28 de janeiro de 2011

O Cross of Iron é sem dúvida um filmão. Há filmes que acabam e já nós estamos com vontade de os voltar a ver. Cross of Iron é um desses filmes. Como estamos numa de filmes de guerra, o próximo é o The Heroes of Telemark do Mann.

26 de janeiro de 2011

Le Plaisir (1952)
Max Ophüls

O que é o Le Plaisir de Ophüls? Em suma, uma obra-prima de extrema importância no cinema. É fenomenal a arte de filmar de Ophüls, os travellings que tanto cinema inspiraram, a distância com que filma aquilo que ele quer explorar, o prazer, o jogo de luzes e sombras que lembram Hawks. Le Plaisir conta-nos três contos sobre a procura do prazer. No fim, pela voz do narrador, fica a mensagem de que a felicidade não é alegre. E analisando bem o filme, conto por conto, reconhecemos essa felicidade não alegre de que Ophüls fala. Le Plaisir é um filme obrigatório para qualquer cinéfilo que se preze.

23 de janeiro de 2011

Silver Lode (1954)
Allan Dwan

Lembrei-me do High Noon porque Dwan comprime tão bem nos espaços aquela tensão que existe, pela própria linha narrativa do filme e pela destreza da câmara. Silver Lode é só um dos mais bem filmados westerns que existe.

21 de janeiro de 2011

Day of the Outlaw (1959)
André De Toth

João Botelho a ensinar o que Jean - Marie Straub lhe ensinou: "um western de Boeticher pode ser tão bom como um de Ford".
Um Western de André De Toth pode ser tão intenso e vibrante e materialista e cheio de segredos e zonas escuras como um de Ford ou Boeticher.
"Day of the Outlaw", 1959, sem Randolph Scott mas com Robert Ryan, a preto e a branco e não a cores descoloridas , comprimido e irrespirável, pode fazer remissões aterradoras ao cinema de Straub/Huillet. Mas não interessa muito ou interessa tudo.
João Bénard da Costa sobre "Forty Guns", outro insuportável:"Fuller, que sempre foi de conter a respiração, como quando muito se corre ou como quando muito se ama, não foi ao oeste para respirar naqueles imensos espaços, sublinhados pelo scope. Foi para nos comprimir num espaço que é um momento perdido nesse espaço."
Onde Fuller explode e estilhaça e impõe o sumptuoso e doloroso liricismo, De Toth implode e ameaça a catástrofe a qualquer segundo e em qualquer cena. Está tudo nas rugas e na beleza
da planura da imagem e lá dentro muito dentro.

Longe (aparentemente) das grandes respirações orgánicas das paisagens de Ford; Longe (aparentemente) da fúria mineral e do pó dos duelos de "Seven Men from Now" ou "The Tall T"; Longe (aparentemente) dos Straub e de tudo o que eles significam?
Mais perto de Anthony Mann e do seu scope ou bastante mais perto de outro grande e imensamente (criminosamente) esqueçido western fora-da-léi, o feérico "Track of the Cat", do
igualmente esqueçido William A. Wellmen?
Chega de perguntas, chega de "raccords". Chega? O que liga tudo isto é que apesar das traições e das humilhações, dos fracos e das fraquezas, das mentiras e dos judas, estamos em "mundos de homens". Mundos de justiças, de honra, de bater forte e de repor coisas no lugar certo, de tirar a limpo. Onde quem bate nas mulheres apresta-se a levar na boca e onde crianças reconheçem e compactuam com os
de bom coração. Galáxias, constelações e abismos, valores e emoções, sentimentos, que faz de tudo uma e a mesma coisa. Impossivél nos dias de hoje.

