imagens se desmoronavam assim que começava a trabalhar com os actores. [Ainda assim,] uma vez o filme acabado, mesmo que o desempenho dos actores fosse mau, ele nunca se queixava. Mesmo quando tínhamos a certeza de que ele estava desiludido connosco, assumia toda a responsabilidade como sua e nunca falava disso com os outros. Só isto dá alguma ideia do seu carácter.

 


1958, Higanbana (A Flor do Equinócio)


(…)

 

 

A câmara estacionária de Ozu é outra restrição significativa. Embora Ozu raramente usasse panorâmicas (um dos movimentos de câmara mais comuns no cinema), instalava muitas vezes a sua câmara num charriot para criar travellings ou planos de acompanhamento. Estes podem, como qualquer outro plano, ser usados como pontuação ou comentário. Podem especificamente ser usados para comentar por contraste, habitualmente através de paralelismos alternados; comentar através de afastamento progressivo; por aproximação; e, em menor grau, comentar ao mostrar numa cena mais do que aquilo que é possível com uma câmara estacionária. De forma geral, Ozu faz travellings para mostrar as suas personagens em movimento e para incluir maios elementos do décor no plano, dando assim à cena aquilo que normalmente se considera uma maior sensação de veracidade. Existem muitos exemplos destes nos filmes de Ozu, nomeadamente em O que É que a Senhora Esqueceu (na cena em que se mostram os pés das senhoras enquanto caminham, com o diálogo a correr na banda de som) e em filmes como Os Irmãos Toda; há mais exemplos nos filmes tardios, no entanto, incluindo em Primavera Tardia e Viagem a Tóquio, o último dos quais será provavelmente a cena da caminhada em Enoshima de Primavera Prematura.

Ozu raramente utilizava movimentos de câmara, no entanto, para produzir comentários emocionais sobre a cena. O travelling para diante significa normalmente um aumento de interesse ou de sentimento; para trás significa habitualmente dissociação, e pode ser usado tanto para efeitos trágicos como cómicos. Estes usos são raros no cinema de Ozu. (Embora deva ser mencionado que o único plano de grua que Ozu fez, na penúltima sequência de Verão Prematuro, é usado para estabelecer associações convencionais. As irmãs caminham pelas dunas ao longo da praia de Shonan. A cena começa com uma natureza morta nas dunas, de seguida a câmara eleva-se para revelar as duas raparigas a caminhar em direcção ao mar. Um plano destes significa quase sempre Fim: isto não voltará a acontecer. Neste caso, as duas conversam, sem se preocuparem com um futuro diferente; poderíamos deixá-las aqui, neste momento das suas vidas). Vemos, ao invés, que Ozu faz um amplo uso de travellings paralelos para assinalar contrastes. Em O Coro de Tóquio, por exemplo, são utilizados para comparar e contrastar as vidas dos alunos na escola, dos funcionários de escritório e dos desempregados. Um exemplo famoso e já mencionado acontece em Eu Nasci, mas…, quando um travelling sobre as carteiras dos alunos cansados e aborrecidos corta directamente para um outro semelhante sobre as secretárias dos seus cansados e aborrecidos pais no escritório.

Nos filmes de Ozu, no entanto, estes planos parecem menos convencionais do que em filmes de outros realizadores por serem, mesmo nas suas obras iniciais, relativamente raros. Não fazem parte integrante de um estilo que utilize de forma plena e continuada os recursos da câmara, mas antes de um estilo que era, mesmo no início, deliberadamente restringido. O plano de grua em Verão Prematuro cria uma sensação terminal muito mais forte do que aconteceria noutros filmes porque este plano acontece no meio de planos estáticos, imóveis: é por esta razão que os fundidos e os movimentos de câmara em Ozu possuem um peso que frequentemente se dissipa em filmes que fazem uso continuado destes recursos técnicos.

Resta dizer que os travellings de Ozu não eram particularmente habilidosos. Nas mãos de alguns realizadores (p. ex., Murnau, Ophuls, Mizoguchi), os travellings são milagres de fluidez, extraordinários na sua capacidade para exibir e ocultar. Os travellings de Ozu, no entanto, são blocos de movimento, geralmente demasiado lentos para obterem um efeito máximo, e, de qualquer forma, executados a partir de uma posição de câmara tão baixa que geralmente o efeito obtido é de estranheza. Esta estranheza, no entanto, produz uma sensação de mistério porque sabemos antecipadamente aquilo que um travelling deve significar, conhecemos uma convenção que é tão frequentemente tida por certa que raramente é discutida, e os travellings de Ozu parecem querer significar outra coisa. Temos um exemplo em Verão Prematuro. Enquanto as irmãs avançam nas pontas dos pés, a câmara recua para as manter no centro do enquadramento. Estão num restaurante e vão fazer uma surpresa ao patrão de uma das raparigas. Cortamos para um corredor vazio, com a câmara em travelling para a frente. A assunção natural é a de que estamos agora a ver o que as raparigas vêem, e que elas estão a percorrer o corredor ao encontro de um patrão prestes a ser surpreendido. Nada disso. Estamos de volta a casa, e as raparigas estão já sentadas em volta do hibachi falando acerca da sua saída nocturna. O efeito é discordante e desajustado. Se os planos não se tivessem movido seria mais fácil aceitar esta progressão. No entanto, tratam-se de travellings, que geraram expectativas que Ozu acaba por frustrar – talvez numa atitude lúdica (embora tal seja duvidoso porque Ozu nunca usava a câmara para esse efeito), mas provavelmente apenas por desleixo.

