30 de maio de 2022

 



Últimos filmes vistos, duas obras de Duvivier assombrosas, negras como a noite... apenas umas coisinhas sobre elas:

Voici le temps des assassins é um pináculo do noir francês, data de 1956, última colaboração de Duvivier e Gabin, é coisa subversiva e pérfida que rompe as amarras da candura nas escolhas do ser humano. Se há coisa que Voici le temps des assassins percorre, é a frieza da mulher como ser manipulador e pérfido. Coisa imoral. Mãe e filha, duas mulheres submersas numa espiral decadente que na tragédia desaguarão, uma em trabalho interior corrosivo e outra já numa convalescença dessa mesma corrosão que ambas partilham, coisas tão embrenhadas na alma e que a enegrecem de tal forma que aos mais atentos não escapa e inquieta, e por isso aquele “dá-me calafrios” da madame Chatelin para o filho quando conhece Catherine, coisa demoníaca, coisa que vem directamente das trevas, há naquelas duas mulheres uma aura luciferina que as sombras de Duvivier fazem tão bem transparecer, sobretudo naquele quarto onde a mãe, enclausurada, permanece. 

 O outro, David Golder, filme de 31, história dum judeu, magnata capitalista que não hesita em trair o sócio (na qual resulta o seu suicídio), que se depara com verdades familiares inconvenientes e que abraça no seu final a redenção e “a remissão dos pecados”. Tal como Voici le temps des assassins, David Golder é coisa negra como a noite, abraça a perfídia e a subversão para explorar o interior do ser humano. Tem vários planos e movimentos de câmara assombrosos para a época, mergulha num conflito interior resultante da traição e desagua na redenção e numa espécie de libertação material, ainda que num último esforço altruísta (e proveniente do amor incondicional) a ele recorra, ao materialismo. Da escuridão para a luz, transfiguração final. Redenção total.

7 de maio de 2022


 

2011, Nana, Valérie Massadian


Com Nana somos confrontados com um cinema de gestos e da sua observação, na mistura do real e do imaginário, daquela criança que repete os mesmos gestos da mãe e do avô, como que numa automatização da imitação que resulta no aprendizado, afinal de contas é assim mesmo o aprendizado duma criança, na imitação dos gestos da(s) figura(s) paterna(s)... num meio que a confronta com a realidade da vida e da morte, a violência da cena inicial é na realidade apenas coisa integrante da vida, contrasta, isso sim, com a dissimulação da vida citadina que se afasta da origem daquilo que tem no prato das refeições, mostra as coisas como são, é no fundo um filme de quem lhe interessa o momento, os gestos, os movimentos, a acção espontânea - como quando a mãe desaparece e Nana põe em prática todos os ritos e acções que foi aprendendo e num momento em que alguém a corrige quando esta lê aquele livro, responde que ela agora já sabe ler -, e observar isso tudo... como que num estudo antropológico sobre a natureza comportamental do ser humano ou objecto observacional dos gestos e daquilo que revelam, num filme claramente "herdeiro" do cinema de Pedro Costa a quem nos créditos finais agradece... Nana é uma pequena relíquia cinematográfica!