André De Toth foi igualmente aos grandissimos espaços e à neve, às florestas e ao frio que corta, enfiou-se nas pequenas habitações como Wellman também o fez no "Cat", revestiu tudo isso
sobre um preto e branco sem meias medidas, denssíssimo/escuríssimo/branquíssimo, aplicou a elevada largura e o rasgamento da lente a um enclausuramento brutal onde só nos limites da profundidade poderemos sonhar e fugir para onde as bordas do enquadramento e a distância adoptada jamais dão tréguas. Aquele suposto verde e aquele suposto branco como nos contos infantis...
A parte final, lá fora, é o teatro (palavra fundamental tanto para a forma cinematográfica como para a dissimulação dos homens que andam pelo filme) do horror onde o paroxismo e a contenção já explodiram e a tragédia e o rasto de perpetuação se confirmam. Sem "happy end" possivél. Sem pacificação.

André De Toth cinesta da matéria. André De Toth cineasta da forma. André De Toth cineasta da mise-en-scéne. "Mise-en-scéne" palavra tão mal entendia, mal aplicada e mal executada.
Mise-en-scéne, princípio do cinema e príncipio do olhar. Princípio de toda a forma.

André De Toth sabe-o tão bem como Oliveira e Rivette e o modo magistral, seco e claro como expõe tudo isso está numa das sequências mais impressionantes de timming, découpage
e utilização da câmara que alguma vez vi. Robert Ryan desce as escadas e prepara-se para incendiar tudo; o seu parceiro está deitado na mesa e não parece lá grande coisa;
Ryan tenta alcançar a garrafa do fogo e é severamente ameaçada; ecos de duelo e de confrontos no ar; Ryan não se encolhe, tenta reforços e ajudas; Põe uma garrafa vazia a rolar sobre o balcão. Magnífico , verdadeiramente magnífico travelling de acompanhamento sobre a garrafa. Um dos mais inacreditáveis e insólitos que já vi. Para a direita. Quando esta (a garrafa) deixar de rolar as balas atingirão as carnes sem piedade. Haverá sangue.
Mas tudo isso é cortado pela entrada dos intrusos que tudo revertirão e porão em causa.
Uma hora depois, mais coisa menos coisa, e já estão os intrusos a sair de casa. Para o inferno. De Toth aproxima-se de uma jovem mulher e aplica-lhe um não menos fabuloso e terno travelling sobre o olhar. Para a direita.
Não há saída e o génio de um imenso cineasta é assim liberto e sentido, na pele.

"Day of the Outlaw". "Track of the Cat". Monumentos singulares. Monumentos sussurados. Monumentos para alguns. "Foras-da-léi, os outros são todos conheçidos". Foi o que alguém me disse e é toda a verdade que importa. Abraço.

José Oliveira
retirado
daqui


19 de janeiro de 2011

A Casa (1997)
Sharunas Bartas

"Mãe.
Mãe, muitas vezes eu quis falar contigo sobre tudo...mas nunca o fiz. Mas no meu interior, lá no fundo, eu falava contigo. Eu pude sentir e ouvir as tuas respostas. Mas cada vez que vinha aqui ouvir-te...eu não podia mais falar contigo.
Estou silencioso. Todas as palavras foram já faladas. Faladas interiormente. E todas as minhas questões...respondeste-as lá no fundo do meu interior. Antes disso sempre aconteceu assim. Quando estávamos afastados. Longe um do outro. Era assim que era antes. Como acontecia antes. E nunca mais voltará a acontecer. Não interessa quanto o queira...
O futuro. No futuro sou livre. Livre porque ainda não existe. Não compreendo o presente. O presente é tão efémero...não tenho a certeza que exista."