Para um realizador com um estilo tão severo, uma visão tão austera, Ozu, por vezes, era incrivelmente descuidado. Talvez estejamos errados ao fazer equivaler austeridade e aprumo, mas mesmo que tenhamos a benevolência suficiente para considerar esta ideia, deparamos ainda assim com lapsos irresponsáveis nos filmes de Ozu. Na verdade, Ozu era meticuloso no que respeitava ao argumento, rígido relativamente à montagem, severo com os seus actores, mas descontraído no que dizia respeito à rodagem propriamente dita. Não há outra forma de explicar os erros de continuidade presentes nos seus filmes. Em Uma Mulher de Tóquio a chaleira está a borbulhar em plano de fundo, o vapor eleva-se no ar. Ozu corta, sem cerimónias, para um insert da chaleira. Sem vapor, nada ferve, uma chaleira aparentemente fria. De seguida corta de novo para a heroína: não há lapso temporal, estamos na mesma cena. O realizador não se deu conta, pura e simplesmente, de que a chaleira fervia num plano e não fervia no plano seguinte. Nos filmes da fase mais tardia, a continuidade é repetidamente quebrada porque Ozu rearranjava constantemente a posição dos seus adereços em função das diferentes posições de câmara. Nestes casos, no entanto, ele sabia o que estava a fazer, ou pelo menos porque o estava a fazer (por motivos de composição do enquadramento), e se o efeito resulta confuso no ecrã, ele é pelo menos intencional.

Habilidosos ou não, os travellings frequentemente gratuitos de Ozu geravam um sentimento de estranheza e mistério que tornava os seus filmes mais densos. O exemplo mais notável disto ocorre em Primavera Prematura, o seu último filme a fazer uso de travellings. Estamos por diversas vezes num corredor vazio de um edifício de escritórios onde as personagens trabalham. Por vezes a câmara está estacionária, outras vezes move-se lentamente para diante. O efeito é perturbante. Neste mundo desprovido de movimentos de câmara que Ozu estabelece, a mínima deslocação chama atenção para si própria. E neste filme não temos qualquer ideia das razões pelas quais a câmara se mexe. Não há nada a ganhar com o movimento; na verdade, não há nada na cena excepto um corredor vazio. No entanto, graças ao contexto rígido e imóvel em que se insere, este efeito é inquietante, misterioso.

Ao abandonar, um por um, a maior parte dos elementos gramaticais do cinema, Ozu sacrificou obviamente bastantes coisas – na verdade, a maior parte dos recursos expressivos de que os realizadores se servem. O motivo é claro: ele não queria expressar-se de uma forma tão directa. Do mesmo modo que recusava a trama por explorar as personagens ao interpretá-las de modos convencionais, recusava elementos da gramática cinematográfica porque estes expressavam uma opinião normalizada. Note-se, no entanto, que Ozu justificava o seu abandono do travelling de uma forma diferente. A posição de câmara que usava era tão baixa, dizia, que não conseguia encontrar um charriot suficientemente grande para nele fazer caber as pernas abertas do tripé.

Se efectivamente se tratasse de uma escolha entre uma coisa ou outra, era óbvio que a posição de câmara baixa sairia vencedora. Era um elemento constante do estilo de Ozu quase desde os primórdios, e era claramente essencial à sua prática cinematográfica. A apenas um metro do chão, mais ou menos, a câmara via simplesmente aquilo que estava à sua frente. Poucos são os pormenores seleccionados para uma observação mais aproximada (excepção feita às muito importantes naturezas mortas, que discutiremos adiante), e a posição e ângulo da câmara quase nunca mudam. Tudo é observado frontalmente, a partir da posição de uma pessoa ajoelhada no chão à japonesa. Das diferentes explicações apresentadas para a baixa posição de câmara de Ozu, uma das mais engenhosas é a de que ele a descobriu ao fazer filmes sobre crianças. Em O Coro de Tóquio, há uma cena em que vemos os pais apenas da cintura para baixo. Esta cena extremamente bizarra é explicada quando as crianças entram. Foi enquadrada a pensar nelas. Diz-se que Ozu gostou do aspecto deste enquadramento baixo e continuou a utilizá-lo. Esta explicação pode muito bem ser verdadeira, porque se ajusta plenamente à concepção particular que Ozu tinha do papel da composição do enquadramento no cinema.

