as obras-primas de António Reis e Margarida Cordeiro
1976, Trás-os-Montes
A única solidão é aquela que não tem passado.
Agustina Bessa Luís
De Trás-os-Montes, filme de António Reis e Margarida Cordeiro, disse Jean Rouch que inaugurava um novo cinema. Coisa de um tipo se pôr de joelhos, terá dito também. A coberto deste magister dixit as línguas dos críticos foram-se, finalmente, desatando e a imprensa do fim da semana passada começou, finalmente, a entoar as suas loas. Loas ou requiems? Pode-se perguntá-lo, porque, entretanto, o filme deixava a sala onde se a exibira, durante uma semana, ignorado pelo público, esquecido pela crítica. Esta, como de costume e, como a propósito de uma outra obra grande notava Eduardo Lourenço, «deixa morrer antes para corar depois». Tudo que agora se diga ou faça em favor dessa coroação – e esta tardia iniciativa de o EXPRESSO é bem um exemplo – é mais produto do vosso remorso do que medida da vossa atenção. E tanta gente viu o filme a tempo de com tempo dele falar.
Pede-se-me, agora, um curto depoimento. Para que possa ter alguma utilidade, é preciso que haja onde ver o filme, o que implica a sua reposição. Como já se fez para Benilde ou Brandos Costumes. Há que teimar e não deixar que se perca assim o que é um dos grandes actos de amor e criação que a arte feita por portugueses nos tem dado.
Para que se não perca uma obra que é, também, para um povo e para um país à procura de si próprios, uma das poucas pedras do caminho que nos pode ajudar a reencontrar a direcção.
Não me aventurarei a tentar explicar porque, no curto espaço de que disponho. Mas usarei o resto dele a dar duas pistas:
I – Falei das pedras do caminho. Lembram-se do conto em que as crianças as deixavam cair no chão para não se perderem? Velhas sagas, velhas lendas. Mas o essencial da busca de António Reis e Margarida Cordeiro está por essas bandas e tem que ver com esses medos. Ir buscar ao tempo, ao «era uma vez», o que, contado, recupera na imaginação o que nela sempre há de memoria. Neste filme, deixa de ser possível dividir uma de outra, como deixa de ser possível separar a imagem do imaginário, pela dupla abertura e pela dupla evasão que cada plano introduz ao que está antes (por vezes, muito antes) e depois (por vezes, muito depois) dele. A imagem reentra no imaginário. Fugindo ao pitoresco, ao folclórico, à redução etnológica, o que Trás-os-Montes nos propõe é o encontro com o real imaginário de uma cultura em que esses dois termos nunca são antitéticos. É o convite a uma viagem que vai até ao fundo dessa fusão, utilizando uma linguagem – como é a cinematográfica – cujo mais fundo sentido nunca foi outro senão o de a dizer. E utilizando-a com o mais obstinado rigor.
II – Assumindo as duas vertentes do passado, Trás-os-Montes é, por via disso e em toda a acepção da palavra, um filme de resistência. Na medida em que desarruma o campo das certezas ou ideias feitas (quer sobre o discurso que usa, quer sobre o que esse discurso nomeia) e na medida em que nos faz descobrir as vertiginosas possibilidades da liberdade mais cercada e mais frágil. Se a primeira acepção é talvez acessível a muito poucos, a segunda invade de tal forma cada plano deste filme que a sua evidência provoca abundantemente as reacções de quem já não pode ou não quer reconhecer os muros da prisão e a espantosa beleza da incessante luta para os derrubar. Nesta medida, a ternura deste filme é tão grande como a sua violência e é isso que muitos poucos suportam. Para falar dos que não renunciaram e da sua solidão, António Reis e Margarida Cordeiro inventaram o cinema da memória, da solidariedade e da não-abdicação.
De quanto pode ser dito sobre a nossa morte-vida, por quem dela vive e morre, este filme nos fala.
Peço desculpa de não ter conseguido ser mais claro.
João Bénard da Costa
Jornal Expresso, Revista, pág. 22, de 25 de Junho de 1976 (secção "Alternativas", coordenação de Helena Vaz da Silva)
Trás-os-Montes
Um filme, isto é, imagens e sons organizados a passarem 24 vezes por segundo, pode, de repente, ultrapassar essa sua simples condição e ascender ao nível do símbolo, da arma, do facto social e político importante.
Tal é o caso, neste momento, de «Trás-os-Montes».
E no entanto dir-se-á, à primeira vista, paradoxal que tal aconteça com um filme onde não há armas, nem ocupações de terras, nem operários em greve, nem esquerda em movimento, nem nada daqueles sinais exteriores e aparentes que levam as pessoas a rotular um filme de «político», de «interveniente».
Foi no entanto deste filme que a direita pediu a pura e simples destruição. Foi este filme que o conhecido órgão da Imprensa regional «Mensageiro de Bragança» (edição de 7/5/76) classificou de sinistro, de farsa, de afronta, de faccioso, de alienante, de macacada e de outros epítetos afins. E, afinal de contas, porquê?
Porque «Trás-os-Montes» é, sem reservas, um acto de amor.
Acto de amor por um povo, por uma terra, por uma cultura.
Porque «Trás-os-Montes» grava, indelevelmente, os sinais de uma resistência secular, as pedras, as lendas e os rostos de um Nordeste cadinho de antigas civilizações, espaço concreto onde se fica e se parte, se vive e se morre. Porque, finalmente, «Trás-os-Montes» é um filme que fala dos explorados e dos esquecidos como nunca ninguém falou neste País, sem paternalismo, sem condescendência, antes com o calor fraternal de quem solidário se sente, companheiro se afirma. Daí a verticalidade, a firmeza, desta obra que se não limitou a registar, a olhar, mas soube, previamente compreender uma realidade, amá-la, e só depois sobre ela se debruçou, atenta, nervosa, calorosamente brilhante.
«Trás-os-Montes» é daqueles filmes que abrem portas. Poucos filmes o fazem em toda a História do cinema. Este é um deles. Nunca como aqui o cinema atingiu a completa fusão daquilo que artificialmente se convencionou chamar de «géneros». Divisão operada no campo do cinema como se o real (o real do filme, entenda-se) fosse espartilhado e cindível em pequenas unidade autónomas. António Reis e Margarida Martins Cordeiro escolheram a globalidade, o filme total. Por isso «Trás-os-Montes» não é nem documento nem ficção, não é prova [prosa] nem poesia. «Trás-os-Montes» é um filme abertamente inteiro, capaz de conter em si, em acabada unidade, todos esses vectores.
Esta película é ainda, por outro lado, um meticuloso trabalho sobre os materiais cinematográficos. A imagem e o som, claro, mas sobretudo o tempo, a duração, a exacta definição dos clímaxes e dos períodos de descontracção, das esperas e das angústia, da beleza ofuscante e da tristeza. Dir-se-ia que este filme materializa os próprios sentimentos, como transforma em poesia os factos duros e concretos. Dir-se-ia que «Trás-os-Montes» está no exacto instante em que tudo se queda, por entre rios e montes e gritos e partidas, todas as viagens sem regresso, os nossos sonhos e a urgência, a intranquilidade e por fim a paz dos amplexos de amor, os melhores.
Por tudo o que «Trás-os-Montes» levanta a direita teme-o.
Politicamente está provado (se necessário fosse) que a subversão da sociedade burguesa se pode fazer com a simplicidade de um gesto de amor de um povo. É que aí, nesse espaço concreto e vital, pressente-se uma força inaudita, insuspeitada por muitos, sabe-se das noites e das albas em que se chora, se aguenta e se resiste.
n/ assinado (Jorge Leitão Ramos)
Jornal Diário de Lisboa, Sete Ponto Sete, pág. 7, de 19 de Junho de 1976
DUM PAÍS DO LONGE
Há filmes que o são de homem, outros que o são de mulher.
Há ainda os castos, assexuados, derramando pureza, encerrados na sua virginal inutilidade, anti-sépticos, brancos, hospitalares. Odor a coisas mortas, putrefactas.
Este é o filme de um homem e de uma mulher. É de amor que se trata. É de loucura e dúvida que se tece. É de angústia que se eleva. É uma festa de sangue, em raiva e desespero; como dois corpos que se querem, e se descobrem, e se dão; em dor e espanto; e alegria. Como uns olhos de menino num orgasmo de pergunta.
E de súbito somos nós, aqui.
Um olhar que se descobre em memória, e se quer memória de coisas feitas e vividas. Sonho de coisas sonhadas e sentidas.
Gesto. Palavra. Corpo.
É dum país do longe, com sombras pelos rios, sussurros, vento; cansado, já velho, partido, ido; país só de lembranças, de comboios, de cristais nos pulmões; de cola em carta molhada com lágrimas. E sempre o amanhã no voltar e o hoje no ir. E luto. Mulher-herói que é fêmea e imagem do homem na distância. E chão. E dor que se entorna em grito e se transforma em fumo. Mãos que se enrodilham sobre o ventre já esquecido do parto que o rasgou, sonhando a camisa suada e o suor na cama que se faz no amor. Lume. E dança que é sexo de homem erecto em serra-mãe. Sol que se veste em cabeça de menina fitas roxas.
É dum país do longe mas que é cá.
Um filme. O filme. A inteligência e a coragem, isto é a coragem de ser inteligente. Trás-os-Montes. António e Margarida.
José Camacho Costa
Revista ISTO É ESPECTÁCULO, n.º 1, pág. 44, Setembro de 1976
(Director e proprietário: Lauro António)
1982, Ana
Miranda: a túnica inconsútil
Confesso que estou bastante longe de partilhar do sentimento algo generalizado entre a crítica portuguesa de que estamos a viver, em 1982, um ano áureo da história do cinema. Acho mesmo, sem ofensa para ninguém, que só santa ignorância da história passada permite que se generalize dum Schroeter, sempre magnífico, do Parsifal, de Syberberg, do último Straub, do último Godard, do último Rohmer, do último Demy, do último Carpenter ou do E.T., de Spielberg, para o comum da produção, dos jovens turcos, aos vários «geists» ou aos velhos rotineiros americanos que não merecem tantas vitórias. E mais confesso que semanalmente me estarreço perante o número de obras-primas (e Deus sabe que os exageros me não assustam) que, segundo a mesma crítica, semanalmente, também se estreiam em Lisboa.
Peso, pois bem as palavras, quando digo o que vou dizer: não julgo que haja em toda a história do cinema português um ano a pôr a par do de 81/82 em que, entre um Outono e outro, se estrearam quatro filmes dos maiores filmes de sempre: Francisca, de Manuel de Oliveira, Silvestre, de João César Monteiro, A Ilha dos Amores, de Paulo Rocha, e Ana, de António Reis e Margarida Cordeiro (os dois últimos ainda insolitamente inéditos comercialmente entre nós). Houve ainda mais algumas obras de mérito, mas a esses quatro não hesito em classificá-los de obras-primas. Estarei eu, por meu lado, a exagerar? É sempre possível, mas se o dissesse, mentiria. E vou mais longe: do que conheço da produção mundial desta colheita de 82, tais obras são do melhor, senão o melhor.
