31 de março de 2011

Ontem e hoje dois filmes vistos, All That Heaven Allows de Sirk e The Fighter de David O. Russell. All That Heaven Allows é o retracto da sociedade hipócrita, cruel, que vive de aparências. Melodrama, romance, história de amor assombrada (e que sombras as de Sirk!) pelo preconceito, pelo materialismo, pelo medo da sociedade. Sirk vai contra muitos valores que na altura eram fomentados pela sociedade americana, é um “puta que os pariu” a toda aquela classe social, à sua conformidade social, aos riquinhos, àquele american the way of life, aos próprios filhos que um dia também “voarão”. E por isso aquela disparidade de idades entre eles, para acentuar o tal “puta que os pariu”. E Todd Haynes veio buscar tudo aqui para o seu Far From Heaven. The Fighter não é um grande filme (nem lá perto) mas aguenta-se, é um bom filme ou direi antes eu gostei. Tem duas ou três coisas muito boas, a interpretação do Bale (já dito e redito milhentas vezes), a realização do Russel e o sentido humanístico do Micky (o Wahlberg), a sua relação quase que altruísta para com o irmão. De resto, coisa já vista no Rocky ou no Raging Bull (sem chegar aos calcanhares desses) mas perfeitamente ao nível dum Million Dollar Baby.

30 de março de 2011


A propósito deste post Mogambo e Donovan’s Reef são dois objectos tão semelhantes e tão distintos que até perturba. Mogambo, comédia romântica que vai buscar toda a energia, beleza, sensualidade a Ava Gardner e a Grace Kelly (por mais que as paisagens o reforcem são elas que triunfam) e Donovan’s Reef, também comédia romântica onde o racismo, o preconceito e a religião se passeiam. Em ambos, os cânticos, o sentido humanístico, o amor. Ford.

29 de março de 2011

Madame De... (1953)
Max Ophüls

Ophüls, cineasta do travelling, cineasta do virtuosismo da mise-en-scène, cineasta do amor, da paixão, do romance, cineasta da mulher. Ophüls, cineasta da magnitude da aristocracia, da fome da liberdade interior ou da necessidade interior da mulher em amar, em sair e aventurar-se no amor, fora das convenções sociais, na constante procura da felicidade, da paixão, do fogo da paixão, coisa brutal e ardente que Ophüls parece dizer que só as mulheres o necessitam (ou o buscam), o amor louco, a vontade de abandonar o passado ou o marido ou o luxo ou a posição social pelo amor, coisa que a mulher está disposta e o homem não, porque o homem é mais racional, mais controlado e mais sóbrio. A embriaguez do amor que irrompe bruscamente na mulher. Ophüls, cineasta da brutalidade e da fogosidade da paixão.

Madame De… é tudo isso, nasce na frieza da Madame De ao vender aquelas jóias oferecidas pelo marido (se não me falha a memória nas bodas de prata; e que mulher vende um presente do marido de tal data?) para estas irem até Constantinopla para serem trazidos novamente para si pelas mãos do barão. Assistimos à mudança de atitudes da madame, à mudança de significados que aquelas jóias assumem para ela, à força brutal que a sedução e a paixão brotam. Assistimos ao declínio do casamento (que o general se esforça por manter), ao crescendo da sedução/paixão entre a madame e o barão e sobretudo assistimos à capacidade da mulher em mentir e arranjar esquemas. Ophüls parece, além de lhe atribuir (à mulher) essa necessidade da loucura pelo amor, facultar também essa idoneidade em mentir e fazer tudo pelo amor, a falsidade. Coisa ambígua que o cineasta atribui à mulher. Madame De está acima de tudo fora (ou quer estar) da sociedade em que se insere, isto principalmente quando perde o barão e percebe que para o recuperar terá de abdicar da sua posição. E aquele enclausuramento a que se remete é não só uma indicação dessa pretensão como um “fechar portas” a tudo o que a sua posição requer (e o general percebe isso e por isso o posterior procedimento), e por isso aquele choro junto àquela criança quando o general a obriga a entregar as jóias (afinal ela está não só a chorar pelas jóias como pela sua renuncia ao papel de esposa e futura/hipotética mãe). Tragédia brutal do romantismo, obra-prima do classicismo e dum dos melhores cineastas de todos os tempos.