A composição dos planos no cinema ocidental é, hoje em dia, usada – na medida em que é conscientemente usada de todo – para interpretar a acção, geralmente estabelecendo comentários sobre as personagens. Outrora, no entanto, outro tipo de composição era mais comum – uma composição que existia por si só, pela sua beleza pictórica. A composição pictórica, originalmente inspirada na pintura tradicional, pressupunha que as margens da imagem eram uma moldura no interior da qual os objectos deveriam ser arranjados de forma tão agradável quanto possível. Temos exemplos notáveis nos filmes de Stroheim, Murnau e Sternberg, entre outros. Talvez uma das razões pelas quais hoje se vejam raramente este tipo de composições é a de que elas pressupõem um padrão de beleza convencional. Seguramente, as tentativas de composição pictórica levadas a cabo por cineastas actuais como Bolognini e Griffi são geralmente consideradas afectadas ou artificiais.

A composição em Ozu, no entanto, é quase invariavelmente pictórica. Não a reconhecemos imediatamente como tal nos seus filmes porque, de algum modo, estamos habituados a pensar na composição pictórica enquanto arranjo da Natureza, contendo árvores, rios, montanhas, etc. Quando vemos a cena do relvado nos Contos da Lua Vaga de Mizoguchi, damo-nos imediatamente conta da sua beleza pictórica; quando vemos o mesmo tipo de arranjo nas centenas de exteriores e interiores de Ozu, a nossa resposta é menos segura. E, no entanto, os dois cineastas partilhavam muitos dos mesmos pressupostos e procediam de maneiras aproximadamente semelhantes. Os seus objectivos estéticos eram também parecidos, embora se possa concordar com Yoshikata Yoda, o argumentista de Mizoguchi, quando afirmou que este último era o mais japonês dos dois. Estaria a pensar na grande influência do cinema americano sobre Ozu, mas também na imagética natural tipicamente japonesa quase sempre presente nos filmes de Mizoguchi, e nunca nos de Ozu.

No entanto, segundo Yuharu Atsuta, o operador de câmara de Ozu, era a busca por uma composição pictoricamente equilibrada que ditava a posição de câmara ao realizador: baixa e quase sempre fazendo ângulos rectos em relação à cena. Atsuta recordava-se de Ozu lhe ter dito: “Sabes, Atsuta, é uma chatice tentar fazer boas composições numa sala japonesa – sobretudo nos cantos. A melhor maneira de lidar com isto é usar uma posição de câmara baixa. Isso torna tudo mais fácil.” Ou seja, se a câmara estiver posicionada baixa sobre o tatami e de frente para o interior da divisão da casa, as margens negras dos tatamis não criam nos cantos mais distantes os ângulos agudos que contrariam uma composição que se pretende frontal e em ângulos rectos em relação ao observador. Em vez de parecerem parar numa região para a qual o realizador não quer chamar qualquer atenção, parecem prolongar-se sem interrupções até à invisibilidade.

Atsuta contou também ao realizador Kazuo Inoue que uma vez sugeriu a Ozu que a pintura era toda “feita” a partir de um ponto de vista muito mais convencional do que a posição baixa por ele adoptada. Ozu concordou, mas fez notar que se rodasse o filme a partir do nível normal do olhar de um pintor numa posição frontal, seria necessário incluir o tatami no fundo, o que tornava difícil fazer sobressair as figuras humanas com recorte suficiente. Tomo Shimokawara referiu que a posição baixa – a que Sadao Yamanaka, que também a usou, chamava “o ponto de vista do cão” – torna qualquer composição mais arranjada pelo simples facto de que a simplifica; uma posição baixa deixa ver menos elementos.

Este ponto de vista rebaixado, no entanto, ocorre também em algumas formas de arte tradicional japonesa, particularmente na xilogravura, em especial nas cenas do género em que a atenção é concentrada apenas na figura. E Gregg Toland colocou a sua câmara na mesma posição em muitas das cenas de O Mundo a seus Pés, exactamente pela mesma razão: o posicionamento baixo permitia delinear claramente as diversas superfícies da imagem e acentuar a que era ocupada pelos actores. (Quando Ozu adoptou esta posição de câmara, provavelmente durante a rodagem de O Coro de Tóquio em 1931, Shiro Kido, o director do estúdio, ter-se-á queixado de que agora iam ter de construir tectos nos décors, uma reclamação que se ouviu dez anos mais tarde na RKO quando as posições de câmara de Toland tornaram os tectos necessários nos cenários de O Mundo a seus Pés.)