Não costumo pecar muitas vezes por chauvinismo. Mas não deixa de ser ironicamente triste que o Festival da Figueira tenha passado ao lado de Ana, premiando a obra que em Valladolid ficou muitos furos abaixo desta. A justiça ficou ao lado.
De Ana vou falar:
Filmado em Trás-os-Montes, podia-se supor que os autores iriam continuar a sua admirável obra anterior, a que tinha por título o nome da província. Se num sentido fundo a continuam (como continuam Jaime, seu primeiro filme e adiante explicarei porquê), no sentido das expectativas, nada de menos exacto. Ana é o contrário de Trás-os-Montes, poder-se-ia dizer o anti-Trás-os-Montes.
Nesse filme, o olhar dos autores era sobretudo um olhar terrivelmente nostálgico. Da invocação-chamamento do pastorzinho do inicio à imagem e ao som do comboio final, o percurso (a peregrinação, dizendo melhor) era sobre o que se perdeu, o que vive na memória e na saudade, sobre as raízes que vão ser arrancadas e a interpenetração da magia e do real, que se sabe perdida. Trás-dos–Montes é o filme do jamais, um poético adeus, uma litania lancinante. O olhar dos autores (jamais subjectivado) estava do lado (ou ao lado) do olhar dos que o sabem, dos adultos que têm ainda acesa a vela da esperança mas ignoram por quanto tempo mais ou duvidam de mãos em que a possam depor. O olhar de Orfeu convertia Eurídice em pedra, como todo o olhar que não resiste ao chamamento do amor que ficou para trás.
Nesse filme, centrado sobre uma criança, ouvíamos e víamos as histórias e as paisagens que já não seriam dela.
Em Ana, o olhar dos autores também não se subjectiva. Mas, centrando-se numa velha (a avó, a mãe que dá o título ao filme), abre (como a extraordinária panorâmica inicial) para uma criança, presença relativamente discreta no filme, mas que em reminiscências lembrará tudo o que viu e ouviu (e tacteou, cheirou e gostou) dessa fabulosa personagem, guardadora de tudo, que, como no ritual do baptismo, lhe abriu o corpo e a alma para as marcas indeléveis. Ao filme da nostalgia, sucede-se o filme da esperança, a «jeune fille» que desafia o próprio Deus do poeta de Péguy. À peregrinação sobre a memória e a saudade, sucede-se a navegação reminiscente que não se abre nem se cerra mas termina no espaço circular do lago (imagem com que se inicia a morte de Ana, imagem com que se inicia o "nascimento" da criança). Ao filme do jamais, a obra do para sempre. Ana, através do seu corpo e do seu sangue, viverá no olhar maravilhado e maravilhoso de Alexandre. A sua morte é ressurreição.
Progressivamente, e à medida que ia vendo o filme, duas obras me vinham à memória: O Vale Era Verde, de John Ford, e Stars in My Crown, de Jacques Tourneur, dois dos mais belos filmes de sempre. Mas qualquer desses filmes era narração de uma criança, que recordava um passado para sempre perdido: «how green were their valleys». Isso permitia ao espectador uma identificação, um terreno, já que o olhar desse miúdo era o fio de Ariadna nos labirintos do tempo. Em Ana, essa identificação é recusada (a esse nível), mas devolvida e decuplicada pela certeza de que esse testemunho se não esgota na oralidade ou na visualidade. É uma aprendizagem mais funda, mais radical, que vem do céu (imagem inicial) à terra e à ponte, que o cavaleiro atravessa por duas vezes em movimentos diversos (saberemos depois, que à procura da ama, do leite, para uma nova vida).
Tudo começou num dia «em que a neve e o vento eram mais puros». E com uma invocação: «Sob o teu olhar, Mãe, a natureza continua o indizível». Na sequência seguinte, vê-la-emos (essa mãe), entre os símbolos primordiais, dreyeriana, muito lenta, a olhar para a noite e a chuva lá fora (o plano rima com o do final, do último olhar através da janela, na noite do nascimento, como no dia da morte).
Essa figura – a da Mãe – vai dominando todo o espaço da casa, tratado como o de uma natividade (gruta, estábulo, pai, os animais do presépio – burro, vaca -, sem que nenhum som ou imagem seja símbolo, mas todos perfazendo o renovado mistério da vida nova). Em «off», a morte da mãe e o menino, até à entrada da ama, com que se perfaz o ritual.
Há esse discretíssimo nu, o manto (inadjectivável composição de plano), a capa, a almofada encarnada sob os pés. E em plano fixo esse movimento muito lento do corpo que amamenta (e simultaneamente é alimentado), quase só perceptível pelo bater das mãos. O máximo do hieratismo, o máximo de esquematização, o máximo de poesia. Pode-se dizer que a ama dá e não dá de mamar: transmite, eroticamente, um corpo a outro corpo, tranfusão de leite, como se fala em transfusão de sangue. E o plano dura, dura como todo o ritual seguinte e a sua paleta de cores (as frutas espalhadas pelo chão, a cama esquecida, o édredon verde, o banho do bebé na selha). Parece que há pessoas (Tolstoi dizia ser uma delas) que se lembram pela vida fora dos primeiros dias e meses, furtados ao comuns dos mortais. Esses planos parecem comparticipar dessa crença. Sem que nada os subjective, parecem narrados pela criança que nasceu, como se o filme fosse um enorme «flash-back» iniciado, no fim, junto à imagem oval do lago.
Depois, a terra, as cores, a passagem do tempo. Sobre os montes escuros, ao poente, um «travelling» vem apanhar a um canto da imagem Ana, desproporcionada e veneziana, como uma figura de Bellini, para contar a história do eclipse: «Fazia frio. Todo o silêncio caíra sobre o mundo(...). Alguns comentavam o que tinha acontecido calmamente, mas eu não estava sossegada. Eu conhecia a noite, mas aquela escuridão imensa, aquele frio súbito era como uma faca no meu peito.» E a imagem não ilustra, não comenta, abstém-se da mínima retórica. A magia entrou no filme num «travelling» da sombra à luz, inverso à narrativa. Magia não do fenómeno (ou não só) mas da imagem, essa sim, magia suprema. Se o eclipse é tão natural como a decomposição do espectro solar da sequência seguinte, o que não é é a imagem, o écran vazio e branco, quando se abrem as janelas. Reinvenção do cinema, desta «escuridão imensa» aprendida como uma lição que vai ecoar depois no longo dissertar de Octávio sobre os barcos e os Fenícios.
(Continua)
(Conclusão)
Nesse fabuloso plano-sequência (mais uma vez demoradamente fixo) a avó ocupa um canto, com a dobadoura, e o miúdo ocupa o outro. Ela não se mexe, quase ausente. O miúdo pergunta apenas: "O que é a Mesopotâmia?". Fundem-se os saberes e as culturas até à mudança de plano. Tudo são hipóteses. E a "lição" continua sob o leit-motiv constante dos princípios masculino e feminino (jangada-pelota, barco de vida barco de morte) enquanto a avó recebe da rapariga os ovos de pata.
Depois deixa-se de ouvir a voz de Octávio e este entra sozinho na igreja, num racord abrupto permitido pela imagem do carvalho, ao fundo da porta aberta do templo românico. Todas as imagens matriciais foram reunidas. No mundo original e originário vai entrar o prazer.
Por aqui (porta da igreja, plano dos morangos, das melancias, travellings incessantes sobre campos de matizados, o banho das mulheres) Ana estabelece essa continuidade com Jaime e Trás-os-Montes de que acima falei. São as raízes impossíveis de arrancar, a terra na sua mais poderosa imagética telúrica (dos poemas gregos a Dovjenko) que povoavam a "loucura" de Jaime e os contos de Trás-os-Montes (a sequência do domus de Bragança). Mas António Reis e Margarida Cordeiro guardam-se de visões idílicas. Ou melhor dito, sabem que os jardins do Éden são também os da árvore do bem e do mal. Um copo que se parte.
E sobre o miúdo doente "que bem guardado parecia" há os fantasmas "dentro de si mesmo", "de que ninguém o pode defender". "Preso às lianas da sua vida inteira", mundo de eclipses, de luzes, de mistérios, de nomes, entra no sonho, um dos mais belos sonhos do cinema, suscitados pelo gesto catártico do copo quebrado. É o bando dos pássaros, tão rápido quanto ameaçador, são as rochas, o abandono ("oh, como se abandonava!"); os terríveis leitos dos rios já secos das antigas mães". Até regressar a imagem da Avó, guardadora de tudo, até desses sonhos.
E a magia continua nos feirantes associados à convalescença (como em Stars in My Crown o estavam à doença) com a rapariga na bola, o piquenique das melancias, o fabuloso raccord das frutas com os gansos. A ligação entre o olhar puro e o olhar perverso, o grande onirismo depois da grande paz. O espectáculo.
Espectáculo que se funde e difunde, depois, nos campos amarelos, nas espigas, no trigo, que já participam dessa tonalidade onde o sonho e a cultura penetraram. O ritmo do filme acelera-se lentamente (há a primeira imagem dum morto) como se a magia se propagasse a tudo e tudo fosse diverso, permanecendo único. A voz off fala-nos de "jóias de folha de centeio", "jóias de insectos torturados" e a metáfora não dobra retoricamente a imagem, desposa-a. Só então percebemos como desde o sonho tudo foi contaminado por outra luz em contraponto da evocação crepuscular da Mãe Ana. Esta, recordando um episódio antigo, repartia as luzes e as sombras. A criança, despertada do sonho para a magia do espectáculo e a magia da vida, "banha" tudo na luz onírica. No seu olhar desperto (jamais coincidente com o da câmara) tudo se abre em maravilha, como a avó lhe ensinara ao evocar o eclipse. Os fios de água, as folhas de centeio, os insectos, introduzem ao mundo onde natura e cultura se entrelaçam. E a música (Bach) entra no filme, numa figura análoga à de Trás-os-Montes quando ouvíamos o Stabat Mater de Pergolesi. Só que, mais uma vez, o percurso é de sinal inverso. Em Trás-os-Montes, Pergolesi "preparava" para a partida do protagonista, para o comboio, para a demoradíssima crispação das coisas que se despedaçavam. Em Ana, Bach religa (no sentido etimológico da palavra religião) o ciclo de magia ao da morte e este ao da ressurreição.
Bach (e a reaparição do cavaleiro) preparam para o último passeio da Mãe Ana, para o espaço criado pela figura, para as "árvores nobres". Não no sentido de algo que se perde mas no sentido profundo de transmissão.