28 de março de 2011

27 de março de 2011

Ressources Humaines (1999)
Laurent Cantet

Ressources Humaines é um filme claro, com muita luz, e é com essa mesma luz que Cantet traz a sua grande finalidade, buscar a luz da descoberta. E o que se descobre? A impiedade do capitalismo. Estamos perante algo herdeiro do neo-realismo, preocupado nos problemas sociais, no desemprego e na justiça laboral, terreno de greves e sublevações inglórias, coisa de realismo. Contudo, Cantet procura mais e esforça-se por criar não só uma ambiguidade naquela relação pai/filho (ao que resulta presumivelmente e obviamente naquela “explosão” final) como em criticar essa apatia ou letargia social do trabalhador que continuamente se acomoda e sujeita às injustiças laborais (caso flagrante o do pai). Podemos também analisar a sua conduta (a do pai) pertencente a quem quer o melhor para o filho, discorrer na velhice e no futuro do seu primogénito que é o que realmente importa àquele pai, e por isso a tal letargia. E daí se chega ao conflito pai/filho que assenta num choque de mentalidades, onde mais do que a disparidade do velho e novo se encontra a necessidade do novo (e a ausência dela no velho) da revolta contra o abuso do poder e uma certa vergonha deste na condição social e laboral do pai. E Ressources Humaines só peca (e o limita) nos lugares-comuns e nos clichés que transporta, nalguma confusão narrativa que apresenta, na realização de Cantet que não sendo má também não é boa.

23 de março de 2011

Les Biches (1968)
Claude Chabrol

De Les Biches digamos que é filme que tudo deve a Hitchcock, a Stahl, a Sirk, a Ray, a Hawks e a Ford, digamos que é filme de todo o esplendor classicista americano em pleno berço da nouvelle vague, mas essencialmente é filme que tudo deve ou tudo quer dever ou homenagear a Preminger e acima de tudo ao seu Bonjour Tristesse. São planos e enquadramentos e sombras e crepúsculos a rasgar o ecrã, ode ao classicismo americano e a essa monstruosidade de filme que é Bonjour Tristesse.

Thriller onde desde cedo se adivinha a tragédia ou direi antes que desde cedo se avizinha a ambiguidade daquele relacionamento que se cria entre aquelas duas mulheres sedutoras e misteriosas, onde tudo leva ao inevitável culminar fatídico da obsessão. Les Biches nada mais faz que deambular entre essa obsessão que resulta da sedução para acabar na tragédia. Fá-lo dentro de todo o mistério da própria sedução e dos próprios protagonistas, criando não só uma ambiguidade moral nos seus relacionamentos, nos seus desejos e nas suas acções como no desconhecimento total (ou quase total) daquilo que ao passado destes diz respeito. Força incomensurável que atrai Paul para aquelas mulheres, algo tão vivo e tão despojado de responsabilidade ou de receio no envolvimento, tudo a transbordar sensualidade nos olhares, nos gestos, nos movimentos, na forma em toda a sua forma em que aquelas duas mulheres irradiam não só sensualidade como total desinibição, total libertinagem, coisa do Maio de 68 que “batia à porta”, emancipação total da mulher ou coisa de riquinhos sei lá, desejo sexual lascivo estampado nos rostos daquele trio, a obsessão em crescendo com o filme, a mise-en-scène de Chabrol. Grande Chabrol.
Zemlya (1930)
Aleksandr Dovzhenko