O ângulo de visão baixo tem como efeito a criação de um palco no qual as personagens são vistas de forma a melhor as favorecer. Vemo-las a partir de baixo, por assim dizer, e o fundo fica assim distanciado da figura. O efeito teatral é imediatamente reconhecível num filme como Raposa Matreira. Se não o reconhecemos habitualmente nos filmes de Ozu, é em parte porque as suas cenas se passam normalmente em casas japonesas, que já são em si próprias uma espécie de palco. A casa tradicional japonesa é elevada acima do chão. Muitas das suas paredes são na realidade portas-janelas deslizantes, que se abrem quando faz bom tempo para revelar um interior verdadeiramente semelhante a um palco. No interior da casa existe um autêntico pequeno palco, um nicho chamado tokonoma, que serve para exibir, muitas vezes de modo teatral, as flores da estação e, habitualmente, um rolo com caligrafia ou pintura. As portas para as outras divisões abrem-se sobre cenários artificialmente elaborados, e os convidados sentam-se de costa para o tokonoma de modo a que possam ser considerados parte da disposição cénica. As portas de correr são abertas e fechadas com alguma cerimónia, e um corredor roka une as partes do “cenário” umas às outras. Quando Paul Claudel afirmava que estar no interior de uma casa japonesa era como estar entre os camarins dos bastidores de um teatro, estava a dar-se conta de algo extremamente óbvio.

 


1949, Banshun (Primavera Tardia)


(…)

  

                Completamente satisfatórias, de tal forma que não podem já ser consideradas simbólicas, são as múltiplas pequenas cenas com objectos nos filmes de Ozu. Objectos sempre perfeitamente comuns, quotidianos, que servem não para simbolizar, mas para conter emoções. Ozu recusava-se, como vimos, a fazer comentários directos acerca das suas personagens através do seu posicionamento no interior da cena. Comentários directos e cenas simbólicas são habitualmente estranhos a Ozu precisamente porque constituem um comentário injusto acerca das personagens, injusto porque pretendem comprimir algo tão complicado como uma personagem em algo tão simples como um símbolo. Ozu prefere algo mais subtil: a natureza morta. As lanternas suspensas de Ervas Flutuantes, os arranjos de flores em A Flor do Equinócio, a jarra solitária no quarto escurecido de Primavera Tardia – qual o seu significado? São aparentemente naturezas mortas, objectos, filmados pela simples razão de serem belos em si. Isto não é, no entanto, exactamente verdade. Consideremos a jarra de Primavera Tardia, por exemplo. Pai e filha, prestes a separarem-se, uma vez que ela se vai casar, estão a fazer a sua última viagem juntos. Após um dia em Quioto, vão para a cama e conversam acerca de quão agradável foi a viagem. Depois das luzes se apagarem, a filha permanece acordada. Faz uma pergunta ao pai. Ele não responde. A partir deste ponto a continuidade é a seguinte:

                plano do pai a dormir

                plano da filha a olhar para ele

                plano da jarra no nicho, ouvindo-se o som suave do pai a ressonar

plano da filha que aparenta estar meio a sorrir, longo plano do rosto, quase dez segundos

                a jarra, outro plano em duração

                plano da filha, o seu humor mudou completamente, está à beira das lágrimas.

                A jarra serve de charneira. Embora não signifique nada em si mesma (nem mesmo repouso, sono), serve de pretexto para uma quantidade de tempo decorrida; é algo para observar durante o período em que os sentimentos da filha mudam. É difícil dizer porque é que isto é mais satisfatório do que o modo vulgar de proceder a uma transição deste género, i.e. fazer-nos assistir à transformação que ocorre no rosto da actriz. Talvez uma das razões seja a de que Ozu impõe uma espécie de impessoalidade, uma certa frieza entre a filha e o espectador. Não é por a vermos a ela, mas por vermos o que ela vê (uma jarra isolada, solitária, bela), que podemos compreender a situação de uma forma mais completa, total. Ao ser-nos mostrada apenas a jarra durante os segundos cruciais em que ela fica à beira das lágrimas, somos postos na posição de termos de imaginar os seus sentimentos. Embora não imaginemos necessariamente que ela vá estar à beira das lágrimas quando a formos ver de novo, a jarra ocupou a nossa atenção ao mesmo tempo que estávamos ocupados com os sentimentos dela (não havendo mais nada em que pensar neste ponto do filme), e consequentemente aceitamos os seus sentimentos, sejam eles quais forem. Fomos conduzidos através de uma situação emotiva e, chegados ao seu clímax, não nos é dado nada para ver. O crescendo das nossas próprias emoções, e Primavera Tardia é um filme profundamente comovente, gera uma emoção recíproca que, por estarmos investidos nela, se torna para nós real. Isto está obviamente muito distante das platitudes do simbolismo. Muito mais poderia ser dito acerca desta sequência, mas, por agora, assinalarei apenas a sua qualidade citando Schrader: “A jarra é estase, uma forma que pode aceitar emoções profundas e contraditórias, e transformá-las numa expressão de algo unificado, permanente, transcendente.”