O primeiro plano d’ A Casa, um plano geral do exterior duma casa, fixo, é acompanhado por uma voz que lê uma carta à mãe (que se pode ler em cima). Aquela voz, a qual deve pertencer ao Francisco Nascimento (que protagoniza o filme), fala-nos de mágoa e duma certa incomunicabilidade entre os dois, de nostalgia. Há ali algo que acaba, por isso ele diz E nunca mais voltará a acontecer. Não interessa quanto o queira…, mas o que é esse algo? Aquilo que parece óbvio, e conhecendo um pouco da sua obra (falta-me ver o Seven Invisible Men, o Trys Dienos e o novo Indigène d'Eurasie), especulamos na pátria, na desolação da pátria, no trauma social que o desmembramento da URSS deixou. Ou seja, a mãe desta carta é a pátria, a sua Lituânia. E o que acabou foi a antiga pátria, a URSS. Deduzimos então que A Casa vem (à imagem de tudo aquilo que já fez e com especial similaridade com O Corredor, particularmente no espaço (quase na totalidade interior) e nas pessoas que traduzem essa desolação socioeconómica da Lituânia com aquele vaguear pelos compartimentos da casa, aqui, e na fábrica, no Koridorius) criar metáforas do caos e da desolação da sua pátria resultante do fim da União Soviética.

O que vem a seguir é o tédio, a desolação. Aquela casa, uma mansão antiga, aristocrata, passa a ser o filme. Tudo o que Bartas filma é lá dentro (até ao final em que volta ao exterior (noutro ângulo primeiro e frontalmente depois) para filmar a chegada do exército, o fim da pátria (sim porque ele sente-se soviético), a chegada do caos, e para acabar de ler a carta). Aí, vagueando pelos compartimentos daquela casa, observando pessoas e animais que vagueiam por ali, desoladas, mergulhadas no tédio e na apatia do caos, acompanhamos um homem (o actor português). Não sabemos donde vem nem quem é, não há diálogos, as únicas palavras que ouvimos são as da carta (no principio e no fim), não sabemos quem são aquelas pessoas que pouco a pouco vão aparecendo. E começamos a desconfiar que aquela casa é mais uma metáfora da pátria, são memórias da voz que lê a carta. Porque faz sentido, porque tudo indica assim (os olhares, a desolação daquela gente (donde vem aquela gente? Quem são?), a procura do grotesco, do feio e do belo, do velho e do novo, a tentativa dessa antítese que traz a conotação política, as expressões, o tédio e a resignação do caos, o exército no final, a morte do negro (a morte do comunismo talvez), a carta que fala de algo que nunca voltará por muito que se queira). E, portanto, se aquela casa simboliza a pátria perdida, é inevitável que não se compreendam todos aqueles ritos enigmáticos a que assistimos durante quase duas horas como a alienação e a depressão da instabilidade socioeconómica do país. Por isso o vaguear sem rumo, como que perdidos naquele espaço. Isto é cinema para pouca gente, para quem ama o cinema.

17 de janeiro de 2011

Adieu, Plancher des Vaches! (1999)
Otar Iosseliani

O rico que finge ser pobre (inserido numa família altamente disfuncional) e o pobre que finge ser rico (na procura das conquistas femininas). O valor do materialismo, a sua inevitabilidade. Comédia urbana, fábula lírica e social da amizade, da liberdade e da injustiça no mundo. Adieu, Plancher des Vaches! é ouro sobre azul, condição irremediável do ser humano aquela que o relega para o virtuosismo duma postura social, para a força intrínseca do indivíduo na persuasão do próximo (e consequente êxito) de acordo com as regalias (ou falta delas) sociais. Iosseliani impugna qualquer romantismo (e integridade) inerente ao Homem. Condena tanto o pobre como o rico. Mergulhado na clareza do seu cinema, aliado a um sentido clássico que grita pelos primórdios da humanidade, Adieu, Plancher des Vaches! explora um certo sentido absurdo e cruel dessa mesma humanidade.

No entanto, a pérola das pérolas é a condução narrativa e a mise-en-scène de Iosseliani. O ritmo das acções, o encadeamento e desenrolar da narrativa, os movimentos de câmara pacientes mas fundamentados reforçam essa vitalidade que o protagonista parece conter. A clareza das imagens, a energia da acção, a câmara que procura preferencialmente a distância (a indicação da alheação daquela família e daquela gente). Iosseliani filma aquele universo conferindo-lhe uma identidade própria. Há ali muito sarcasmo, muita fome de mandar foder o mundo (por isso os dois bêbedos que se assimilam surpreendentemente apesar do antagonismo social e aquele final em que os dois caminham rumo à liberdade), muita fome de igualdade social. Foi o primeiro filme de Iosseliani que vi, mas confesso que fiquei com vontade a mais.
Qual o melhor filme do Coppola? Eu estou inclinado pró Rumble Fish.
Batalla en el Cielo (2005)
Carlos Reygadas