Mãe Ana aproxima-se do lago oval e murmura o nome de "Miranda", a vaca, sinal da sua ligação indestrutível ao ciclo vital. A morte entrou no filme (o azul, as mãos com sangue) não como destruição, nem sequer como aceitação, mas como ascenção suprema duma linha que não se vê quebrar.
Tudo se torna ainda mais suave e azul, até que ela sai do campo (após o longo e último passeio final), ficando a imagem da paisagem onde para sempre se inscreve. Resta-lhe percorrer os passos iniciáticos da morte, num ritual em tudo paralelo ao do início e do nascimento. Dá de comer a Miranda, sobe vagarosamente as escadas (que antes a víramos subir lestamente) e entra na casa de onde jamais sairá. Passa-se da aurora ao crepúsculo, mas como quotidianamente esse percurso se refaz. No dia seguinte haverá novas auroras e novos crepúsculos e, como queria Caeiro, nada estremece.
Nada? António Reis e Margarida Cordeiro não se pretendem tão cultivadamente pagãos.
Esses quinze minutos finais parecem-me ecoar a morte de Sócrates como Platão a contou no Fédon. Quando os membros se lhe começam a inteiriçar, quando o frio da morte dele se apodera e a cicuta perfaz o efeito mortal, Sócrates não dita aos discípulos uma última máxima, nem lhes revela uma última mensagem. Limita-se a recomendar-lhes que não se esqueçam de pagar o galo a Asclépio. Só depois se estende e morre, para que nada fique em falta, para que nenhuma dívida prossiga. Assim, Mãe Ana, depois de se sentar e dobrar no caldeirão (numa posição quase fetal), depois de mandar a rapariga em sossego, depois da vinda do médico, depois dos planos da roupa sangrenta, diz apenas: "Não te esqueças de dar de comer à Miranda: deita-lhe feno e uma mão cheia de centeio." O filme fica livre, como o final do Fédon, para o não anúncio da sua morte: Ana a correr e a chamar Alexandre, o vento, o vento e, de novo, a imagem oval do lago. Essa serenidade inilustrável que permitirá reordenar todo o filme de maneira diversa e voltar à memória de Alexandre, à aprendizagem de Alexandre. Tudo é sacral e sagrado como nas mortes que são apenas passagem, a de que Sócrates falou aos discípulos nessa noite longa final.
Mas se nenhuma inocência pagã vem "amenizar" o filme no final, também a aura do sagrado não cumpre a curva perfeita. Dentro dela se insere esse genial grande plano de Octávio no automóvel (o rosto enchendo inteiramente o écran) que nos dá a notícia duma angústia, ou duma dor, que "cortam" (no exacto sentido do termo) quaisquer acordes demasiado perfeitos. Nem tudo continuará como dantes "quando o meu corpo apodrecer e eu for morto" nem tudo será despido dos sinais do humano. Mas "outros amarão as coisas que eu amei" (estou a citar Sophia).
As vertentes convergem, com o vértice nesse grande plano que não obnubila o resto, mas lhe impõe a marca do protesto adulto.
Só Deus termina cada coisa segundo a sua esperança. Como dizia Píndaro. Para os homens, continuando a citá-lo, fica sempre alguma dor quando vogamos para a margem imaginária.
Ana é o filme dessa navegação para essa margem imaginária. Na ligação inconsútil ao terreno (a túnica de Miranda) e na ligação não menos inconsútil ao que uma criança recordará pela vida fora, criando ou recriando o espaço mágico dessa navegação. Sôbolos rios, entre os rios.
Alguns dirão que neste filme nada se passa, que não há narração. Serão os mesmos que a não saberão achar no diálogo de Platão, na ode de Píndaro ou no Babel e Sião de Camões. "Fraqueza da humana sorte: / que quando da vida passa / está recitando a morte". "Recitar a morte", do Ulisses de Homero ao Ulisses de Joyce foi o único e supremo fito da narratividade.
Ana é, entre muitas outras coisas, o filme da compreensão disso. Se se lembra na ausência, é porque o seu espaço não é o da memória, "senão o da reminiscência".
Continuando - e concluindo - em Camões: é o filme que sobe da sombra ao real "da particular beleza / para a beleza geral".
(FIM)
João Bénard da Costa
Jornal Diário de Notícias, pág. 9, 1 de Janeiro de 1983
O cinema faz-se poesia, perde âncoras, ganha espasmos. Há um universo a receber, um mundo de coisas essenciais e antigas que regressa ao nosso coração. E também incomonidades [incomodidades], asprezas [asperezas]. Como diria Truffaut, Ana é um grande filme doente.
"ANA"
De António Reis e Margarida Cordeiro
A poesia, o que é? A transfiguração do mundo na cabeça do poeta, devolvida até nós através de sinais urgentes, às vezes cifrados, outras trazendo consigo límpidas revelações. A poesia não se racionaliza, nem é só sentimento, vive no cruzamento do saber com outras coisas que não sei se têm nome, mas existem. A poesia traz sempre consigo a edificação de uma realidade que só é também a nossa porque, para que aconteça, é preciso que fale de algo de essencial: amor, morte, espantos.
Não sei se alguma vez o cinema foi poesia; com Ana, é. O crepitar do fogo rima com o ruído ciciado da seara cortada à foice, as cortinas de linho ondulando sobre a criança nua ligam com os frutos à janela, a ama – nossa – senhora em altar postada tem a íntima verdade das pedras românicas, a paisagem agreste e turbada de Trás-os-Montes é o cenário do princípio do mundo, este filme chama a si toda a memória aninhada nas concavidades da alma, esse vício (como diz Agustina/Oliveira), para a espalhar em pedaços de cinema, imagem e som (o som é fundamental em Ana) – dir-se-iam visões, e são.
A poesia não se contrabandeia neste meu texto, está no filme para quem a puder (e quiser) partilhar.
Mas terá a poesia arrebatamento que baste para obliterar o que neste filme arranha, quer dizer, nos acorda do êxtase para a fria realidade da matéria?
Por exemplo: as falas sincopadas – «falsas» – de todos os intérpretes não deixarão o espectador ancorado nessa aspereza e, portanto, menos disposto ao embarque na nave do mistério? A evidente obscuridade do estatuto dos personagens (quem é o fulano? porque está ali? o que faz? que tempo é antes, que tempo é depois, quanto tempo?), as marcas de «construção» (um olhar antes de tempo, uma impaciência, um símbolo demasiado óbvio e gasto – lembrando a jovem Ana de vermelho/verde vestida), e suma, tudo o que não desliza e fica entre realidades (nem naturalismo, nem ritualização) não fará empalidecer a luz vivíssima que, a espaços, este filme ergue?
Eu sei: a poesia é a arte da manipulação da matéria, depois do poeta passar nada tem a espessura anterior. Não peço que me contem uma história; gostaria é de nunca sair do enlevo – e saí, várias vezes, por portas bem incómodas. No fundo, este filme é capaz de ser perfeito e, aqui, ali, tosco, irrespirável de exactidão e, mais adiante, a esvair-se. O que mais turba: sente-se que foi feito como se fosse a mais importante tarefa de uma vida, nos limites do amor; por isso, aquilo que comunica é tão intraduzível, por isso aquilo em que não acerta é tão doloroso, tão irritante.
O caminho de António Reis e de Margarida Cordeiro tem já balizas. Num primeiro filme (Jaime) fez-se uma aproximação a uma realidade exterior (um homem louco, que pintara obsessivamente nos últimos anos do seu internamento no Hospital Miguel Bombarda); num segundo voo (Trás-os-Montes) há já um investimento pessoal (a terra-mãe de Margarida Cordeiro), um rebuscar em si; neste terceiro filme (Ana) esse caminho atinge a célula familiar (Ana Maria Martins Guerra, a protagonista, é a mãe de Margarida Cordeiro) naquilo que ela tem de mais forte, a ligação maternal. Curiosidade à medida que o universo «temático» (palavra incorrecta, mas que uso para simplificar razões) se fecha, o cinema abre-se, perde amarras realistas, por um lado, e estende-se à percepção cósmica das coisas, por outro.
Ao mesmo tempo, António Reis e Margarida Cordeiro arriscam cada vez mais (eu diria que Ana vai do infinito ao infinitésimo, do mais pequeno e simples gesto, à harmonia dos astros no seu movimento através do céu...), esticam a corda do possível, trabalham em território não sinalizado, desbravam. Ganham e perdem. Ana é um filme que quer o fogo sagrado e rouba-o dos céus – mas não sempre, mas não por inteiro.
Resta dizer que há que retribuir a este filme amor com amor serenidade com serenidade, franqueza com franqueza. Com a certeza que esse lago circular, matriz do universo, que fecha Ana, tem em si inesgotáveis filhos para oferecer ao nosso olhar: os próximos filmes que hão-de fazer.
P.S. A Comissão de Qualidade, com a competência a que já nos está a habituar, recusou a Ana a classificação de «filme de qualidade». O texto que atrás fica escrito mostra que não pertenço aos que afirmam obra-prima o mais recente filme de António Reis e Margarida Cordeiro. Isso não impede que, não sendo cego, nem surdo, nem duro de coração, considere Ana uma obra de enorme fôlego que ousa organizar materiais cinematográficos de forma inovadora, brilhante – revolucionária? É absolutamente infame que um conjunto de pessoas, nomeadas pelo Estado, para avaliarem filmes em seu nome, sejam a tal ponto insensíveis, embotadas, incompetentes. Depois dos casos de Diário íntimo, de Paulina na praia e, agora, de Ana a única atitude a tomar é exigir a demissão urgente de tal comissão. Há limites para tudo.
Jorge Leitão Ramos
Jornal Diário de Lisboa, pág. 19, 5.ª feira, 9 de Maio de 1985
"Ana": as águas, o leite e o sangue
1.
A estreia comercial de «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, vem levantar, com a máxima acuidade, questões de política cultural e cinematográfica e questões de crítica cinematográfica, que a inércia dos dispositivos de repetição rotineira (consumista) tende a escamotear.
2.
Problemas de política cultural e cinematográfica, em primeiro lugar. «Ana» é o terceiro filme de A.R. e M.C., depois da curta-metragem «Jaime» (1972) e de «Trás-os-Montes» (1976). Terminado em 1982, após seis anos de um trabalho obsessional e rigoroso, e realizado em moldes de extrema economia (filmado em 16 m/m, com uma equipa técnica restrita e com actores não-remunerados), «Ana» viu-se reconhecido pela crítica internacional, foi exibido em importantes festivais (Veneza, Figueira da Foz, Roterdão, Berlim e na Semana dos «Cahiers du Cinéma»), obteve o 1.º prémio («Espiga de Oro») da Semana Internacional de Cinema, de Valladolid e foi exibido em vários países europeus (nomeadamente, em 1983, em Paris, durantes três meses). Apesar disso, e sem escândalo, como é nosso hábito, só três anos depois de terminado «Ana» é estreado comercialmente em Lisboa, numa sala ainda desconhecida do público, sem conseguir sequer obter a menção de «Filme de qualidade» na Comissão para a Classificação dos Espectáculos e arriscando-se a passar despercebido do público português.