                Se Ozu recusa normalmente a composição interpretativa, recusa igualmente ser limitado pela composição formal, equilibrada e horizontal que quase invariavelmente utiliza. Melhor dizendo, a rígida geometria dos enquadramentos de Ozu desencadeia as acções fluidas e naturais das suas personagens.

                Da mesma forma que dividia as cenas em zonas mais próximas ou mais afastadas da câmara por forma a fazer separar os actores do cenário, Ozu também organizava o seu esquema rígido de modo a que os gestos e reacções das personagens surgissem, quase como que por contraste, naturais. As cenas em Ozu são equilibradas, assimétricas, agradáveis à vista; são ao mesmo tempo rígidas e inflexíveis, como o são todas as composições vazias. Quando o actor entra em campo e se comporta de uma maneira contrária às expectativas criadas pela formalidade do décor, o resultado é frequentemente de uma tocante espontaneidade. Assim, esta composição não existe senão para ser quebrada. Como Ozu repetidamente demonstrou, o bater de uma pálpebra ou o tremor de um lábio pode ser tão comovente como oceanos de lágrimas. No cinema, tal como na poesia, o significado de uma simples cena, de uma simples palavra, mesmo, depende frequentemente daquilo que vem antes e depois dela. Se as promessas implícitas num regime composicional relativamente rígido não são cumpridas, se em vez disso temos uma acção aparentemente não-premeditada, o poder emotivo da cena é grandemente amplificado pelo contexto.

 

1959, Ohayô (Bom Dia)

1960, Akibiyori (O Fim do Outono)


(…)

 

                 Algumas das técnicas que Ozu utilizava com os seus actores foram possivelmente importadas do palco. De 1933 até 1946, Ozu ocasionalmente escrevia (ou ajudava a escrever) e dirigia sketches teatrais em lugares como o Teatro Imperial, o Mitsukoshi Hall e o Teatro de Tóquio. Poucos destes sobrevivem hoje, mas podem bem ter sido semelhantes aos sketches ligeiros que Kafu Nagai, o romancista que em certos aspectos faz lembrar Ozu, escrevia para os teatros de Asakusa. Os ensaios da cena que Ozu fazia para os seus filmes foram comparados a ensaios de palco, e há qualquer coisa de teatral no plano mais característico do seu cinema. O seu carácter é tão típico do palco que não tem equivalente no cinema ocidental contemporâneo, e a sua aparição em filmes estrangeiros mais antigos é habitualmente justificada por uma óbvia, mas indesejável influência teatral. Falamos do plano frontal dos actores diante da câmara, olhando quase directamente para a objectiva. Desde a sua obra sobrevivente mais antiga, Dias de Juventude, de 1929, até a O Gosto do Saké, de 1962, este é um plano ubíquo. Embora ao longo do tempo a direcção do olhar se desloque ligeiramente (começou com um olhar oblíquo dirigido para um ponto mesmo ao lado da câmara, como é ainda relativamente comum acontecer em alguns filmes; e acabou num confronto face a face com a objectiva), o plano em si permanece basicamente o mesmo: a cabeça e os ombros do actor, que diz uma única fala.

                Reconhecemos os antecedentes deste plano. São americanos, e eram muito comuns nos primeiros filmes mudos – os das produtoras Bluebird e Triangle, por exemplo, e de realizadores como Rupert Julien. Estes filmes eram, com efeito, peças teatrais filmadas. Na sua maioria eram comédias e melodramas vulgares que tinham como único interesse contar uma história de forma mais rápida e coerente possível. Grandes planos e intertítulos seguem-se uns aos outros a um ritmo assaz rápido, à medida que as conversas intermináveis, mas aparentemente necessárias, destes filmes primitivos conduziam a um final repleto de acção. Estes filmes, exportados para o Japão em grande número, eram avidamente estudados por todos os jovens realizadores. Eram filmes como estes, e não as obras talvez mais apuradas do cinema europeu, que serviam de modelo para a ideia de continuidade cinematográfica no Japão. Se uma sucessão de planos deste género nos parece estranha agora, como por vezes acontece, é porque a continuidade no cinema evoluiu para além desta fase básica, e os filmes que vemos agora fazem este tipo de técnica parecer primitiva.

