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27 de agosto de 2011

Steamboat Round the Bend (1935)
John Ford

"Última adenda: será “Steamboat Round the Bend “, um dos cúmulos de todas as artes, um filme sobre corridas de barcos? Panfleto humanista? Jamais...é o supremo elogio às maravilhas liquidas e às suas envolvências, ao glorioso mississipi simbolo de todas as águas e de tantos heróis, navegantes, capitães e lobos dos mares, ode às imperiais máquinas que as atravessam, num maravilhoso que vai de Grifith a Walsh ou Tourneur, Lord Jim, Julio Verne, ou aos grandes pintores idilicos de tudo isso, Manet, Corot, Wyeth."
José Oliveira, daqui

24 de junho de 2011

The Prisoner of Shark Island (1936)
John Ford

"The Prisoner of Shark Island" é parecido, à superfície, muito à superfície, com os tais action movies de evasão que hoje em dia a máquina hollyoodiana ou mesmo os autores respeitáveis tentam fabricar com tanto barulho que chega a ser tristemente cómico, mas o que temos em Ford é a profundeza e a implacabilidade da verdade contra a máquina trituradora da falsa justiça e da mentira. Tudo se reverte passado o calvário, mas o traço memória fica. E Ford chega ao transcendental pois a angelical e terrível luminosidade daquele meio está em compromisso de sangue com Warner Baxter, o doutor que caiu em desgraça e que nada de mal fez, aliança-luz contra os criminosos, aliança-luz contra os que do cinema se servem como brinquedo ou, muitas das vezes pior, como audiovisual. Luz-guia. Luz-desbloqueadora. A mesma força poética que o Condenado de Bresson. Não há quem os pare, aos nobres e aos de bom coração, esses perdidos de amor, desprendidos, conciência em paz. As grades arrebentam-se, os polícias tombam-se, os tubarões vergam-se, o mar encurta-se como se encurtava e se vencia na sequência do outro mundo em que o Jon Hall de Hurricane atravessava todas as forças circundantes porque se sabia amado e com razão, momento irmão do “Tabu” de Murnau e de Flaherty, a incontrolavél e vulcânica furia da natureza domada com a força interior essa chama unica do amor pela vida todas as promessas.
José Oliveira in -

26 de maio de 2011

E está tudo dito...

Trinta minutos, um pouco menos ou um pouco mais, bastaram para perceber como se varre e se cose o tão badalado épico de Oliver Assayas, "Carlos". Uma estrela pop intercontinental do terrorismo, quebrador de fronteiras, entre o burguês e o desejo de rebeldia (muito a ver com tanta gente dos dias de hoje, mérito aqui, sem dúvida), narcisista um pouco para o fanfarrão, um sedutor e também alguém que acredita em causas justiçeiras e na força das acções subterrâneas e individualistas contra o imenso e o esmagador. Assayas, que em certos filmes pequenos de facto se interessou pelo frágil e pelo intimista, como por aí se disse, fragilidade e intimismo dos meios e da carne, questão formal e humana, coisa de olhar e acolher, tentar perceber o que a velocidade e a adicção fazem aos corpos e à mente, os pontos perdidos no cosmos, nessa massa ou nessa sujeira, becos e labirintos, ar e suspenção de respiração, etc...


Certo que apesar da longuíssima duração tudo dá ainda a ilusão do estar junto e justo ao que filma, relação bem selada, complexa, essa câmara que não sobe às alturas nem se fixa muito nem abre muito e parece fazer gato-sapato de todas as linguagens, signos, reconheçimentos e admirações do género em que se filia ao mesmo tempo que o parece querer vilipendiar. Ao lado do género e contra o género. Atirando às feras o homem e colando-lhe a câmara. Muito se perdeu agora, daí que pareça ilógico mas com toda a certeza lógico, neste panorama, que desta vez tanta gente se tenha rendido ao que antes cuspiu ou ao que nem sequer passou cartão. Também outro tipo de sentido ou de reacção, a excitação obviamente, fora da escuridão e das aventuras e descobertas da infância, ainda sem ter chegado à acalmia e apaziguamento do tempo que tanto passou , esse ver em paz e prespectiva, tanto ou nada saber, nada e tudo esperar, levar coisas para a frente...estamos na idade da excitação e da masturbação ou do deslumbramento como prova a forma nojenta como a câmara de Assayas capta a tal estrela terrorista ou de como os jornalistas falam do que vêem.