Poderíamos exibir a nossa indignação ou perplexidade, como fazia João Lopes, no «DN» de 30-6-83, quando, a propósito de «Ana» falava de uma «maldição interior ao cinema que se faz em Portugal». É que o problema, que aliás não se restringe apenas ao cinema, é, de facto, doloroso e embaraçante. Condições histórico-culturais que nos são próprias permitem que no país economicamente mais atrasado da Europa floresçam artes de vanguarda (da poesia de «Orfeu» à pintura de Amadeo e de Vieira da Silva e ao cinema de Manoel de Oliveira, de António Reis e de Margarida Cordeiro e do João César Monteiro de «Veredas» e de «Silvestre») que condensam traços de identidade cultural que nos são específicos, mas a imaturidade de uma pequena burguesia gestionária («provinciana», como diria Fernando Pessoa»), aculturada à pressa para o consumo dos padrões do pronto-a-servir internacional, compromete, hoje como ontem, o desenvolvimento apoiado destas emergências de uma sensibilidade que é nossa e que rejeitamos porque não se quadra com os modelos artísticos que importámos.
Mas será a repetição (da rejeição de valores nacionais) inevitável, como se de uma maldição realmente se tratasse? Ou será ainda possível premiar (estimulando e fornecendo condições de trabalho) um cinema português de qualidade, uma escola portuguesa de cinema?
3.
Problemas de crítica cinematográfica, em segundo lugar. Que escrever sobre um filme, sobre este filme? E mais genericamente: O que leva os críticos a escreverem como escrevem, quais são os seus pressupostos e finalidades? Como concebem a função da crítica? A que níveis fazem incidir o seu trabalho e que outros níveis de análise elidem ou escamoteiam? O que pretende o público dos seus críticos e que pretendem os críticos de si mesmos? Todo um campo de questões para um vasto debate, que certamente se tornaria esclarecedor se, por exemplo, fizéssemos uma análise comparativa das diversas críticas a «Ana» (ou se os críticos quisessem entrar na clarificação destas questões).
4.
Problemas que com este filme fortemente se agudizam, na medida em que «Ana» é um filme em ruptura com a imagem dominante da construção e da função cinematográficas. E isto porque, levando muito mais longe o trabalho iniciado em «Jaime» e em «Trás-os-Montes», com uma coerência que só com «Ana», retrospectivamente, podemos visualizar, mas agora com uma segurança e um equilíbrio superiores, A.R. e M.C. constroem um objecto fílmico que não corresponde às expectativas deixadas em nós por décadas de ficção narrativa cinematográfica e que, num primeiro momento, é definível apenas pela negativa. «Ana» não é uma ficção narrativa e se o espectador o quiser ver como ficção narrativa, «Ana» será um filme deceptivo, porque nele nenhuma história se nos conta. Os lugares são relativamente indefinidos, os tempos imprecisamente delimitados, as relações entre personagens quase imateriais, e as categorias lógicas do real e do fantástico, contaminadas. Mas «Ana» não se deixa captar por qualquer outra categoria fílmica delimitada a priori. «Ana» não é, também, um filme biográfico, nostálgico ou confessional (como diz António Reis, numa entrevista, ele não é conscientemente, psicologista ou simbólico), como não é, igualmente, um devaneio esteticista, um documentário sobre os hábitos transmontanos, uma recolha antropológica ficcionalizada, ou a simples expressão ideológica intelectualizada dos conflitos cidade-campo (à boa maneira ecologista, ou de «retorno à natureza») ou das tensões técnico-demográficas e sociais causadas em Trás-os-Montes pela emigração masculina.
5.
Suponho que um objecto como «Ana» se torna incompreensível se não tivermos em conta a diferença que existe entre as nossas formas superficiais de raciocínio (atomísticas, binárias, sociomiméticas racionalizantes) e as formas emergentes de elaboração, mítico-simbólicas (que Freud designou como «processo primário», inconsciente), e essencialmente cénicas, analógicas e fantasmáticas.
Embora seja particularmente difícil «traduzir» em linguagem corrente esse nível de emergência pré-intencional, poderíamos dizer que «Ana» parece ganhar um sentido pleno se considerarmos as tensões múltiplas que nele se afirmam e se elaboram, como uma encenação paradoxal em que, simultaneamente se afirma a fecundidade que se contém na morte e a morte que se contém na fecundidade (no espaço-quase-corporal e ao mesmo tempo imaterial e mítico-religioso, para o qual não temos designação consciente, e que assimila, num todo cujo tempo é cíclico, o cosmos, e os seus astros, o corpo da terra, suas águas e ventos, florestas, searas e animais, a casa materna, e o seu fogo e pessoas, com o corpo-ventre feminino matriarcal) e, num segundo nível, só aparentemente contraditório, se elabora o luto por um matriarcado que se apresenta em perda num mundo em que não emergem alternativas securizantes à incerta segurança que se organiza como força mítica, imortal, na caducidade do corpo materno (e essa preocupação fica bem expressa no modo como Mãe Ana inicia a sua filha, Ana, ao pânico simbólico pela fragilidade dos valores masculinos, materializados cosmicamente num eclipse do Sol. Esta tensão entre a força do feminino, estruturadora do quotidiano em que a vida e a morte se vivem e se jogam, a partir de um suporte mítico (as reminiscências panteístas e sincretizantes da religião arcaica da Grande Deusa Mãe) e de uma estrutura social (os resíduos da organização matriarcal da resolução das necessidades básicas, essencialmente alimentares) e a sua própria fraqueza central - o sangue como condição corporal incontornável por onde, de todas as bocas do corpo, se esvai a vida, para que vida nasça, esta tensão paradoxal, dizíamos, não tem solução em «Ana» senão na própria multiplicação de «Anas», de geração em geração, ciclicamente, embora, e pelo contrário, uma solução alternativa se aponte na transmissão do poder ao masculino (centrado não na figura subalternizada e excluída do homem adulto, mas na figura do menino - Alexandre - que, na economia do filme, ocupa o mesmo lugar que o filho divino na economia dos mitos incestuosos arcaicos da religião da Grande Deusa Mãe, de que Ana é, exactamente, um dos mais antigos nomes).
6.
A solução social e religiosa que leva a colocar a figura matriarcal de Ana como axis mundi e pilar da segurança emocional e prática, é a mesma que conduz a uma divisão sexual do trabalho e das responsabilidades e preocupações (bem como dos espaços) em que a realidade mítico-simbólica quotidiana seria feminina (sendo-lhe entregues a natureza e a casa, o nascimento e a morte, a alimentação e o trabalho produtivo) e o refúgio na fantasia seria masculino (cabendo-lhe o controlo e a transmissão dos saberes inúteis, fantasmáticos, da ciência e da história, e a deambulação pelos espaços exteriores). Nesse sentido, na harmoniosa construção do filme, a «troupe» circense, masculina, viria equilibrar o espaço feminino familiar de «Ana», indiciando o destino lúdico e marginal do homem na sociedade de matriarcal pacífica (na casa de Ana, a fecundidade seria das mulheres, no circo, pertenceria ao trabalho do mágico, capaz de, no mundo da ilusão, de tirar de caixas vazias ou de sacos uterinos, filhos-animais; no mundo de Ana, o poder tende a deslizar para uma criança masculina – Alexandre, com seu nome de guerreiro - enquanto que no mundo circense é uma miúda que se equilibra sobre a bola-mundo: o animal totémico de Ana é uma vaca leiteira – Miranda – enquanto que no circo masculino o animal totémico é um animal lúbrico e dionisíaco, uma cabra). E essa divisão sexual do trabalho, do poder e das responsabilidades levar-nos-ia a dar maior atenção ao espantoso plano-sequência onde, contraponticamente, o mundo masculino mais se afirma e no qual, a coberto de curiosidades «científicas» e de interesses «pedagógicos» se discutem, entre homens, no mundo substitutivo dos livros e dos saberes verbais, a história simbólica das origens (sociais, mas também, corporais – Entre Rios / na Mesopotâmia – bem como as dúvidas masculinas sobre os ganhos de segurança que o progresso possa ter historicamente introduzido nos meios flutuantes que os homens dispunham para deslocar a sua fragilidade sobre o ameaçador mundo aquático – materno – que só Mãe Ana, em imagens de rara beleza plástica e simbólica, se mostrará capaz de dominar).
7.
Dois gritos atravessam o silêncio deste filme, equilibrando o ruído excessivo da natureza (das águas cósmicas iniciais e dos ventos intempestivos que antecedem a morte). Dois gritos femininos (o apelo, a nomeação e o grito são femininos, opondo-se na sua contenção, à verbosidade que a perplexidade introduz no mundo do discurso masculino), chamando por Miranda (o passado, a paz, a terra-mãe, a fecundidade animal), animal totémico que permanecerá no lugar abandonado pela morte de Mãe Ana, e Alexandre (o lugar frágil do futuro, do filho, da força violenta implícita no seu nome de guerreiro. A ambos se dirigem as palavras-testamento de Mãe Ana, depositando as suas preocupações providenciadoras nas mãos escassas da filha jovem adulta.
Mas, Miranda não é apenas um nome de animal, ou um topónimo regional. Em «Ana» ele é a própria matriz do qual emergem as tensões que na figura matriarcal se concentram e que condicionam a elaboração formal do filme. Mira(r) e anda(r) são, ciclicamente, os dois tempos e os dois grandes centros tensionais da presença de Mãe Ana, organizando formalmente o filme pela oposição entre uma encenação estática, quase-ritual, essencialmente pictórica, dos momentos iniciais da fecundidade (a lenda da ama / Virgem do leite), em que cada cena se constrói na harmonia arcaizante de um quadro flamengo (no mundo interior e obscuro da casa, onde a visão é difícil e o olhar essencial) e os grande movimentos da câmara que acompanham, no mundo exterior da natureza, a marcha feminina (ora caminhada apressada da Mãe Ana ou de uma miúda que no final a substitui, ora deslizar rápido e intemerato de barca por sobre os rápidos de um rio agitado, ora circulação vertiginosa de boieira lavrando a terra pela mão de um menino).
8.