                Poderá ser básica, mas não tem de ser primitiva. É talvez o método mais directo para registar uma reacção, e o melhor para sugerir a interacção subtil que ocorre durante qualquer conversa. O facto de ser tão básico era, para Ozu, naturalmente, um incentivo para o continuar a usar. Por outro lado, embora os filmes de Rupert Julien não o sugiram, este tipo de continuidade era passível de produzir um refinamento e uma subtileza ausentes em formas mais avançadas. Havia uma considerável excitação entre os realizadores japoneses em 1925, quando Os Perigos do Flirt, que Ernst Lubitsch realizara no ano anterior, estreou em Tóquio. Era a primeira vez (pelo menos para o público japonês) que este método comum de contar uma história (um grande plano, uma linha de diálogo) se revelava capaz de transmitir perspicácia e ironia. (No que concerne a Lubitsch, essa lição pode ter sido aprendida com o elegante Erotikon, de Mauritz Stiller, um filme feito quatro anos antes e não exibido no Japão, e a que Os Perigos do Flirt se assemelha.) A expressão facial do actor podia refutar a linha de diálogo, ou o plano de reacção podia estar logicamente, mas completamente do avesso em relação à resposta esperada; uma série de cenas deste tipo podia ser formalizada em pequenas sequências que depois eram contrastadas umas com as outras; ou uma série podia ser seguida por outra série paralela que sugerisse interpretações diferentes.

                O efeito de Os Perigos do Flirt no cinema japonês foi enorme; realizadores tão diferentes como Gosho, Mizoguchi e Naruse continuaram a falar dele ao longo das suas carreiras; e o efeito em Ozu foi decisivo. Era um filme de que falava com frequência, e podemos encontrar ecos dele mesmo nas suas obras mais tardias. Se compararmos a versão de 1934 de História de Ervas Flutuantes, feita quando a influência americana foi completamente assimilada, com o filme a partir do qual a história foi ostensivamente copiada, The Barker, de George Fitzmaurice, a diferença torna-se imediatamente aparente. O filme americano, embora empregue o método de um plano, uma frase, não produz nada com ele; usa-o simplesmente para fazer avançar a história. O filme de Ozu, no entanto, usa o método mais ou menos como Lubitsch. As reacções neste filme são particularmente subtis, muitas delas surgindo inesperadamente e todas revestidas de um carácter verosímil. Como em tantos outros aspectos do seu cinema, Ozu adoptou a restrição no que dizia respeito à continuidade; aqui, tal como noutras vertentes, a aparente rigidez do esquema tornava possível a espontaneidade das pessoas no seu interior.

                Para Lubitsch, o método resultava numa comédia de costumes maravilhosamente estilizada, mordaz, elegante e refinadamente artificial; em Ozu o mesmo método resulta num divertido, ordenado e irónico pedaço da comédia humana.

                O facto do método parecer frequentemente artificial faz, claro está, parte dos seus atractivos. Nos filmes da Triangle e da Bluebird o artifício não era tão aparente porque a sua matriz de palco era ainda visível; para Lubitsch era necessário manter a distância sem a qual o carácter espirituoso se recusa a aparecer; em Ozu, o distanciamento era um factor necessário para o surgir da ironia e do pretendido distanciamento emocional. Mesmo que este não fosse o caso, no entanto, o método teria os seus atactivos para Ozu quanto mais não fosse pela sua supereconomia.

                É certo que a falta de naturalidade raramente preocupava Ozu. Como vimos, ele nem sempre se incomodava com a ausência de uma continuidade estrita, deslocando frequentemente pessoas e adereços entre planos consecutivos de uma cena. Akira Fushimi, um dos primeiros argumentistas de Ozu, lembrava-se que num filme o realizador estava a filmar um plano em que uma personagem olhava para um quadro numa parede. De seguida, removeu a parede e fez um plano do actor a olhar para a câmara como se estivesse a olhar para o quadro. Fushimi colocou objecções e disse que isso era pouco natural, que Ozu deveria filmar a personagem lateralmente ou em amorce. Ozu respondeu que não importava que fosse pouco ou muito natural, o que era importante era que se visse o rosto. Noutra ocasião, durante uma cena de Uma Galinha no Vento, Kinuyo Tanaka está sentada em frente de um espelho, olhando-se enquanto decide se se vai prostituir para arranjar dinheiro para pagar as despesas médicas do seu filho doente. Seguem-se uma série de planos pouco naturais, em que ela e o seu reflexo alternam quatro vezes antes de romper em lágrimas e decidir ir ao bordel. Kinuyo Tanaka lembra-se de perguntar se era crível que a câmara ocupasse alternadamente a posição do espelho. Ozu não prestou atenção e filmou a sequência – muito pouco natural, na realidade – exactamente como pretendia.

                Se a veracidade da posição da câmara não preocupava Ozu, tão pouco se preocupava com outras considerações convencionais. Usou por vezes Sadako Sawamura, uma actriz afamada pelo seu perfil clássico, que possuía, quando filmada de frente, uma aparência apenas vulgar. Embora por vezes tenha posto objecções a ser filmada exclusivamente em planos frontais, suas queixas caíram em saco roto. Raramente lhe foi permitido mostrar o seu famoso perfil. Da mesma forma, à medida que Setsuko Hara foi envelhecendo, o seu rosto alterou-se e perdeu alguma da sua frescura. Embora o seu perfil se tenha mantido intocado pelo tempo, Ozu recusou todas as sugestões de planos laterais, e Setsuko Hara teve quase sempre que enfrentar corajosamente a iluminação e os planos com o rosto plenamente virado para a objectiva.

