Incrível as coincidências que ocasionalmente ocorrem. À semelhança do que acontece com a curta-metragem de Kiarostami da qual falei anteriormente, Süt oscila entre o meio rural e o urbano, meios metafóricos para evoluções sociais e económicas (urbano) ou a ausência destas (rural). Mas o que realmente interessa em Süt é a força da realidade social que este transmite. O que realmente se procura explorar aqui é essa posição social e o crescimento intelectual e perceptivo dum indivíduo. Yusuf é confrontado com a realidade crua e dura por oposição aos sonhos. Poeta logo sonhador, lírico, afastado da realidade em que o mundo se insere, embora trabalhador. E aquele que parece ser o principal meio de sustento para ele e a mãe, a venda de leite, desvanece-se quando esta falta à responsabilidade devido a um romance que acaba de nascer. Romance esse que contribui também (além da rejeição por parte do exército) para essa desilusão individual para com o mundo e tudo o que o rodeia, essencialmente para o despertar dum sentido lírico e esperançoso num futuro risonho onde a poesia teria lugar. O final, completamente alegórico, é, por fim, a consciência de Yusuf na realidade que tem de viver, no mundo em que faz parte. A sobrevivência a isso obriga, o ser humano não vive da poesia. Dura realidade com que Yusuf se debate. E essa cena final onde vemos no rosto de Yusuf uma expressão apática, resignada, mas sobretudo assustada por essa realidade que enfrenta e pela consciência que Yusuf toma no térmito da esperança é abismal.
Süt vive de metáforas, de simbolismos. A julgar pela tradução inglesa, Süt significará leite. E esse leite do título (o mesmo que se afigura como subsistência de mãe e filho, o mesmo que sai da boca de Yusuf logo após o acidente de mota e o mesmo que logo no início é usado numa espécie de ritual de bruxaria para expelir uma cobra do interior duma rapariga), simboliza sobretudo o bem. E se esse leite simboliza o bem, teremos então de ter algo que simbolize o mal. E esse mal é simbolizado pela cobra, tanto reflectido naquela que sai da boca da rapariga, como, essencialmente, pela cobra que se instala em casa de Yusuf dando início a toda a intranquilidade na relação entre mãe e filho. Aliás, a relação amorosa que Zehra (a mãe) inicia, dá-se após o aparecimento dessa cobra.
A associação a Tarkovsky é impossível não suceder. As paisagens, a iluminação natural, a contemplação, o naturalismo de Süt a isso nos faz aludir. E a ausência de uma banda sonora reforça esse naturalismo quer visual quer sonoro do filme. A beleza paisagística e a contemplação do turco faz lembrar indubitavelmente o russo. Mas não só de Tarkovsky me lembrei. Bartas está associado pelos planos fixos e longos, pelos silêncios exacerbados, Ford pela profundidade de campo, pelo enquadramento da câmara e pela beleza do céu.
Süt é um filme muito metafórico, carregado de simbolismos. Mas é sobretudo um filme realista e pessimista, descrente no ser humano, no mundo. Grande filme.
3 comentários:
Aconselho João ;)
Same here, João. :p
Engraçado, Álvaro, falares dessa oscilação como lhe chamas do meio rural e urbano. Os filmes que se costumam inserir nesse devir social inerente a este futuro humano surgem-se-me sempre como algo a ser visto. In extremis, é a máquina do futuro contra a natureza humana. Mas pelo que depois contas também fiquei curioso, sobretudo com a pequena grande referência a Tarkovsky.
(e agora as minhas férias começaram, vai ser só ver filmes ;)
Sim Flávio, sinto o mesmo, embora já se comece a "florear" muito, a "clichezar" muito esse cinema neo-realista moderno, o que não acontece aqui claro ;)
Boas férias e bons filmes :)
Enviar um comentário