Cinema de tempo cósmico humanizado, sem pressas, respirando e degustando lentamente os ritmos vitais da noite e do dia, das estações da natureza e das idades dos homens, jogando habilmente com a escuridão e com a luz, com o simbolismo dos nomes, das cores e das acções corporais (mirar e andar são as duas faces do cinema), trabalhando cuidadosamente o familiar e o estranhamento mágico que decorre do ruído excessivo e do silêncio importuno (como nas imagens em que, de carro, o filho corre ao encontro da mãe morta), compondo cuidadosamente o visual e o literário, na oscilação entre a teatralidade ritual e a literalidade do quotidiano, «Ana» apresenta-se-nos como um cinema da cumplicidade enigmática entre todas as ordens e condições do ser (cósmico e humano, vegetal e animal, intelectual e lúdico, religioso e prático, masculino e feminino, vivendo-se pelo nome e pela acção, pela água e pelo sangue, na casa e no mundo exterior), em que o principal (como nos seus filmes anteriores) se situa aquém do discurso e da racionalidade, na ordem analógica das coexistências e das simpatias, das correspondências, das simultaneidades e das fusões, naquele lugar do tempo onde a morte e a vida se indistinguem na plenitude mortal de um «sentimento oceânico», feito de águas, de leite e de sangue.
A impossibilidade de separarmos, em «Ana», o conteúdo, a forma e o clima é a marca principal da radicalidade poética deste filme e o sinal que nos encontramos perante uma obra quase perfeita, na sua trabalhada imperfeição.
José Gabriel Pereira Bastos
Jornal da Letras, págs. 9 e 10, de 14 a 20 de Maio de 1985
DISCURSO INOVADOR FEITO DE REGRESSO ÀS ORIGENS
«ANA»
MONTANHA
VOLTA A SER MÁGICA
FINALMENTE «Ana», de António Reis e Margarida Cordeiro, acabou por estrear-se, ao fim de uma série de vicissitudes e contrariedades. O percurso muito próprio e muito pessoal dos seus autores estabelece dificilmente um «modus vivendi» com o sistema. «Ana» é um filme que nada tem a ver com o que o rodeia. Esta independência, este caminho que já vem de «Jaime» e de «Trás-os-Montes» faz da obra de António Reis e de Margarida Cordeiro um caso à parte.
Escrevemos acima que «Ana» é um filme que nada tem a ver com o que o rodeia. Vistas as coisas de outra maneira talvez tenha a ver com tudo. «Ana» equivale a algo de muito profundo, a sentimentos, a sensibilidades e a culturas aparentemente perdidas mas que jazem adormecidas dentro de nós. O filme de António Reis e Margarida Cordeiro vem de muito longe, da noite das origens, mas, curiosamente, está perto da nossa sensibilidade e, nesse sentido, concordamos com várias pessoas que têm afirmado que «Ana» se liga à maneira de ser portuguesa mas não no sentido mais imediato. Pelo contrário. Essa ligação tem a ver com um relacionamento homem-terra, homem-mundo, é vasta e complexa, abarcando uma área tão imensa que se torna difícil, quando não impossível, delimitá-la por fronteiras.
«Ana», que à primeira vista parecerá um filme só habitado pela memória, transforma-se numa vivência. Ao contrário do que acontecia com a sua longa-metragem anterior, António Reis e Margarida Cordeiro colocam esta obra tão esperada não numa determinada província ou região caracterizada mas num estado de espírito. Claro que este estado de espírito tem uma tradução geográfica mas, se olharmos para as montanhas veremos provavelmente mais do que lá está, outras paisagens ainda, ou então pode acontecer que cada um tenha a sua montanha.
«Ana» está longe de ser um filme hermético. Mas habita outro tempo, possui outra respiração e mostra outro ritmo. Contar uma história ou montar um espectáculo, são totalmente alheios à sua essência. Numa palavra, não é disso que se trata e quem procurar por esse caminho ficará com certeza desiludido.
O regresso
O tempo é diferente dentro de outro tempo. Nesse sentido, «Ana» é o menos convencional dos filmes, não respeita nenhuma das regras a que a produção massificada foi pouco a pouco habituando o espectador, quase o amolecendo nas suas escolhas. Ele está, muitas vezes, mesmo sem dar por isso, à mercê de um produto estandardizado.
Com «Ana» encontramo-nos num cinema que não é susceptível de se medir pelos padrões normais. Diríamos que se trata de um filme belo mas com uma beleza que tem a ver com um discurso inovador. Curiosamente um discurso inovador que se faz através de um antiquíssimo tempo de regresso às origens, onde coexistem ecos de infância e de crepúsculo a cada canto, onde somos transportados a um país longínquo que outrora habitámos e que um dia – quem sabe? – voltaremos a habitar. Pela mão de António Reis e Margarida Cordeiro regressamos «lá» onde os olhos de uma criança, o voo de um pássaro, o ondear de uma seara, o calor do lume na lareira podem ter ainda significado.
Não existe continuidade de sequências, mas antes «momentos» que poderão equivaler a impressões fortes deixadas em nós e que não se pautam pela habitual sucessão cronológica. O fogo, o leite, a água, o vento, sentidos de uma maneira nova, são alguns dos tais elementos que mergulham nas raízes e a partir dos quais se constrói um universo de reminiscências e de anseios. António Reis e Margarida Cordeiro falam também da «dialéctica» da luz e não há dúvida que ela representa também um papel muito importante no olhar do filme, o elemento visual jamais terá sido tão nobre. Aliás, os tais momentos têm sempre um ponto comum e esse ponto comum é um profundo sentido da terra desocupada, neste caso pelos que emigram, mas que através dos olhos das crianças, dos adolescentes, dos velhos, volta a ser povoado pela emoção e pela lembrança. «Ana» confirma a via especial que António Reis e Margarida Cordeiro escolheram e se espera que desenvolvam.
José Vaz Pereira
Jornal A Capital, pág. 23, de 9 de Maio de 1985
1989, Rosa de Areia
António Reis era um poeta - e o seu cinema para o lugar da poesia se foi sempre dirigindo. Para o bem e para o mal. Para o bem, se considerarmos que trabalhou os materiais fílmicos com uma liberdade estética inigualável, propondo-nos conjugações de uma sedução sem nome. Para o mal, se quisermos que o cinema se pratique nos domínios da inteligibilidade - e os caminhos de Reis foi no sentido da progressiva opacidade.
Tomemos Rosa da Areia - e digamos, à partida, que é um filme onde se percebe nada, onde é estulto buscar um fio narrativo, uma história, um saber. Mas, ao mesmo tempo, é um objecto de uma beleza desmedida, onde entrevemos qualquer coisas para a qual ainda não encontrámos palavras – para a qual suspeitamos mesmo que as palavras são desperdício. Qualquer coisa que se nos impõe pelo deslumbramento – e nos confunde pelo labirinto. Qualquer coisa que não saberemos dizer sobre que fala, mas sentimos que está entregue à autonomia audiovisual, no limiar de um cinema-outro. Qualquer coisa que nos diz nada mas nos agarra por motivos inesperados, conjugações, surpresas, encruzilhadas.
Qualquer coisa arrogante - também - e, nesse sentido, magistral será um adjectivo adequado para o qualificar.
É Rosa da Areia um grande filme? Não faço a menor ideia - de tal maneira escapa a todos os padrões, escolas, modelos, bitolas. Visto num grande «écran» de uma sala escura - e, jamais, num televisor - devo dizer que me fascina, incomoda, maravilha e enfada, sucessivamente e, às vezes, tudo ao mesmo tempo. O mais irritante é que, apanhado pela estupidez da morte, não foi permitido a António Reis prosseguir o seu caminho - depurar a poesia fílmica que andou perseguindo. Fica-nos a sensação de que Rosa de Areia é um objecto de meio de jornada. Imperscrutável, intrigantemente diverso.
Jorge Leitão Ramos
Jornal Expresso, Cartaz, pág. 24, 28 de Janeiro de 1995
FLOR DO DESERTO NASCE NO ASFALTO DE LISBOA
Após os 90 minutos de projecção na sala da Cinemateca, tudo o que se disser sobre «Rosa de Areia» soa a tagarelice. Quando o silêncio fala assim, só resta calar. Tal como está construído (e destruído, no ritmo dialéctico que é a sua respiração) o filme impõe-se como um dogma da santíssima trindade. Talvez por isso ouviu-se na sala da Cinemateca, por duas vezes, a palavra «religioso». Claro: é religioso o que religa todos os contrários e antinomias, a palavra ioga até serve melhor para expressar isso. Agora no sentido confessional e apostólico de qualquer credo – é caso para dizer, credo, canhoto, abrenúncio, o filme não tem nada de religioso, nem de comprometido com a ideologia ou sistema, puro como Deus o deu ao mundo. O que é, desde logo, outra das suas intransponíveis dificuldades propostas ao crítico aflito que o queira analisar.
Depurado se poderá dizer também que ele é, rejeitando «a priori» concessões e facilidades, quer ao gosto estereotipado do público quer às estéticas de consumo em vigor no mercado. «Rosa de Areia» vai-se naturalmente destilando, até não se parecer com nenhum outro produto fílmico, com nenhum outro autor, ficando isolado num deserto de referências, numa atitude que alguns dirão «mística», mas que é apenas o método Zen de rarefazer o acessório para atingir o essencial na muge. Vistas bem as coisas e já que o filme ensina a ver, de místico e metafísico nada ele tem. É físico, o mais físico que há: o professor Baptista, militante, atómico cá do burgo, aparece como figurante a sair de uma aula de Física, que por sinal é o Observatório Astronómico da Ajuda. E como ele gosta de isótopos, este professor Tournesol!
António Reis, no breve debate pós-projecção, aludiu a uma das chaves do filme: optou-se por uma estética dos materiais. Ali, de facto, joga-se com os materiais mais duros e puros, desde a rocha granítica e basáltica, à areia (sempre areia), às palavras (como pedras), às cores, aos tecidos, aos ladrilhos, aos azulejos, à água, às palhas, ao vinho (do Porto!), ao mar das searas, ao oceano da terra, praticamente todas as texturas físicas ali comparecem.
Para ler verso a verso
Outros perguntarão: onde se passa o filme, em que época, em que lugar? E só há uma resposta, se resposta há: é de todos os tempos e de nenhum, é de todas as partes e de nenhuma parte. Leiam alguns textos do budismo primitivo e encontrarão lá, em glosa moderna do meu compadre José Matos-Cruz: «Vindo de algures, de nenhuma parte e indo para parte nenhuma».
Intemporal, então, o filme de Margarida Cordeiro e António Reis? De modo nenhum: a «durabilidade» ou efemeridade da condição humana ressalta ali com imensa e terrível violência. Então alguém dirá: é um filme de angústia existencial. Também serve.
E quanto ao espaço? Vem do princípio do mundo, como logo se percebe pelas urzes ainda tão frescas e aquele ar de montanha carregado de iões negativos. Só faltou a Margarida e António Reis irem filmar as furnas dos Açores, contemporâneas dos Atlantes.
A propósito: ouvi mal ou lá se diz que somos contemporâneos de tudo o que amamos? No entanto, a morte é ali soberana, um facto igualmente físico, um poder que ri dos poderes nucleares e outros que o homem soltou. A transmigração das almas, se existe, não impede que os corpos se dilacerem ao afastar-se e que a saudade seja um fenómeno tão físico e concreto como os demais. Pai e filha estão ali, à beira do túnel, para se despedirem, numa das imagens mais patéticas que o filme contém.