                Para Ozu, o rosto era sempre a parte mais importante da personagem. Embora por vezes mostrasse outras partes do corpo (habitualmente, nos filmes iniciais, as mãos e os pés, filmados à americana e supostos serem indicadores das emoções da personagem; A Mulher daquela Noite é um exemplo), aquilo quer contava mais para Ozu, bem como para a maioria dos realizadores, era o rosto e, em particular, os olhos. Nos filmes tardios era frequente os actores serem instados a não moverem o rosto. Todas as emoções tinham de aparecer exclusivamente nos olhos.

                No método de continuidade clássico americano, a direcção do olhar é a essência da cena, e à medida que alternamos entre grandes planos e linhas de diálogo são os olhos que prendem a nossa atenção, no cinema como na vida. Na teoria clássica americana, se A e B se encontram sentados frente a frente, A actua para a câmara com os olhos dirigindo-se ligeiramente para a direita e B olha ligeiramente para a esquerda. Isto cria um eixo e sugere uma linha recta. Significa que as personagens estão a olhar para os olhos uma da outra. “Os filmes americanos já não obedecem a esta regra, é claro, mas durante anos isto foi axiomático,” contou a Sato, Yoshiyasu Hamamura, o montador de Ozu. O método de Ozu, embora influenciado pela teoria americana, era diferente: “No seu caso, A olha para a direita e B também olha para a direita – ou para a esquerda, conforme o caso, a questão é que olham os dois na mesma direcção.” Hamamura disse a Ozu que estava a cometer um erro. “Então ele filmou uma cena da mesma forma que eu tinha dito e depois, quando visionámos as rushes, ele virou-se para mim e disse: ‘Mas é tudo a mesma coisa, não é? Não faz qualquer diferença, ou faz?’ Eu insisti, repetidamente, que fazia toda a diferença. Ele nunca conseguiu vê-la, no entanto, e continuou serenamente a pô-los a olhar ambos para a esquerda, ou para a direita, e eu por fim cansei-me de me queixar disso.”

                Ozu tinha, é claro, razão. Como demonstrou na cena do paredão marítimo de Viagem a Tóquio, o realizador pode trocar não só a linha do olhar, mas a posição dos próprios actores, que o público não nota nada de estranho. Como tanta coisa na teoria do cinema, a teoria clássica era um teorema de papel que não significava coisa nenhuma. Tal como sabemos agora que perseguido e perseguidor não precisam de atravessar invariavelmente o ecrã na mesma direcção, sabemos também que a direcção do olhar não tem qualquer importância. O espectador junta todos os pedaços sozinho, e constrói uma continuidade até a partir dos elementos mais díspares.

 

1952, Ochazuke no aji (O Sabor do Chá Verde Sobre o Arroz)

1961, Kohayagawa-ke no aki (O Fim do Verão)


(…)

 

                 Os métodos de construção de Ozu não só variam muito pouco de filme para filme, como são todos elementares; ou seja, todos eles derivam daquilo que é agora considerado uma etapa primitiva na história do cinema. Embora o filme acabado seja, de facto, complicado, subtil, até sofisticado, é importante para a arte de Ozu que os seus efeitos se produzam a partir desta base elementar. A experiência emocional particular proporcionada por um filme de Ozu deve muito, talvez tudo, à natureza mundana dos seus materiais e à natureza elementar dos seus métodos.

                Os japoneses possuem uma categoria estética para obras deste tipo, nomeadamente o conceito de wabi. Na prática tal significa que quanto mais vulgar, pobre mesmo, o invólucro, mais forte o efeito (quando devidamente apresentado). O simples, o rude, o comum – estes são os melhores veículos para o espírito estético. Como diz um velho manual de ikebana, devemos “colocar o crisântemo num frasco de barro, o lírio branco e puro numa rústica garrafa de saké, um rebento de ameixieira flutuante numa tigela de arroz”. Aquilo que então se sente é sugerido por um poema constante do Hekizan Nichiroku, de 1945:

 

                Quebro um ramo de ameixieira, coloco-o num boião de barro;

                Embora as flores não estejam ainda abertas,

                O espírito da Primavera paira invisível.

 

                Do particular (o jovem ramo de ameixieira) surgiu o geral (a Primavera), e o wabi serve, enquanto ferramenta espiritual, para sugerir que o eterno se encontra contido no transiente. Foi o que Senno Rikyu, o célebre esteta e um dos fundadores do conceito de wabi, demonstrou ao tomar conhecimento de que personalidades importantes se preparavam para visistar o seu famoso jardim de ipomeias. Rikyu destruiu o jardim. Os visitantes, desiludidos, entraram no pavilhão do chá. Aí, no tokonoma, erguendo-se de uma jarra vulgar, estava uma única ipomeia perfeita. O particular tinha dado lugar ao geral, o menos tinha sido transformado em mais, e os visitantes tinham recebido uma lição de estética avançada.

