23 de março de 2011

Zemlya (1930)
Aleksandr Dovzhenko

(...) O filme abre, é intermediado e termina com planos muito gerais da Natureza em movimento, como o campo sobre um grande céu enevoado ou a seara que serpenteia ao ritmo do vento. Todas as imagens, cuja minuciosa composição fazem com que se entenda um detalhado perfeccionismo na «mise-en-scène» com a mão de Dovzhenko, contêm, em si, não só um forte embate visual, como também um sentido metafórico facilmente assimilável. Referimo-nos, por exemplo, aos diversos planos que contêm girassóis, instituída como flor nacional da Ucrânia, e como o realizador os conjuga com o primeiro sucedimento da obra: a morte de um velho na família central da narrativa, Semion. Antes de falecer, pede algo para comer, trinca em felicidade pueril uma maçã (fruto que o rodeia às dezenas no leito da sua morte), olhando para as crianças que ao seu lado se divertem, e despede-se confirmando aos restantes membros do grupo, em contentamento sereno, que jamais viverá, olhando para cima. O realizador aqui toma a decisão de cortar o plano, mais uma vez, para os girassóis caídos, como se encontrassem em contra-campo e o observassem como seguem o Sol, e que aqui adquire uma dimensão que transcende o simples símbolo da pátria: esta transição significa, tão-somente, o reconhecimento do colectivo que abarcou a sua simples existência de camponês (Petro, seu companheiro, descreve com fervor que «durante 75 anos, ele arou a terra com gado» e que, por isso, deve ser agraciado com «uma medalha»).
A história prossegue acompanhando a determinação do protagonista, Vasyl, «que está à frente do comité do Partido na aldeia» (Peña, 2003: 86), e dos companheiros camponeses, que mantêm uma tensão evidente com o kulak que controla a produção dos mesmos e que recusa a venda da área agrária desejada, em comprar um tractor para a comunidade, com a esperança assente em acelerar a produtividade e transformar o campo. Apesar da apreensão do pai, que não compreende as suas ambições e se redime à sua simples condição de camponês, o tractor chega como uma alucinante novidade, que despoleta em todos uma grande curiosidade e alegria (a montagem desta chegada lembra o formalismo patente nos filmes de Eisenstein, que, por sua vez, criticou negativamente a arquitectada em Zemlya). «Iremos prosperar com os tractores», grita Vasyl, em puro contentamento, e, voltando-se para o pai, antevendo o triunfo da tecnologia sobre séculos de humanização ligada ao trabalho da terra, pede-lhe: «Sê livre dessa pá!». Nessa noite, Dovzhenko filma a felicidade extrema vivida por Vasyl, materializada numa dança demorada sobre a lua, concluindo-a num assassínio seco e brutal pelo filho do kulak. O assassínio é assistido unicamente pelo espectador e por um cavalo que, quieto e impotente, nada faz senão apreciar o morto.
A última parte corresponde ao funeral de Vasyl, onde o pai, após ter requerido a presença de toda a aldeia, pede que cante em memória da grande actividade do filho, e esse reconhecimento, colectivo e de grandiosa força, ultrapassa qualquer outro, como o da religião católica. É um último capítulo imbuído de uma força icónica muito própria, entrecortando o funeral com o sofrimento da mulher de Vasyl e com as primeiras dores do parto de uma mulher. A chuva da estação mergulha a comunidade num estado de renovação, e assim se fecha uma obra-prima. De tão original que mostrou ser, Zemlya virá a inspirar e a motivar outros jovens cineastas a criarem o seu próprio caminho e a sua própria perspectiva de como o indivíduo age em sociedade. (...)

(...) Superficialmente percebido, é um pleno cântico ao ideário socialista pois, embora possamos servir-nos da morte do protagonista como um destino que se augura fatídico para o sonho do comunismo (que, efectivamente, comprovou o seu fim, muitos anos depois), compensamo-nos com duas informações que recebemos e que nos confortam: por um lado, vemos o protagonista a dançar sob a lua, antes de ser baleado, significando que este indivíduo, que sem dúvida que transformou o meio onde vivia num sentido, não importa se efémero, de melhoramento e positivo progresso, morreu pleno de felicidade; por outro lado, entendemos que a feitura deste ser humano não foi em vão, sendo reconhecida diante de todo o meio colectivo num funeral que canta a alegria da sua vida. (...)

Flávio Gonçalves in O Sétimo Continente

*Aconselha-se a leitura do texto integral aqui.

4 comentários:

Enaldo Soares disse...

Eu acho uma lástima que um cinema de tal magnitude tenha, por falta de opção, se curvado à pobreza do ideário totalitário.

Ana Mariz disse...

Muitíssimo obrigado pelo reconhecimento, Álvaro :) O blog anda um pouco parado, mas vou proceder a uma revitalização cheia de força, que espero mesmo que aprecies.

Olha uma coisa, mal possas vê o "Bal" do Kaplanoglu. Vi-o ontem em estreia e é um monumento de filme. Puro cinema, amor e união com a Natureza. Um hino ao Pai feito de imagens e de vida. Tenho a certeza que vais adorar! :)

Flávio Gonçalves disse...

(assinei com o perfil da minha companheira de casa; assim já sabes que sou eu :P)

Álvaro Martins disse...

Ahhhhhhh, já estava aqui a matar a cabeça a tentar perceber o comentário eheh já fui visitar um blog recente em que ela e tu fazeis parte e tudo ;)

Coincidência que acabei há coisa de meia hora de ler a crítica do LMO ao Bal. Claro que quero ver ;) aliás, tenho aqui mais filmes dele para ver.