16 de janeiro de 2011

O vocalista dos Sigur Rós se estivesse quieto é que andava com juízo. Insuportável.
Sweet Movie (1974)
Dusan Makavejev

Liberdade. Sweet Movie celebra a liberdade acima de tudo. Para isso, Makavejev conta duas histórias (dentro de todo o absurdismo delirante, caótico e extremado da situação político-social da época) sobre duas mulheres e sua relação com o sexo (apoiando-se numa teoria de William Reich, psicanalista divergente de Freud). Há ali uma forte conotação política dentro de todo aquele delírio sádico que extravasa na meia hora final do filme, um meio-termo que não deixa exaltar nem o capitalismo nem o comunismo, uma ridicularização de ambos. Na estirpe do non-sense que cinco anos antes nascia com os britânicos Monty Python (ainda que tudo extremado e com densos contornos alusivos ao Marquês de Sade), Sweet Movie é uma sátira provocatória e delirante da alienação do indivíduo e da depravação mental e sexual que daí resulta.

15 de janeiro de 2011

二十四城記 "Er shi si cheng ji" (2008)
Zhang Ke Jia

24 City (título inglês) é filme de vidas, de estórias de vidas, do presente em confronto com o passado. Nostalgia. O fim daquela fábrica de aeronáutica que faz aquelas pessoas revisitar o passado, as feridas abertas (ou saradas) daquela gente. Estórias de sobrevivência, estórias de um tempo (ou de vários), de construções de vida no pós-revolução cultural chinesa. Er shi si cheng ji deambula entre o documentário de tom operático e a ficção das memórias daquela gente (das suas vidas). O percurso daquela fábrica, que durante várias gerações alimentou vidas e memórias, vai acabar na sua demolição projectando já naquele local um complexo e luxuoso centro comercial e habitacional.

O que se percebe (e volta a perceber) nos filmes de Zhang Ke Jia é a procura dessas memórias. Porque essas memórias vivem não só nas pessoas mas lá, naquelas fábricas. Por isso não é só a fábrica que é demolida, são as memórias daquela gente, as vidas que por ali passaram. E o chinês como que procura imortalizar aquelas memórias. Já em Still Life o fizera, em The World idem aspas. Parece-me que a ideia é essa, mesmo que exista também uma procura de realçar a condição económica desse outrora, a oscilação do desenvolvimento económico e político, a causa/efeito (nas pessoas e na fábrica) desse panorama social e político do pós-revolução cultural.

14 de janeiro de 2011

Hadewijch (2009)
Bruno Dumont

O último Dumont é um Dumont disfarçado, arrasa por completo toda a ambiguidade da fé sem escandalizar como o fez anteriormente. Disfarça-se e manifesta-se sempre distante do choque. É um filme tranquilo mesmo com toda a luta interior daquela jovem. Aproxima-se dum psicologismo existencial e material relativo à fé, às acções do ser humano e às escolhas deste. O cinema de Dumont sempre procurou encontrar quaisquer resquícios de violência no ser humano. Em Hadewijch isso está lá dissimulado, procurando a expressão em detrimento do choque, da crueza (não da imagem mas das emoções). Mas é tudo Dumont puro, a procura das iniquidades da humanidade sobretudo, a violência que todo o ser humano é capacitado, a mente humana. Dumont explora sempre isso nos seus filmes, o seu pessimismo na humanidade. Hadewijch é sobre uma jovem adolescente obcecada por Deus. Diz que o ama, que não pode deixar de o sentir. E para o sentir, para estar mais perto dele, erra no caminho, aventura-se no islamismo. Tudo resulta da sua constante distância da sua classe social, há ali alguma vergonha (leia-se também rejeição) pelo materialismo. Por isso as escolhas em prol desse desejo utópico do amor a Deus. E no final fica a redenção e a mais irónica das conclusões quando aquele homem acabado de sair da prisão a salva, a de que o bem está também no mal, ou melhor, a de que todo o ser humano é bom e mau.
Nostalghia de Andrei Tarkovsky