                Nos filmes de Ozu abundam implicações semelhantes. No entanto, uma vez que estes são inteiramente acerca de pessoas e que o único interesse de Ozu é a personagem, as implicações são não apenas estéticas, mas também espirituais. O wabi corresponde aos recursos espirituais a que Jacques Maritain chamou les moyens temporels pauvres: “Quanto menos sobrecarregados pela matéria, quanto mais pobres forem, quanto menos visíveis – mais eficazes são. Isto porque são veículos puros para a virtude do espírito.” Os materiais mundanos e os métodos elementares fazem dos filmes de Ozu uma experiência anagógica, e a natureza da arte de Ozu coloca-a perto de toda a arte religiosa.

                Torna-se aparente que, neste sentido, os seus filmes são religiosos quando os cotejamos com a definição aceite do termo. Têm como preocupação a devoção e a fidelidade, frequentemente em relação a um ideal assumido, mesmo se não nomeado; expressam reverência, amor, gratidão, e a vontade de obedecer ou servir; implicam um ritual. Ao mesmo tempo, o facto de não serem acerca de nenhum ser supremo reconhecível, de não serem expressamente acerca do serviço e adoração a um deus como acontece em certas formas de culto, evita que nos apercebamos dessa sua natureza e que reconheçamos o nosso próprio impulso religioso quando este nos é subitamente revelado ao assistirmos ao final de Primavera Tardia ou de Viagem a Tóquio.

                O cinema de Ozu partilha com a maioria da arte religiosa uma predisposição para o uso de técnicas primitivas ou elementares: “a bi-dimensionalidade, a frontalidade, a linha abstracta, a personagem arquetípica.” Também partilham o pressuposto de que é através do quotidiano, do mundano, do comum – e exclusivamente por esta via – que a transcendência pode ser expressa. Porque, como vimos, é a combinação do mundano (o vulgar vaso de barro) com o que é vivo, o que promete, o evanescente (o ramo de ameixieira) que cria o sentimento de transcendência. Do mesmo modo, a arte religiosa primitiva, de Bizâncio, por exemplo, encerra nos seus padrões hieráticos e mundanos a santidade viva e humana. E, da mesma forma, como vimos, a geometria invariável e “quotidiana” da cena de Ozu encerra e contrasta com a realidade e humanidade das suas personagens.

                Ozu não pensava acerca dos seus filmes desta forma. Para ele, os dados dos seus filmes eram efectivamente tão quotidianos que, uma vez seleccionados, não questionava nem considerava o seu efeito. Isto era evidente pela sua surpresa sempre que alguém pretendia fazer-lhe perguntas acerca dos seus materiais e dos seus métodos, e pela sua indiferença, e mesmo inconsciência, relativamente às múltiplas semelhanças entre os seus filmes. Sem ser minimamente doutrinário, cedo encontrou uma forma de mostrar o que queria e não encontrava motivos para mudar.

                “Não penso que o cinema tenha uma gramática,” escreveu uma vez, “não creio que o cinema tenha uma forma única. Se um bom filme resulta, então esse filme criou a sua própria gramática.” É certo que estava a escrever acerca de realizadores com vocabulários amplamente diversos e a afirmar que não existe uma gramática cinematográfica geral (algo como um style galante cinematográfico) a que todos possam recorrer. De uma forma mais restrita, no entanto, ele poderia estar a falar acerca dos seus próprios filmes, os quais, na sua grande maioria, têm realmente uma forma. Ozu sugere, seguramente, que um filme que cria a sua própria gramática é também um bom filme. Uma das razões para que pensasse assim era a de que, nos seus filmes, são os dados (i.e., a gramática) que criam a vida, o humano, o permanente. Se a sua geometria composicional era um dado, aquilo que nela lhe interessava era a natureza humana que ela rodeava e, em certa medida, criava. Estes eram os meios através dos quais a espiritualidade era revelada e alcançada. Se o diálogo, por exemplo, é acerca de coisa nenhuma em particular, então aquilo a que assistimos é a como uma personagem fala, como outra reage. O aspecto visual ganha, uma vez mais, a primazia. É-nos mostrado algo, e é só esse algo que pode revelar um estado espiritual. Ozu teria seguramente dificuldade em compreender as críticas que pareciam negar que o vulgar pode conter uma natureza espiritual, uma vez que é apenas pelo vulgar que o espiritual pode ser revelado.”



1953, Tôkyô monogatari (Viagem a Tóquio)


1974 ,Excertos de Ozu: His Life and Films de Donald Richie
Edição Portuguesa de The Stone and The Plot

obrigado Daniel pela edição deste grande livro#