Câmara que não proteje, antes expõe e fere.

Daqui, impossivél agora aceitar o tom (anti) pictórico das superficies dos planos que se confundem com as imagens chanel dos painéis publicitários de rua e assim realçam o que de tão belo e esteticamente aprazível um daqueles seres humanos pode conter. Nem o bom, nem o mau, opaco, claro – só a fotografia e o "belo" traço. Impossivél aceitar esse bailado pornográfico câmara-corpo-meio-corpos, essa dança que entre as bombas, as passareles, o álcool, o fumo e as fodas eleva Carlos ao vedetismo e à moda, nessa vontade de não lidar com o concreto que está em causa, com as coisas e a razão/desrazão, a história, saber-se posicionar, justiça languiana, a tal relação não viciada pela pré-definição e pelo determinismo, logo uma falsidade, ou seja, tudo o que Assayas deixou de parte em direcção ao grande tema e ao barulho elevado da escrita, numa abstracção e numa fragmentação que ao invés do palpável e do suor, o que lhe permitiria ali chegar bem como à fantasmagoria, se fica pelo empolamento cortes-de-segundo faux raccords vestidos com o som pop-punk das passagens que pretendem engatar speed, os discuros ou engates que já outra coisa não podem ser do que preparações para o espéctaculo do audiovisual e da multimédia que tanto percorre os ossos do filme e assim vicia a história e o mundo. Não falemos de politica...pior das idades para isso, a adolescência... Mete impressão ainda o falso enquadramento pelo feito documental que exclui qualquer pulsão de verdade e de abismo que a assunção da ficção que se assume poderia desiminar. Contradição. Longe, bem longe de Bresson - dos modelos homens que fatalizavam cada quadro, espessura de cada parede - mestre confesso. Vibrações e sensorial húmido, racional e ready-made como as músicas coladas e separadas das imagens que se desvaneçem à partida, ossos sem carne. Que agora os jornais e revistas e festivais cubram isto de elogios, nada mais em conformidade com a imposição e regime das imagens e dos formatos que pingam e escorrem e se metarmofoseiam uns sobre os outros e nos outros para se tornarem coisa nenhuma. Televisão no cinema nos ecrãs pc nos laptops ou em último ou primeiro caso no telemóvel ou na playstation. Híbrido como muitos híbridos feitos para ficarem bem nas capas das caras revistas de paris e nos seus textos versando essa contaminação das imagens e dos formatos. "Carlos", coisa nenhuma.

Coisa nenhuma e curiosamente muito próximo do academismo que Assayas criticava nos anos 80, e continua a criticar, a um certo cinema americano, Spielberg sobretudo, só que ainda mais paradoxal e irónico, porque se Spielberg e outros sairam de um classissismo, ou mesmo de um neo-classissimo, Assayas e os outros tantos Assayas, ao filiarem-se nessa destruição, uma espécie de promessa e de pequenez e de "indie" seja para qual coisa for, criam assim uma moda e algo evidentemente próximo da linha de montagem onde tudo ou tanta coisa parecem iguais. Retrocesso.