La Jetée de Chris Marker
Ao rever Rosetta dos Dardenne descobri aquilo que devia ter descoberto logo após a primeira visualização, Bresson em todo o lado. Rosetta é um autêntico hino a Bresson, ao Pickpocket principalmente. A redenção final, o percurso do personagem, a simplicidade da narrativa, o minimalismo, a crueza. Tudo é Dardenne, tudo é Bresson.

10 de janeiro de 2011

Katalin Varga (2009)
Peter Strickland

A ilação que se tira de Katalin Varga (história trágica sobre o desejo de vingança resultante de uma violação distante), e além de tudo o que o Carlos refere aqui, é a tentativa do cineasta em humanizar o pecador, conferir-lhe um desejo de remissão. Porque Etelka não é mais que um homem comum que no passado cometeu essa barbaridade. E desse desejo de remissão de Etelka ao enfrentar-se cara a cara com a sua vítima resulta não só essa humanização daquilo que (supostamente) seria desumano, como numa índole de aproximação entre vítima e carrasco (e o fruto daquele acto - o filho - reforça essa aproximação) expiando assim o pecado de cada um. Qualquer coisa como isto.

9 de janeiro de 2011

Madeo é uma historiazinha engraçada (que deve tanto à estranheza quanto ao humor negro) que se movimenta em terrenos impróprios, o que deixa a sensação de estarmos a ver ali algo errado. Desloca-se entre o thriller psicótico e o drama familiar construindo um presente percorrido pelo passado. Segredos, vinganças, perversidades, superprotecção, determinação, justiça (ou a procura dela) e ingenuidade. Madeo é isto tudo, uma salgalhada de incongruências num thriller assombrado pela relação de mãe e filho. Estranhíssimo.

Madeo (2009)
Joon-ho Bong

Estava praqui a lembrar-me qual seria o melhor filme do Preminger. Gosto muito do Laura e do Bonjour Tristesse, mas o The Man With The Golden Arm é um portento de filme. Se tivesse de escolher um seria muito provavelmente esse.

8 de janeiro de 2011

“I’m able to tell you only one thing. What we are trying to do is more and more and more pure cinema, which is maybe less and less and less story, less and less details, and of course, I really would like to go deeper and deeper and deeper in the human soul. I want to understand something because I’m always just discovering, discovering, discovering something, some new thing, some new possibilities in the film language. Of course, I keep some things but I’m always finding new things I can use. I really like to listen to people. I don’t like the artificial anymore. I want to go in like a miner, deeper and deeper. That’s what I think. That’s why I think I can do it always in one way if I’m more and more simple. What we are doing, it’s really on the edge. It’s a risk.”

Béla Tarr


Retirado daqui que por sua vez foi retirado daqui.

Stellet Licht (2007)
Carlos Reygadas

A procura da fé e a da materialização do acto miraculoso da reincarnação no cinema não é novidade. Aí, nesse contexto, Stellet Licht é a mais pura das homenagens (ou referências) a Ordet de Dreyer. Mas aqui Reygadas quer mostrar a fé na natureza, na beleza das luzes, do céu, da terra, das paisagens, da vida. A fé que Reygadas quer alcançar é a fé nos homens, na natureza, na humanidade. Por isso o sentimento de culpa, por isso o sacrifício tanto de Esther como no final o de Marianne.