Quem não chorar, é covarde.
Mesmo como pode haver dramatismo num poema zen que literalmente rejeita as «dramatis personae», a intriga, a história, a sequência, o suspense, enfim, aquele arsenal useiro de que se faz o cinema de consumo em geral e as séries televisivas em particular?
Talvez porque, recusando isso tudo, «Rosa de Areia» assume a responsabilidade de se autobastar fotograma a fotograma, sequência a sequência, plano a plano, todos com princípio, meio e fim, como se fossem filmes dentro do filme.
Quer dizer: se sincoparmos a visão deste filme, sequência por sequência, nada se altera da emoção recebida. Ao contrário de um policial, de uma história de aventuras, de um serial erótico-violento ou de qualquer outra pepineira de que está cheio o mercado da chamada «ficção», ao contrário disto tudo, um poema como «Rosa de Areia» é para ler verso a verso, estrofe a estrofe, de trás para diante e diante para trás, sem que nada disso altere uma vírgula da sua densidade significante.
Vasco Granja, que também «animou» o debate, lá foi falando de poesia, enquanto António Ramos Rosa, do outro lado da sala, mantinha o silêncio poético da sua natureza silenciosa.
O filme auto-sustenta-se fotograma a fotograma, sem muletas de espécie nenhuma: penso ser este o elogio a fazer-lhe, se é que há elogios para um filme que tudo recusa, incluindo os piropos – ou desagrados da crítica.
Uma Liga de Amigos do cinema poético, como disse Carlos Porto, também na assistência? Acho que não, Carlos: cada cidade, cada país e cada povo tem, no fim de contas, os Batman que merece. E se nós não merecemos a obra de Margarida Cordeiro e António Reis, o mal é nosso, não é deles, e o prejuízo é do País. Nós, como deficientes mentais, é que precisamos de uma Liga de Amigos. Não andamos nós, Carlos Porto, há mais de 30 anos, à espera de que um editor neo-realista nos edite? E, no entanto, ainda não morremos. Margarida e Reis também vão aguentar o silêncio, descansa.
A pista de obstáculos
Cada cidade tem as vereações e presidências que merece e nós, alfacinhas, merecemos esta latrina de tapumes, buracos e esterco, que é hoje Lisboa, tudo se passando, também, na cumplicidade do silêncio. Nunca a Cinemateca me pareceu tanto uma ilha rodeada de todos os lados, como, no sábado passado, para ir até à qual (ilha), ver «Rosa de Areia», se tem de atravessar uma pista de obstáculos intransponíveis. Lisboa é toda ela, neste momento, um pesadelo, que vai atropelando gente como num açougue.
E, no entanto, as pessoas lá estavam, a horas, antes das 11, como se vivêssemos numa cidade a sério, num país a sério e fôssemos um povo a sério. Como queremos nós merecer a obra de Margarida Cordeiro e António Reis? Vamos deixar «Rosa de Areia» sem exibidor, tal como deixámos degradar uma cidade, um país e um povo ao ponto a que nós deixámos, sem um miado dos multimédia rastejantes. Que sentido fazem, Carlos Porto, as ligas de Amigos e de protecção à Natureza?
Os exibidores andam distraídos, coitados, com outras folias? Deixá-los andar, também não lhes ensinaram outra coisa. O Estado arreda-se da sua obrigação mecenática, deixando ao desamparo os Fellini, Buñuel ou Rosselini que por aqui forem nascendo? Deixar o Estado, coitado, para infelicidade já lhes basta ser quem é: um agregado de suinicultores, gerido por halterofilistas do Fisco. O público, ainda mais infeliz do que o Estado, não tem olhos para ver? Mas tem, coitado, as greves que as centrais sindicais decretam contra ele, o que é, desde logo e só por si, fonte de manifesta alegria e justiça social.
Quanto ao Instituto Português de Cinema, que não financiou esta obra, é outro nado-morto, o infeliz: paz também à sua alma e que repouse em paz, financiando até à eternidade as fitas do eterno Manuel de Oliveira.
A propósito de bichas por causa das greves: Sabendo-se que «Rosa de Areia» recusa também tudo o que cheira a símbolo, metáfora ou alegoria, porque há tantos seres rastejantes ali, até uma cobra, literalmente falando? Quererão os autores explicar se foi por acaso? E porque gostam eles tanto de filmar as pessoas de costas, tal como Bresson, por exemplo, com toda a ternura do mundo, gostava de filmar os pés?
Tempestade no deserto
A propósito de Bresson: o filme recusa qualquer filiação, ascendência ou paternidade de outros autores. Também aí, «ex-niilo». Também aí, auto-suficiente. Também aí, alfa e ómega de si mesmo, o que atrapalha ainda mais os pobres dos críticos, sexualmente impotentes para fazerem belíssimas exegeses com base nas influências de Jean Rouch, Godard, Antonioni, Manuel de Oliveira, Straub, Fernão Mendes Pinto.
É que não há nada, por mais que esgravatem na terra dura. A propósito de terra, não gostei de duas imagens demasiado elaboradas, onde o material deixa de surgir em bruto. É a rocha com sinais de dinamite, ao lado da qual se filma a linda imagem da mulher «dormindo» num leito de papoilas e um outro artifício que eu pergunto, de imediato, aos autores: no palheiro, onde entram, oblíquos, os raios de sol, confessem lá, vocês puseram um holofote laranja para evidenciarem aquele olho de água crescendo? Foi ou não?
Ora um artifício de produção é algo que me parece deslocado num poema onde, contra o que parece, nada é artefacto, tudo é facto.
A meter-se pelos olhos dentro, como uma tempestade de areia no deserto.
LÁ FORA É QUE É BOM
Embora não tivesse entrado com um tostão para o filme «Rosa de Areia», o Instituto Português do Cinema não se cansa de o mostrar em todos os pontos do mundo onde é necessário manter bem viva a presença e o prestígio de Portugal como país da CEE.
Depois de ter sido incluído na Semana do Cinema Português, em Paris, no passado mês de Setembro, vai em Outubro à Flandres e em Novembro ao Canadá.
Quanto à obra completa de Margarida Cordeiro e António Reis – que inclui, como se sabe, «Jaime», «Trás-os-Montes», «Ana» e «Rosa de Areia» – a Cinemateca da Suiça acaba de comprá-la, na íntegra, e a Cinemateca Portuguesa tem programada para o início de 1990 a retrospectiva desta obra ímpar do cinema português.
Texto de Afonso Cautela – jornal A Capital, pág. 27, Quarta-feira, 11 de Outubro de 1989
O crepúsculo inicial ou a aurora final
Um filme
Le temps s’en va, le temps
s’en va, ma Dame;
Las! Le temps non, mais nous
nous en allons
Pierre de Ronsard
Em Berlim, Fevereiro de 1989, Rosa de Areia, o último filme de Margarida Cordeiro e António Reis, teve estreia mundial. Já estamos por demais habituados a estas primeiras núpcias de filmes portugueses no estrangeiro para que o facto choque alguém Devia chocar, mas não choca. Também não chocará quando daqui a bastante tempo (um ano? dois? três?) Rosa de Areia for finalmente distribuído em Portugal, eventualmente, até, primeiro na televisão (primeira também – honra seja feita – a apostar no filme) e só depois numa sala de cinema.
Continuará a não chocar se o público deixar a dita sala às moscas. E chocará um bocadinho – mas não muito, é fait divers – se uma douta comissão – como sucedeu com Ana – vier a declarar ex cathedra que o filme não tem qualidade. Um dia, depois, eu sei. Mas também sei que a longo prazo estaremos todos mortos. E para nos ressuscitar só fica o filme.
Não quero ser ave agourenta. Queiram alguns (não é preciso invocar o Santo Nome em vão) que as coisas se passem de modo diferente e de modo diferente se passarão. Já alguns, só alguns, quiseram que o filme existisse (RTP, Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Calouste Gulbenkian) e o filme existe. Mas, para ser inteiramente sincero, não creio, não creio que se vá além disso, nem que o filme seja recebido, em Portugal, de modo diverso do que o foram Jaime, Trás-os-Montes, Ana, os três sublimes filmes anteriores de Margarida Cordeiro e António Reis.
Neste pessimismo só eles me não acompanham. Os grandes visionários podem ter dúvidas, podem ter muitas noites de agonia, mas a sua fé move montanhas. E já é muito dissonante que eu comece este texto com tanto pessimismo. Por isso, a ele não torno. Porque vos vou falar de uma das grandes obras fundadoras e fundamentais que o cinema já nos deu. Perante ela, acreditamos que tudo pode estar ainda no início, esse início donde nos falam António Reis e Margarida Cordeiro.
Pegando no epígrafo de Ronsard, só nós é que nos vamos. O tempo não, o tempo não, minha senhora.
Tratar por tu o universo
Por isso, em Rosa de Areia, o tempo pode ser nenhum (rigorosamente indefinido como em tantos planos acontece), pode ser a Idade Média, o século XV, o século XVI, ou pode ser o tempo futuro, o tempo de que Carl Sagan nos fala noutro plano do filme. Por isso, também o termo plano é pobre e particularmente desajustado. Dizer plano-sequência (e, na verdade, o filme é a soma e súmula de 97 planos a que se costuma chamar assim) não me ajuda, nem ajuda a entender a prodigiosa construção do filme. Porque não há diferença de significação e de significado, entre um plano de segundos de uma seara ondulante, ou de um campo de flores às vezes pacificado, e uma sequência de quatro ou cinco minutos que narra uma história: o porco executado ao abrigo de uma prescrição mosaica; o relato da imolação pelo fogo de centenas de camponeses esfomeados; a história do pai que ressuscitou dos mortos para dar de beber à filha um vinho feito de sol, de poeiras e de chuva.
Precisamente depois do episódio da execução do porco, precisamente depois do plano que a ele se segue – o mais erótico e críptico do filme – onde vemos os carrascos, de tronco nu, moles de músculos arrancados a uma revisitação cottafaviana do peplum italiano, a lavarem-se do sangue do animal, precisamente depois, dizia eu voltamos a ver as Parcas que desde o início nos conduziram nesta peregrinação. Estão junto a rochas e montes, como saliências deles e recitam um texto védico que nos pergunta para onde vão as meias-luas, para onde se apressam as virgens de diferentes rostos, porque nunca param as águas, porque nunca descansa o vento, porque nunca descansa o espírito. Que relação obscura existe entre o episódio anterior e esse plano (e já expliquei quão mal utilizo esses termos)? Pode responder-se que existe uma relação poética, como se pode chamar poema cinematográfico a todo o filme. Mas a palavra ou a expressão só não é redutora se a entendermos etimologicamente (no sentido da poiésis) e nos esquecermos de qualquer conotação com as definições pasolinianas de «cinema-poesia». Não há cinema mais directo, menos subjectivo (mesmo que se pense na «subjectividade livre» de Pasolini) do que o cinema de Margarida Cordeiro e António Reis. Jamais os autores penetram na alma dos seus personagens (se existem personagens e se têm alma) adoptando a sua psicologia ou a sua língua, para continuar a seguir a teoria do autor de Teorema.