6 de março de 2011

“RR”, de James Benning, 111 minutos de comboios a rasgar a América mítica e uma outra que possivelmente se poderá chamar de pós-mítica – algo que reconhecemos de muito antigo, mas porém impregnado de sinais de colonização e modernidade – é um tocante e puro olhar de abstracção cinematográfica ao mesmo tempo que não pára de nos fazer reenvios e de nos segredar fantasmas, histórias, lendas, poses, gritos, derrotas e vitórias. É tão difícil “metermo-nos lá dentro” – no sentido de qualquer identificação ou aconchego – como num qualquer instante fugaz, ou então pela extraordinária sensualidade da duração dos planos, nos seja impossível não vermos ou pressentirmos os horizontes de John Ford ou a aridez poética dos planos iniciais do Howard Hawks de “Red River”; ou a película como que a dissolver-se e logo uma sobreposição a irromper serenamente e como por magia, e então, John Wayne ou qualquer um desses a surgir por ali de cavalo ou pelo próprio pé; O western possível, depois dos géneros, dos sonhos e de Hollywood? Benning chega mesmo a arriscar literalizar esse lado surrealizante na subtilíssima infiltrição de elementos off na banda som que só podem remeter para memórias dos índios e cowboys e dos rituais do velho oeste, elevando, nesses momentos, o todo a uma forma inclassificável e de contra-campos ilimitados; o mesmo para a forma como aparece a música country ou uma qualquer forma de hip-hop – o que foi e o que é; ou os discursos de ressonância histórica contra o som puramente materialista e visceral que emana do quadro. Verdadeiramente dialéctico e engrandecido pelos segredos e pelo que não ousa escancarar, “RR” não pára de nos contar e lembrar coisas, ao mesmo tempo que pode ser só um filme sobre essa forma praticamente perdida e original de um genuíno arcaísmo, modo artesanal, cristalino e desinteressado de trabalhar imagens e sons, respeitar a matéria da cena, sem qualquer tipo de inflação temporal ou mercantilista; junto da oficina e da pobreza, fora das indústrias, dos massacres e das montanhas de dinheiro. Cada quadro é uma totalidade e empreendimento absolutos e cada objecto e movimento dentro dele é moldado pelo máximo de saber e paciência, tempo e generosidade. O génio está na natureza, claro, mas a visão e o ofício de estabelecer as distâncias e de fazer esse recorte do mundo mediante o enquadramento é do cineasta. Não vale tudo, há coisas que não valem, é preciso saber o que fica dentro e o que sai fora, nem que para isso um plano demore anos e anos e anos a estar pronto para ser colhido, há quem o saiba, há certamente quem não faça a mínima ideia, Benning com certeza é dos que mais sabem, cada plano seu é uma desmedida prova de amor.
Esse respeito pelas formas, que chega a tocar o sagrado, que não se fecha em si e que logo surge aberto ao imprevisto e à vida – que pode ser o vento que sopra para onde lhe apetece ou um qualquer automóvel que entra inesperadamente e que só parece demonstrar a imensidão dos comboios que parecem ter apaixonado o cineasta. O comboio, essa máquina altiva e e imparável que furiosamente atravessa a América independentemente de tudo o resto, impassível e romântico, lírico e impiedoso, era assim no “Union Pacific” filmado por Cecil B. DeMille e continua a ser hoje, indiferente a qualquer avanço ou extermínio. Uns nunca mais acabam, outros são meros vagões funcionais; uns devem transportar pessoas e outros só cargas; temos os muito novos e os muito muito velhos, os rapidíssimos e aqueles que se arrastam e nunca mais chegam. Depois existe uma linha e um percurso, paisagens e paisagens, montes e rios, túneis e vilas, o céu e a terra e a força da verdade e da fatalidade de tudo isso, o elogio do seu ser e também o elogio dos homens, pois mesmo que aparentemente não sejam visíveis em plano algum, a sua força criadora não pode deixar nunca de ser sentida.. Vai-se a toda a velocidade ou devagar, espera-se e logo se dá tudo para recuperar o tempo perdido, os altos e os baixos, as crises e as libertações supremas. Como num road-movie em que a estrada é a vida. Um filme doce e um amplo gesto de emancipação


José Oliveira


21 de janeiro de 2011

Day of the Outlaw (1959)
André De Toth

João Botelho a ensinar o que Jean - Marie Straub lhe ensinou: "um western de Boeticher pode ser tão bom como um de Ford".
Um Western de André De Toth pode ser tão intenso e vibrante e materialista e cheio de segredos e zonas escuras como um de Ford ou Boeticher.
"Day of the Outlaw", 1959, sem Randolph Scott mas com Robert Ryan, a preto e a branco e não a cores descoloridas , comprimido e irrespirável, pode fazer remissões aterradoras ao cinema de Straub/Huillet. Mas não interessa muito ou interessa tudo.
João Bénard da Costa sobre "Forty Guns", outro insuportável:"Fuller, que sempre foi de conter a respiração, como quando muito se corre ou como quando muito se ama, não foi ao oeste para respirar naqueles imensos espaços, sublinhados pelo scope. Foi para nos comprimir num espaço que é um momento perdido nesse espaço."
Onde Fuller explode e estilhaça e impõe o sumptuoso e doloroso liricismo, De Toth implode e ameaça a catástrofe a qualquer segundo e em qualquer cena. Está tudo nas rugas e na beleza
da planura da imagem e lá dentro muito dentro.