Ao sentir-se dividido entre a paixão intensa com Marianne (e escolher Marianne significa o divórcio, significa desafiar as regras dos mennonites) e o amor sólido com Esther (a esposa e mãe dos filhos), Johan é um homem assolado pela dúvida e pela culpa. Mas ele sabe que essa dúvida tem de ser desfeita, sabe que tem de fazer uma escolha. Por isso aconselha-se com o amigo da oficina e depois com o pai. E ao falar com o amigo percebemos a dimensão da situação, percebemos a importância que Marianne tem para Johan. Mas Johan duvida, hesita. Marianne representa o novo amor (talvez o verdadeiro amor, talvez se tenha casado com a pessoa errada), mas Esther é a sua mulher (e o pai frisa-lho bem, lembra-lhe que o seu dever é com a mulher e os filhos, conta-lhe um episódio semelhante da sua vida, diz-lhe que também precisou de sentir, mas que é tudo fugaz, que a família é que importa). E neste dilema em que a escolha se revela tão difícil Johan faz sofrer Esther. Mais do que a traição, o que magoa Esther é a dúvida de Johan, a importância que Marianne tem para ele, a possível cessação do amor de Johan por si. Da dúvida chegamos ao sofrimento e consequentemente ao sacrifício. Esther morre de enfarte debaixo duma tempestade encostada a uma árvore. Ela sofre, chora de desgosto (momentos antes, no carro, Johan dissera-lhe que tinha estado mais uma vez com Marianne, que era mais forte do que ele). E morre de dor, de mágoa. Mas morre para Johan poder viver com Marianne, para ele poder encontrar a paz, para lhe desfazer a dúvida. E com este sacrifício, com este acto altruísta, Esther renuncia à vida e entrega-se a Deus (pois se ele a ama foi porque Deus assim o quis).

Reygadas, além de espiritualizar toda aquela história de adultério, define todo o seu desenvolvimento (a dúvida, a escolha, os sacrifícios) numa transcendência divina sobre esse dilema de Johan. A vontade de Deus (Johan escolher Marianne) e a vontade humana (ficar com Esther). Por isso o filme começa com o nascer do sol e acaba com o pôr deste. Mas a vontade humana é Marianne quem a demonstra. Porque quando Marianne dá um beijo a Esther (ao corpo gélido e inerte que ali jaz no caixão) e a ressuscita está ela também a sacrificar-se, a renunciar à vontade divina e ao amor de Johan pela felicidade deste. E é quando Marianne (num plano brilhante de Reygadas), abraçada a Johan (depois deste lhe dizer em choro que dava tudo para estar como antes), tapa o sol com a palma da mão (lá está a renúncia à luz divina) que a vontade humana prevalece. Mas o que fica sobretudo daquele final é ausência de redenção por parte de Johan. Porque realmente tudo volta a ser como antes, porque não há redenção possível, porque o que Johan finalmente percebe com a morte de Esther é que ama as duas e que, apesar de toda a angústia com aquela indecisão de dualidades afectivas, a dor da perda é ainda mais insuportável. Porque a paz é impossível, a plenitude é irrealizável.

Stellet Licht é um filme muito simbólico. Reygadas parece querer explorar a intervenção divina e a condição humana. E para isso recorre ao melodrama. Todos os seus filmes são melodramas que anseiam transcender-se. Porque todos eles vivem da dúvida (a vida e a morte em Japón, a redenção espiritual e a sexual em Batalla en el Cielo e a mulher e a amante aqui), da indecisão da escolha. Stellet Licht é um filme contemplativo, naturalista, extraordinariamente filmado. Tarkovsky é sim influência primária em Reygadas. Assim como Bresson, o seu minimalismo está lá, o nada de que Bénard falava sobre Pickpocket também, a utilização de actores não profissionais (porque quer mostrar um homem e não uma cara conhecida e as expressões que se conhecem) igualmente. Rossellini e Buñuel também se passeiam por ali. Stellet Licht é uma obra-prima absoluta, dos melhores filmes que vi na vida.