Essa penetração, mesmo entre eles, parece impossível. No final, uma voz em off pergunta ou insinua que «é preciso, talvez, escolher um fio, ao acaso». Obtém como resposta (ou como continuidade) que «a ideia destas histórias é tua, e não sou eu que vou interferir nelas». E as últimas palavras do filme, junto à terra nua que fora também (pelo ecrã da parede) sua imagem inicial, dizem «e, no entanto, será que houve, jamais, alguma coisa, nalgum lugar, nalgum tempo?».
Quem é o «tu» a que se atribui «a ideia destas histórias»? Quem é o «eu» que não vai interferir nelas?
Como Bachelard um dia escreveu (no prefácio à tradução francesa do Ich und Du, de Martin Buber), a questão é irrelevante quando transcende o substancialismo do primeiro pronome pessoal: «Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois – ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois – para compreender um céu azul, para invocar uma aurora. As coisas infinitas, como o céu, a floresta e a luz só acham nome no coração daquele que ama. A brisa das planuras, na sua doçura e mansidão, é o eco de um suspiro enternecido. Por isso, a alma humana, enriquecida por um amor eleito, anima as grandes coisas entre as pequenas. E pode tratar por tu o universo, porque conhece a embriaguês humana do tu».
Este texto de Bachelard é, porventura, a melhor explicação originária de Rosa de Areia e da singularidade, inocente e perversa, do seu olhar.
Muitos excertos de L’Air et les Songes podiam ser também citados.
Porque este é um filme «que trata por tu o universo», um filme sobre o ar e os sonhos, as flores e as árvores, o fogo e a pedra, o céu e a montanha, a luz e o som. E é essa grande coisa que é o cinema que nele se anima, tão convocada pelo olhar mais inicial, como pelo olhar mais crepuscular, num círculo em que o tempo mensurável e o tempo do destino são concêntricos. E, na passagem de uma terminologia bachelardiana a uma terminologia jüngeriana, Rosa de Areia é também o filme que nos recorda que é quando a noite é mais densa que o orvalho é mais fecundante.
Bachelard e Jünger teriam amado esta Rosa do Deserto, manhã de crepúsculos, crepúsculo de manhãs.
Um ordenado rigor
Disse o suficiente, julgo eu, para se ter já percebido que Rosa de Areia, ao contrário de Trás-os-Montes e de Ana, não tem um fio narrativo, pelo menos na acepção convencional do termo. Ténue era esse fio nos filmes anteriores, mas existia. Em Trás-os-Montes, transportavam-no as crianças, através da sua maravilhosa iniciação à magia e aos ritos. Em Ana, transportava-o a personagem titular, essa avó telúrica para quem a visão de um cometa e o apelo de uma vaca constituíam a mesma aura de sacralidade.
Rosa de Areia – apesar do lugar que no filme tem a mesma paisagem primeva e matricial – Trás-os-Montes, sempre como lugar de origem e lugar de fim – não segue essa estrutura guiada ou centrada. Os únicos guias no mundo deste filme, no tempo deste filme, são os autores, tão expostos quanto secretos para usar palavras deles. E expostos – mais expostos ainda do que nos filmes anteriores – porque a ordenação das imagens não obedece a outra lógica que não a do seu próprio imaginário, nunca tão assumido e tão fulgurante como aqui. Secretos – mais secretos ainda do que nos filmes anteriores – porque nenhum mensageiro se introduz entre eles e a mensagem que cada plano é. Nos planos iniciais julgamos encontrá-lo, quer no velador do sono das crianças, (aquele que lê um obscuro texto de Kafka que fala de «uma pequena comédia», de «uma inocente ilusão») quer na rapariga cega que um travelling acompanha, entre searas e ventos, paralelamente à câmara, na profundidade de campo, até depois se virar para ela – e para nós – do plano afastado até ao plano próximo.
Reencontramos muitas vezes ou algumas vezes essas personagens, se for legítimo chamar-lhes assim, mas não são mais condutores do que todos os outros que iremos conhecendo ao longo do filme. Esses, como todos, são relevos de um sonho oueds temporários onde nasce a rosa do deserto, para citar uma frase da brevíssima sinopse do filme. A sua missão – se missão tem – é apenas a de presidir à conformação dessa flor, a de nos acordarem ou adormecerem para a sua efémera fragrância. Quem são? Não sabemos, mas acompanhamo-los.
Do mesmo modo, guia não é o tema musical que ouvimos durante o genérico, as Variações Sinfónicas, de César Franck. Depois delas, nunca mais ouviremos música no filme e não prenunciam sequer uma estrutura a que a forma «variações» se possa aplicar. Num filme de tantos temas, não é possível «variar», mas apenas prosseguir, adensando. Por isso, depois, só há lugar para os sons e os silêncios – imagens sonoras tão relevantes como as imagens visuais – na banda som mais bem trabalhada de qualquer dos filmes de Cordeiro e Reis (e quem viu Trás–os–Montes e Ana sabe já da importância que os autores lhe deram nesses filmes).
Em duas sequências, voltamos a ouvir algo a que convencionalmente se pode chamar música. São as sequências em que surge uma mulher toda de negro vestida com um boomerang e depois com um tambor associadas ao plano em que se faz referência a guerras passadas, violências passadas, paroxismos e excessos. Como fantasma de um chefe guerreiro, ou do «soldado isolado» referido pouco antes, no diálogo, essa mulher – que nunca antes vimos e nunca mais veremos – parece simultaneamente desposar e chorar tal violência, ficando no filme como nota mais aguda dela. Com ela, a banda sonora explode, na percussão ou no silvo, em ritmos que, uma vez mais, tanto podem ser originários como prenunciadores de dissonâncias futuras.
Será por acaso que essa sequência – a mais musical – é a mais violenta?
Será por acaso que a ela se sucede o plano em que um dos autores – António Reis – surge no filme de costas para comandar o regresso da alma penada? («Vem, alma errante! (...) Vem comigo, alma! Para tua casa! Ao abrigo das tempestades, do vento e da noite escura!»).
Não o creio. As libérrimas associações do filme jamais parecem comandadas por acasos e nenhuma escrita automática é invocável a propósito deste filme, onde a ordenação mais oculta é a mais rigorosa.
(Continua...)
(Conclusão)
Com Deus diante dos olhos
É, pelo contrário, uma rima poderosa que unifica os episódios que se sucedem entre o belíssimo plano élfico das raparigas a correr na clareira do bosque (plano que fortemente recorda outro semelhante que existe em Ana e com a mesma função) e o episódio da ressurreição do morto. É a «secção» mais violenta e agreste do filme, desde que abandonámos um imaginário à Corot (o tal plano a que chamei élfico) e os discretíssimos rumores (guizos, chocalhos, sopros, brisa) da descida da fraga que ecoa o de Trás-os-Montes, e entrámos nas grutas e no oculto.
No alto de um monte, o vento é fortíssimo, muito mais implacável na sua estridência do que os corpos esvoaçantes que começam a evocar a guerra que parecem ver, mas de que apenas nos é dado esse off sonoro. Depois, os ruídos tornam-se mais misteriosos, dir-se-ia que «raspando» à própria imagem, como se o discurso de horror fosse mais o dos sons do que o das palavras. Um imenso travelling atira-nos para o fundo de uma cova num imaginário surreal, até um dos mais fabulosos planos do filme em que a câmara se imobiliza perante um cão negro e cego que parece arrancado ao mais tenebroso bestiário barroco, a Dionísio Minaggio e aos insólitos jardins dos governadores espanhóis de Milão do século XVI.
A essa imagem alucinante (que me evoca igualmente o plano da raposa n'A Caça, de Manoel de Oliveira) sucede-se a do poço com água amarela, que lentamente sobe e extravasa numa analogia mais misteriosamente horrível. E é depois que se sucedem as sequências do boomerang, da invocação de António Reis e do regresso da alma doente (outro fio oculto para Ana) com a composição soberba da imagem (o espelho, o corpo do jovem).
É, precedido pelo rufar do tambor da mesma mulher de negro, entramos no episódio que certamente mais dará que falar: a leitura do processo e sentença do porco homicida, na Vila de Castelo Branco, em Março de 1428.
Ao contrário da guerra (figurada na banda sonora, como disse) ao contrário do «episódio» posterior do distribuidor do pão (relator do que só ao longo entrevemos) o processo do porco é inteiramente figurado, com personagens vestidas à época e reconstituição do patíbulo. E se o horror sonorizado ou narrado (as violências das mortes) funcionava por elipse, aqui funciona por visualização, «quadro vivo», na própria monstruosidade kafkiana do processo e do facto (verídico a histórico). Mostruosidade que atinge o paroxismo quando o juiz afirma que, em cumprimento de preceito legal e teológico (baseado numa passagem do livro do Êxodo) significou ao porco a sentença capital, «olhando nos olhos o animal criminoso» e com «Deus diante dos olhos» condena o «culpado» a ficar «pendurado na potência até à morte» e «aí ficará longo tempo, até apodrecer, para memória da enormidade do seu crime e para incitar à reflexão os outros que poderiam querer imitá-lo».
O realismo da sequência introduz vertiginosamente o irrealismo da visão e a irrisão de uma justiça que procura, para o animal, justificar-se com os mesmos fundamentos que utiliza para humanos. Abstendo-se de qualquer excesso (não vemos morrer o porco) António Reis e Margarida Cordeiro perceberam que só essa visualização (pela sua carga de insólito, de absurdo) podia servir de correlato à violência não visualizada, que a nossos olhos – ao contrário daquela – já seria banal pela quotidiana invasão de imagens semelhantes.
O que justifica essa visão é a sua diferença de natureza e de objecto. Sendo o mesmo, o horror é diverso e daí a circularidade desses vários «episódios» carentes de «alimento, ajuda humana e vida».
Por isso também, essas chacinas não podem ficar confinadas a um passado remoto. A mancha amarela que a rapariga, mais tarde, risca no chão, associável à da água do poço, reenvia a outro círculo em que o tempo histórico se une com o da ficção científica. O círculo das imagens é tão perfeito como o dos sons. E as palavras são como o vento que passa.
Tudo é imagem. Tudo é fragmento. Tudo é uno.