Longe (aparentemente) das grandes respirações orgánicas das paisagens de Ford; Longe (aparentemente) da fúria mineral e do pó dos duelos de "Seven Men from Now" ou "The Tall T"; Longe (aparentemente) dos Straub e de tudo o que eles significam?
Mais perto de Anthony Mann e do seu scope ou bastante mais perto de outro grande e imensamente (criminosamente) esqueçido western fora-da-léi, o feérico "Track of the Cat", do
igualmente esqueçido William A. Wellmen?
Chega de perguntas, chega de "raccords". Chega? O que liga tudo isto é que apesar das traições e das humilhações, dos fracos e das fraquezas, das mentiras e dos judas, estamos em "mundos de homens". Mundos de justiças, de honra, de bater forte e de repor coisas no lugar certo, de tirar a limpo. Onde quem bate nas mulheres apresta-se a levar na boca e onde crianças reconheçem e compactuam com os
de bom coração. Galáxias, constelações e abismos, valores e emoções, sentimentos, que faz de tudo uma e a mesma coisa. Impossivél nos dias de hoje.

André De Toth foi igualmente aos grandissimos espaços e à neve, às florestas e ao frio que corta, enfiou-se nas pequenas habitações como Wellman também o fez no "Cat", revestiu tudo isso
sobre um preto e branco sem meias medidas, denssíssimo/escuríssimo/branquíssimo, aplicou a elevada largura e o rasgamento da lente a um enclausuramento brutal onde só nos limites da profundidade poderemos sonhar e fugir para onde as bordas do enquadramento e a distância adoptada jamais dão tréguas. Aquele suposto verde e aquele suposto branco como nos contos infantis...
A parte final, lá fora, é o teatro (palavra fundamental tanto para a forma cinematográfica como para a dissimulação dos homens que andam pelo filme) do horror onde o paroxismo e a contenção já explodiram e a tragédia e o rasto de perpetuação se confirmam. Sem "happy end" possivél. Sem pacificação.

André De Toth cinesta da matéria. André De Toth cineasta da forma. André De Toth cineasta da mise-en-scéne. "Mise-en-scéne" palavra tão mal entendia, mal aplicada e mal executada.
Mise-en-scéne, princípio do cinema e príncipio do olhar. Princípio de toda a forma.

André De Toth sabe-o tão bem como Oliveira e Rivette e o modo magistral, seco e claro como expõe tudo isso está numa das sequências mais impressionantes de timming, découpage
e utilização da câmara que alguma vez vi. Robert Ryan desce as escadas e prepara-se para incendiar tudo; o seu parceiro está deitado na mesa e não parece lá grande coisa;
Ryan tenta alcançar a garrafa do fogo e é severamente ameaçada; ecos de duelo e de confrontos no ar; Ryan não se encolhe, tenta reforços e ajudas; Põe uma garrafa vazia a rolar sobre o balcão. Magnífico , verdadeiramente magnífico travelling de acompanhamento sobre a garrafa. Um dos mais inacreditáveis e insólitos que já vi. Para a direita. Quando esta (a garrafa) deixar de rolar as balas atingirão as carnes sem piedade. Haverá sangue.
Mas tudo isso é cortado pela entrada dos intrusos que tudo revertirão e porão em causa.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, e já estão os intrusos a sair de casa. Para o inferno. De Toth aproxima-se de uma jovem mulher e aplica-lhe um não menos fabuloso e terno travelling sobre o olhar. Para a direita.
Não há saída e o génio de um imenso cineasta é assim liberto e sentido, na pele.

"Day of the Outlaw". "Track of the Cat". Monumentos singulares. Monumentos sussurados. Monumentos para alguns. "Foras-da-léi, os outros são todos conheçidos". Foi o que alguém me disse e é toda a verdade que importa. Abraço.

José Oliveira
retirado
daqui