(...) O filme abre, é intermediado e termina com planos muito gerais da Natureza em movimento, como o campo sobre um grande céu enevoado ou a seara que serpenteia ao ritmo do vento. Todas as imagens, cuja minuciosa composição fazem com que se entenda um detalhado perfeccionismo na «mise-en-scène» com a mão de Dovzhenko, contêm, em si, não só um forte embate visual, como também um sentido metafórico facilmente assimilável. Referimo-nos, por exemplo, aos diversos planos que contêm girassóis, instituída como flor nacional da Ucrânia, e como o realizador os conjuga com o primeiro sucedimento da obra: a morte de um velho na família central da narrativa, Semion. Antes de falecer, pede algo para comer, trinca em felicidade pueril uma maçã (fruto que o rodeia às dezenas no leito da sua morte), olhando para as crianças que ao seu lado se divertem, e despede-se confirmando aos restantes membros do grupo, em contentamento sereno, que jamais viverá, olhando para cima. O realizador aqui toma a decisão de cortar o plano, mais uma vez, para os girassóis caídos, como se encontrassem em contra-campo e o observassem como seguem o Sol, e que aqui adquire uma dimensão que transcende o simples símbolo da pátria: esta transição significa, tão-somente, o reconhecimento do colectivo que abarcou a sua simples existência de camponês (Petro, seu companheiro, descreve com fervor que «durante 75 anos, ele arou a terra com gado» e que, por isso, deve ser agraciado com «uma medalha»).
A história prossegue acompanhando a determinação do protagonista, Vasyl, «que está à frente do comité do Partido na aldeia» (Peña, 2003: 86), e dos companheiros camponeses, que mantêm uma tensão evidente com o kulak que controla a produção dos mesmos e que recusa a venda da área agrária desejada, em comprar um tractor para a comunidade, com a esperança assente em acelerar a produtividade e transformar o campo. Apesar da apreensão do pai, que não compreende as suas ambições e se redime à sua simples condição de camponês, o tractor chega como uma alucinante novidade, que despoleta em todos uma grande curiosidade e alegria (a montagem desta chegada lembra o formalismo patente nos filmes de Eisenstein, que, por sua vez, criticou negativamente a arquitectada em Zemlya). «Iremos prosperar com os tractores», grita Vasyl, em puro contentamento, e, voltando-se para o pai, antevendo o triunfo da tecnologia sobre séculos de humanização ligada ao trabalho da terra, pede-lhe: «Sê livre dessa pá!». Nessa noite, Dovzhenko filma a felicidade extrema vivida por Vasyl, materializada numa dança demorada sobre a lua, concluindo-a num assassínio seco e brutal pelo filho do kulak. O assassínio é assistido unicamente pelo espectador e por um cavalo que, quieto e impotente, nada faz senão apreciar o morto.
A última parte corresponde ao funeral de Vasyl, onde o pai, após ter requerido a presença de toda a aldeia, pede que cante em memória da grande actividade do filho, e esse reconhecimento, colectivo e de grandiosa força, ultrapassa qualquer outro, como o da religião católica. É um último capítulo imbuído de uma força icónica muito própria, entrecortando o funeral com o sofrimento da mulher de Vasyl e com as primeiras dores do parto de uma mulher. A chuva da estação mergulha a comunidade num estado de renovação, e assim se fecha uma obra-prima. De tão original que mostrou ser, Zemlya virá a inspirar e a motivar outros jovens cineastas a criarem o seu próprio caminho e a sua própria perspectiva de como o indivíduo age em sociedade. (...)

(...) Superficialmente percebido, é um pleno cântico ao ideário socialista pois, embora possamos servir-nos da morte do protagonista como um destino que se augura fatídico para o sonho do comunismo (que, efectivamente, comprovou o seu fim, muitos anos depois), compensamo-nos com duas informações que recebemos e que nos confortam: por um lado, vemos o protagonista a dançar sob a lua, antes de ser baleado, significando que este indivíduo, que sem dúvida que transformou o meio onde vivia num sentido, não importa se efémero, de melhoramento e positivo progresso, morreu pleno de felicidade; por outro lado, entendemos que a feitura deste ser humano não foi em vão, sendo reconhecida diante de todo o meio colectivo num funeral que canta a alegria da sua vida. (...)

Flávio Gonçalves in O Sétimo Continente

*Aconselha-se a leitura do texto integral aqui.