Espaço, caça, pátria
Na quarta das Elegias de Duino, Rilke fala de uma misteriosa «promessa». Os amantes, diz, prometem-se Weit, Jagd und Heimat (Espaço, Caça e Pátria). Os que se reúnem pelo amor, situam-se no Weite, o espaço, ou, mais precisamente, o «largo». É neste espaço alargado, dilatado, aberto, que terá lugar a «caça». O Heimat, a pátria, o lugar de regresso, e o terceiro momento da «promessa», mas esse momento não está situado no tempo. Como diz Rilke, não é «uma das estações do ano secreto». A «pátria» é, mais aproximadamente, a abolição do tempo e a sua reabsorção num novo espaço que a Décima Elegia chama
Stelle, Siedelung, Lager,
Boden, Wohnort (Lugar,
Residência, Terreno,
Solo, Morada)
É uma semelhante promessa que me parece anunciar-se e enuncir-se na Rosa da Areia de Margarida Cordeiro e António Reis.
Já me referi ao mistério do «eu» e do «tu» no diálogo final, que insinua um olhar bifronte, uma dualidade amante.
Essa dualidade, esse olhar começa por pousar-se no espaço de Trás-os-Montes, espaço já mitológico nos filmes dos dois autores, pela referência que de Trás-os-Montes e Ana unem esses filmes a este no que é muito mais do que um décor. Rosa da Areia não começa em Trás-os-Montes, mas a parede nua inicial (o «muro do tempo» para voltar ao léxico jügeriano) só se descerra para nos levar a ver crianças «profundamente mergulhadas na noite» que a voz do poeta não desperta, mas parece introduzir a sonhos semelhantes dos das crianças de Trás-os-Montes e Ana (sobretudo ao sonho do miúdo doente em Ana, velando pela avó).
Logo a seguir, se afirma esse espaço, libérrimo e solto, o espaço inconfundível dos filmes anteriores e das aparições anteriores. Esse espaço é, também, o espaço da montagem, tal como esta foi entendida pelos cineastas russos com que, desde Jaime, António Reis tem secretas e electivas afinidades: Dovjenko, Tarkowski, Paradjanov. Um olhar muito incauto pode dizer que em Margarida Cordeiro e António Reis, como nos cineastas citados, não há montagem, no sentido retórico do termo. Mas não há filmes mais milimetricamente montados, não há filmes onde a montagem não seja tão respiratória, não há filmes onde montagem e espaço se confundam de forma tão absoluta e tão totalizante.
Basta ver com atenção esse prodigioso início, desde a seara dovjenkiana, até ao travelling da cega; desde o aparecimento primeiro da imensa mole granítica (o vento, o vento) até à visitação do anjo andrógino de calças amarelas que a cega acompanhará, desde o plano da apanha da batata até ao da giesta e da constituição do grupo germinal.
Que propõe o anjo à rapariga cega e, depois, às outras aparições? No sentido rilkeano, uma caça ou uma caçada (Jagd) em que a imaginação não é jogo de imagens (visuais e sonora) mas a própria substância do mundo, esse mundo a que se dirigem por «tu», com medo e assombramento.
Explicita-o o episódio da igreja («ancestral, silenciosíssima e vazia» como no poema de Cristóvão Pavia) explicita-o a associação (feita do diálogo) da insensatez à beleza, da frieza à compaixão. E explicita-o, sobretudo, a magnífica encenação do texto de Montaigne, novamente confiada ao velador inicial. Ao princípio, move-se como se estivesse num aquário, num elemento líquido, até que a câmara recua e descobrimos a assistência a quem se dirige. O aquário volve-se em palco ou tela e o cinema é expressamente convocado (filme dentro do filme) para essa caça às imagens, colocada sob o signo da raposa.
Caçada, para além da poesia, num mundo de amére beauté, ou na mais forte imagem de Rilke, do «primeiro grau do terrível». E é a uma ascensão nessa beleza e nessa terribilidade que somos conduzidos no episódio que acima evoquei, perante esse «vento pleno dos espaços do mundo» também referido nas Elegias. O último degrau dela é a ressurreição do pai morto («demasiado tarde») e o lindíssimo texto zen do homem perseguido por um tigre que caiu num poço onde outro tigre o esperava.
É depois dessa narração, culminando a mise-en-scéne desenvolvida ao longo do que chamei «a caça», com um domínio e tensão plásticos a que só, eventualmente, foge a «sequência» do espancamento na igreja (a única no filme que me suscita reservas) que se faz referência ao «crepúsculo inicial da história» no que é, para mim, o movimento visualmente mais impressivo de todo o filme. É quando «a beleza extrema desses corpos frágeis», antes do fim da noite, emerge no primeiro nu dos filmes de Cordeiro e Reis e no movimento da criança que abre a porta e se perde na noite. É uma composição magrittiana que culmina esse reinado da mise-en-scéne e o ciclo do surreal.
Saint-John Perse vem então chamar-nos, por outras palavras, a cette terre jaune, notre délice, no regresso à pátria, ou seja às moradas. E o filme adquire então a sua dimensão plenamente cósmica, em que esta terra e esta beleza são apenas um lugar entre mil milhões, mil milhões, mil milhões.
Regressa o anjo, regressa o imaginário telúrico, enquanto explode o cogumelo atómico e a paisagem parece liquefazer-se, tão carnal e tão abstracta como nas Nymphéas de Monet. O amarelo dá lugar ao rosa e o eu e o tu dissolvem-se na «mesma pessoa... a mesma imagem, talvez...».
Do «crepúsculo inicial da história» regressamos à «aurora final», fechando-se o círculo que é a mais contrastante das metáforas utilizadas no filme. Do fundo dele, brota a água de diversas cores que une as nascentes terríveis às nascentes de harmonia, os crepúsculos sangrentos aos crepúsculos pacificados.
Rosa de Areia é uma figura perfeita, carregando o simbolismo mágico de todas as formas perfeitas. Em cinema, é a mais bela versão do texto hindu do Matsya Purana que Malraux evocou na introdução a La Metamorphose des Dieux. «O regresso ao real» pertence sempre a um ciclo de aparências em que o afloramento do sagrado incomunicável só pode prolongar a inundação».
António Reis e Margarida Cordeiro ousaram segredá-lo no filme em que o cinema revela o que separa a visão da aparência da própria aparição. Dela, teceram os mais inextricáveis fios, sabendo que a tapeçaria ficará, como a de Penélope, para sempre inacabada, porque nela, simultaneamente «se desenham e apagam todas as formas».
FIM
João Bénard da Costa
Jornal Diário de Notícias, págs. 12-13, de 26 de Fevereiro de 1989
Em estado de sonho
A obra de Margarida Cordeiro e António Reis é uma experiência radical que, filme após filme, nos seduz e confunde no convite a uma viagem na qual simultaneamente reconhecemos elementos primordiais e enfrentamos o desconhecido.
Rosa de Areia, estreado no Fórum de Berlim, é a apoteose desse cinema, o seu momento mais fulgurante mas também o que suscitará maior perplexidade.
Progressivamente, a definição concreta de um objecto, que seriam a pessoa e os desenhos de Jaime ou a terra de cultura de Trás-os-Montes, vem-se diluindo numa ordem mais abstracta. Já em Ana era ténue o fio narrativo entre os diversos fragmentos e sequências, algumas das quais (como a evolução do eclipse ou o inesperado discurso sobre influências mesopotâmicas nos barcos do Douro) pressupunham coordenadas espaço-temporais exteriores à racionalidade do nosso saber.
Esta abstracção percorre integralmente Rosa da Areia, qual imensa colagem de textos e imagens.
Se fosse possível «definir» um filme em duas ou três palavras (ou se duas ou três palavras podem ser de algum modo indicativas), dir-se-ia que Rosa da Areia é um filme sobre «a condição humana». Ao princípio poderia ser uma tragédia grega: do alto da montanha, os deuses, as deusas (ou as «estrangeiras», como o diz uma, estrangeiras à condição humana e terrena), comentam as acções que ocorrem lá em baixo, no vale, a violência e as guerras. Ocorre um eixo vertical (em cima/em baixo) que poderia ser tomado como elemento de inteligibilidade do filme. Mas em breve tudo se confunde, quando as próprias estrangeiras têm experiências humanas, e o fascínio hipnótico das imagens e dos sons se revela como único ponto de referência (que assim pode ser reconvertido) numa viagem cujo sentido nos escapa.
Poderia pensar-se (e essa atitude é legítima) que a precisa questão de um «sentido» é inócua, pois que este cinema solicita os sentidos e não o esclarecimento de um saber. Ora, esta é uma questão crucial. Mais do que os filmes anteriores dos autores, Rosa de Areia é um filme que sugere ser, se não da ordem do inomeável (porque, enfim, é um objecto, existe), pelo menos da ordem do indizível, ou seja, um filme cuja radicalidade seria impositiva: sobre ele não se poderia ter nenhum discurso, nada seria passível de explicação ou de interpretação, todo o saber deveria ser anulado perante a experiência dos sentidos. Sucede que o saber, os vários saberes, são precisamente objecto do filme, um saber empírico como um saber científico, um saber íntimo como um saber cósmico (e assim convivem textos de Montaigne e Carl Sagan, por exemplo). Talvez que a questão fulcral deste cinema reside, justamente, na sua polaridade entre a matéria e o saber. Poucos, muito poucos, são os cineastas que são capazes de nos fazer sentir tão intensamente as matérias físicas, mas esse sentir é constantemente recomposto por um conhecimento que os autores detêm e mantêm como que secreto, como que podendo ser apreendido apenas na sua globalidade e não em nenhuma operação particular. Um conhecimento que exigiria uma alteridade absoluta, um estado outro.
Em Ana ouvia-se a dado momento uma das Elegias de Duino de Rilke, com a imagem de uma criança dormindo. O sono e o sonho são invocados em Rosa da Areia desde o início, qual estado originário em que domina a noite, a grande noite cósmica, mas em que simultaneamente afloram outras imagens, outras linguagens, outras associações. A intensidade do olhar torna-se num delírio visionário. Sucede que nesse delírio se vem inscrever uma diferente ordem de representação, com certas e concretas referências históricas ou com certas figurações artificiais – e este, digamos, é o limite da abstracção. As cenas «medievais» que se sucedem nos filmes, as figurações que lembram récitas escolares, vêm-se interpor, e de repente parecemos ter parado em terreno mais reconhecível, embora desconhecendo as razões porque aí estamos. Primeiro trabalho dos autores em 35mm, Rosa da Areia é um filme magistral, composto de planos admiráveis, com sistemática e rigorosa utilização do plano-sequência. É difícil não ficar deslumbrado perante tanta beleza, mas, essa beleza é também um risco. Se este cinema é uma experiência dos sentidos e do conhecimento, não será necessário amá-lo e não apenas admirá-lo, sentir-se transportado por ele e não apenas contemplá-lo? E, no entanto, é de uma beleza prodigiosa!
A. M. S.
Jornal Expresso, pág. 43-R, de 25 de Fevereiro de 1989
Textos retirados daqui: https://antonioreis.blogspot.com/
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