7 de janeiro de 2011

How does your film thwart the concept of "time"? You have the clock ticking loudly in the beginning, and then you have comments on the impossibility of time going backwards, but then it does.
CARLOS REYGADAS:
I think in cinema it is great to create your own world and take all the liberties you want. We stopped time to tell the story, a story that perhaps is only in our heads. When the old man fixes the clock, he is just fixing the time, he is making it correct; he is not making it go forward. Every time I have done something stupid or terrible, the first feeling is if I could just go back one second or to this morning, before he died, life would be different. But it is not that I regret the past, because I accept life. But the film doesn't. It is like Brel: you make the world a better world. I believe in my miracle. Some people think it is only imagination; she did come back alive. Yes, this is a citation: a homage to Dreyer's Ordet. In reality, I do not believe in miracles, but I think reality is a miracle. I don't think what happens in the Bible is so different from reality, even if I do not believe in them literally.
And your own belief?
When I was a boy, I asked my mother all the time about death, and what happens afterwards. Sometimes I wanted to be an atheist, I managed, but I didn't really believe. I wanted to be an atheist, but I believed despite myself.
And yet Battala en Cielo does not demonstrate this faith. Has something changed?
Both of my films have a sense of redemption; life can be really hard, but wonderful, in both.
What is your technique when it comes to aesthetics?
I plan the movement of the camera and the movement of the characters. I use non-actors. I make sure my characters know their texts by heart. We don't do rehearsals. Many times the first take is the best. I believe this is the best way to do it for my films. Only a non-actor can represent the kind of characters I have. I also have a lot of shots of movement, in tractors for example, to move from scene to scene. For example, the traveling forward in the garage, the traveling forward in the shower. Things like that happen without me planning it. It is a way to approach each moment little by little. It leaves you space to enter the frame and imagine what is going on. In Hollywood, in classical movies, they always started with the building. You get into the sound and space of the frame, the whole world. Each place demanded that the camera be placed in a certain place. Most of the film is shot frontally and laterally, because the place and the people demanded it. The people are Germanic and Protestant; they are visually homogenous and clean. They take the Bible literally, to take dominion over the land and propagate.
Your film is quiet yet quite intense.
I hate the idea that film is actually telling a story! The great part of film is to make you feel, not by the narrative. For example, the first shot of my film is cinematic. The light itself is beautiful. In literature, that does not exist. You can just write: "The sun came up." The beauty in my film is the sun itself. You don't have to recreate it. I also like the white light that she sees when she wakes up. Pure white. We worked with particular lenses to do it.
Your opening shot — where the sun rises — is considered the best opening shot of the festival.
I begin and end with stars. This is the beginning and end of the story. There is the universe — the broadest and largest thing — then we go to the story of these three characters — and then back to the universe. It is like our life; we think we are the center of the universe but then we are nothing too.
And land — you seem to love the landscape in your film.
As a child I grew up in Mexico City, with lots of time in the countryside on a ranch with my family. I went on tractors like the one in the film. My favorite scene is the rain scene. The reason I have a rain scene is because we have intense rain like that in Mexico.
Why Mennonites?
I am not particularly interested in Mennonites. I like that they are so uniform, so monolithic. They are all dressed the same. They are archetypes: the mother, grandmother, children. This way, I could concentrate on the essential: the love story. It is a difficult triangle. Here there is a divided heart: a man who really loves both. Everyone feels compassion for each other. The other woman wakes up the wife in an act of compassion. Christ died on the cross for us. It is the same for her. She did this for the love of her man.

Retirado daqui

6 de janeiro de 2011

Novamente sobre o novo Aronofsky, aquilo que me desiludiu não foi a (sua) forma de fazer cinema, os tais planos ultra-rápidos, a tal veia dos videoclips. Isso não é defeito, bem pelo contrário. Não, isso já no Pi o fazia. O que me desilude em Black Swan é a pretensão existente, a confusão de géneros que se cria (a desnecessária, ilusória e absurda recorrência ao ambiente obscuro e de tensão na aproximação do thriller psicológico), a euforia com que se filma que não é correspondida pelos actores (excepto Natalie Portman). Analisemos:

O que Black Swan conta é a história duma rapariguinha que finalmente (após muitos anos de trabalho, dedicação e obsessão ao ballet) consegue o papel principal (o dos cisnes branco e negro) na peça de Tchaikovsky, O Lago dos Cisnes. Até aqui tudo bem. O problema chega com a atribuição duma ambiguidade e complexidade ao conflito interior em que Nina incorre. E isto porque aquilo em que Aronofsky mergulha é numa salgalhada de misticismos e confusões de géneros (thriller, drama, romance), onde os seus esforços se dirigem para uma relação intensa e vulgar entre a peça e a evidente demência de Nina. A interpretação do Cassel deixa muito a desejar. Não há profundidade nas personagens, ao contrário do que existe com o conflito interior que assola Nina, o qual é exaustivamente explorado e absurdamente relacionado com a peça de Tchaikovsky. Porque esta ligação que Aronofsky atribui à peça e a Nina vem trazer uma obscuridade alheia à história, vem trazer o suspense, o thriller numa história que assim não o reclama. Pelo menos é assim que eu vejo o filme. Tanta euforia para quê? Toda aquela confusão mental esmiuçadinha para quê? O filme não é mau, donde veio até não está nada mau. Mas para mim nada mais que isso.
Absurdistan (2008)
Veit Helmer

A muitas léguas de Tuvalu, Veit Helmer parece querer neste Absurdistan retomar a fórmula do seu grande filme. Mas o que acontece é que Absurdistan não passa disso mesmo, duma tentativa falhada (embora pudesse resultar muito pior) de revisitar (ou reinventar) a tal fórmula que em Tuvalu resultou tão bem. Absurdistan passa por ser uma fábula romântica e cómica sobre um país perdido no mapa (narrada pelos dois protagonistas criando uma ideia (logo à partida) de final feliz). Utopia hilariante que se passeia por ali, tentativa irrisória (a exacerbada recorrência à voz-off do(s) narrador(es) e à consequente (embora escassa) ausência de diálogos entre os personagens) de dar a máxima atenção à mímica, aos gestos e aos comportamentos. Perseguição fugaz de um sentido insólito, influência tenaz de Kusturica. Absurdistan é um filmezinho engraçado.

3 de janeiro de 2011

Buried (2010)
Rodrigo Cortés

O que Rodrigo Cortés quer fazer é aprisionar o espectador, fazê-lo sentir a angústia do enclausurado. E consegue. Porque estamos lá, naquele mesmo espaço que Paul, porque nunca saímos dali. Porque é esse espaço e o condicionamento a esse mesmo espaço que cria todo o ambiente claustrofóbico e angustiante do filme. Esse é o grande trunfo de Buried. E é isso que nos interessa. Quero lá saber da denúncia política, quero lá saber da desumanização dos terroristas e do governo americano (e com isto não estou a depreciar o filme, bem pelo contrário). O que me interessa ali (a mim) é o espaço, o enclausuramento, a capacidade de criar em nós aflição e horror psicológico (embora o tema seja o grande causador disso). O que me interessa ali é Paul (apesar do actor não ser grande coisa) e a sua angústia, a forma como Cortés a filma (ainda que se vislumbre de vez em vez a necessidade de rebuscar tudo), a proximidade entre o espectador e o personagem. Buried é indubitavelmente um grande filme.
Obrigado Victor.

Black Swan (2010)
Darren Aronofsky

O problema do Aronofsky é querer intelectualizar tudo, é querer transcender a porcaria dum objecto qualquer. Já o fez antes e volta a fazê-lo. Esse é o grande mal do homem. É querer (quase) divinizar o ser humano e a história que conta. Quer estar próximo do ser humano, fazê-lo sentir-se. Mas falha. Porque há ali muito pretensiosismo e muito simbolismo desnecessário. Há ali muita exaltação, muito delírio visual e sonoro, muita ornamentação, ambiente forçado, desnorte de um género. Também há competência é claro. Imponente, muito bem filmado e uma grande Natalie Portman (é o filme que o deve a ela). Mas é pouco.

The Ballad of Cable Hogue (1970)
Sam Peckinpah