11 de fevereiro de 2022



 

O filme de Kaneto Shindô é coisa singela e duma beleza que me parece exclusiva a alguns… àqueles de destreza, de grandiosidade, àqueles dum outro tempo e outro cinema… não há hoje em dia cineasta que consiga filmar aquele sentimento, aquela simplicidade!... não há hoje cineasta que filme assim a tragédia… ou se os há são parcos, raros… hadaka no shima é desmesuradamente observacional, minucioso nos detalhes, nos ritos, na mecanização e automatização do processo laboral ou rural, nos gestos, nos trajectos… a dada altura veio-me à memória o finis terrae do Epstein, a mesma obstinação nos processos humanos e laborais em detrimento do enredo em si, a quase “documentarização” do objecto filmado, apenas interrompido pela chegada da tragédia anunciada. Ainda assim, quando esta acontece, a tragédia, o registo cinematográfico adoptado até ali não muda, à primeira vista pode até parecer que existe ali uma certa frieza quando apenas se filma a aceitação e a resignação… e os planos finais imersos na explosão da dor, da confrontação do pilar mais forte daquela família numa reacção oposta a outra anterior (lá no início do filme... nada de dor aí, apenas a reacção ao erro da mulher), compreensão e amadurecimento, a dor a moldar o homem, surgimento dum novo homem… são coisas idílicas ainda que abalroadas por certos primitivismos, ainda que a tragédia e a dor tentem usurpar grande parte dessa singeleza. Enorme!







 1960, Hadaka no shima, Kaneto Shindô

9 de fevereiro de 2022

5 de fevereiro de 2022



 

Guerra, José Oliveira e Marta Ramos, 2020


Guerra de José Oliveira e Marta Ramos é daquelas coisas em estado bruto, cristalinas, movidas pela paixão de quem ama o cinema e as suas sacralidades. Existe neste filme uma candura luminosa… como a luz que sobe naquele plano final, sacro, libertação, a transfiguração da matéria… bastava esse plano para colocar Guerra nos zénites do cinema… mas dizia eu, existe uma candura luminosa que nos acompanha desde o seu inicio, à luz e ao calor daquela fogueira (coisa fordiana até ao seu imo) onde dois soldados se aquecem e o mais velho fala de esperança e do retorno a casa, esses dois soldados que se fundem num só, o do passado e o do presente, o soldado Manuel, para no final se elevar - essa candura luminosa - no tal plano abismal e sacral, oliveiresco (do Manoel) que determina a transfiguração da alma. Mas essa luz que existe em todo o filme é ofuscada pela obscuridade e pela negrura dos traumas de Manuel… e nesse sentido, Guerra é uma espécie de herdeiro do cinema de Pedro Costa, vive-se no negro e nas trevas das memórias e dos traumas, aqui dum retornado da guerra colonial...

O filme de Oliveira e de Marta é pessimista, dum pessimismo imerso nas trevas mas ciente da luz, dum pessimismo do passado que se perpetua no presente mas com esperança no futuro, mesmo sendo no divino - novamente a magistralidade do plano final acentuando essa fé e essa sacralidade da alma e da vida -, são coisas transcendentais que registam a memória humana e a sua barbárie, é um mundo onde o primitivismo humano é exacerbado, essas memórias do pior do ser humano, da sua descida ao orco, os traumas que ficam aprisionados tal qual os titãs no tártaro, traumas esses que vão e voltam, fantasmas do passado a assombrar o presente (e existe ali uma certa analogia com o mundo actual), tumultos interiores…

José Lopes, o Manuel, o retornado antigo combatente da guerra colonial, o homem assombrado pelos traumas do passado, pela barbárie da humanidade, o grande actor que preenche as quase duas horas de filme… assombrosamente sobretudo nos seus monólogos, nos seus olhares e nas suas expressões, as suas revisitações do passado, das memórias, as fantasmagorias que o assolam, as manifestações e delírios oníricos, alucinações… Marta e Oliveira filmam aquelas rugas e aquele pavor monstruosamente, enquadramentos que vêm de Ozu (quando Lopes encara a câmara de frente, com o seu olhar para o espectador, seja directamente ou ao espelho), filmam o homem e o seu trajecto, as suas revisitações, os lugares e os momentos… portentosa interpretação e despedida do já falecido José Lopes!

Guerra é coisa sacra, colossal! Parabéns José e Marta.

4 de fevereiro de 2022

 


a registar:


1975, Maynila, Sa mga kuko ng liwanag, Lino Brocka
2018, Netemo sametemo, Ryûsuke Hamaguchi
1966, Duminică la ora 6, Lucian Pintilie
1941, Meet John Doe, Frank Capra
2020, Undine, Christian Petzold
2014, Phoenix, Christian Petzold
2021, The Card Counter, Paul Schrader
1995, Xích lô, Tran Anh Hung
2010, Pauline, Céline Sciamma
2015, In Jackson Heights, Frederick Wiseman
2021, France, Bruno Dumont
2021, Okul Tirasi, Ferit Karahan
2015, Bei Xi mo shou, Zhao Liang
2003, Talaye sorkh, Jafar Panahi
2020, Luz nos Trópicos, Paula Gaitán
2020, Ta fang jian li de yun, Xinyuan Zheng Lu
2021, Madres paralelas, Pedro Almodóvar
2016, Dangsinjasingwa dangsinui geot, Hong Sang-Soo
2017, Bamui haebyun-eoseo honja, Hong Sang-Soo
2018, Gangbyeon hotel, Hong Sang-Soo
2018, Grass, Hong Sang-Soo
2020, Domangchin yeoja, Hong Sang-Soo
2021, Introduction, Hong Sang-Soo
2021, Tre piani, Nanni Moretti
2021, Faya Dayi, Jessica Beshir
2020, A Nossa Terra, Nosso Altar, André Guiomar
2013, Pozitia Copilului, Cälin Peter Netzer
1960, Plein Soleil, René Clément
2021, Memoria, Apichatpong Weerasethakul
2015, Happî awâ, Ryûsuke Hamaguchi
2021, The power of the dog, Jane Campion
2021, Doraibu mai kâ, Ryûsuke Hamaguchi
2021, Gûzen to sôzô, Ryûsuke Hamaguchi
1949, Black Midnight, Budd Boeticher
1919, J’accuse, Abel Gance
1938, J’accuse!, Abel Gance
1923, Au Secours!, Abel Gance
1915, La Folie du Docteur Tube, Abel Gance
2018, Põrgu Jaan, Kaur Kokk
1967, Ulysses, Joseph Strick
2020, Guerra, José Oliveira e Marta Ramos


revisões:

1976, Rocky, John G. Avildsen
2002, Uzak, Nuri B. Ceylan
2012, Amour, Michael Haneke
2019, Nan Fang Che Zhan De Ju Hui - Yi'nan Diao
2001, Gosford Park, Robert Altman
1969, L’eclisse, Michelangelo Antonioni

1 de fevereiro de 2022

1919, J'accuse, Abel Gance
1938, J'accuse!, Abel Gance


... 

Embora o filme de dezanove seja superior ao de trinta e oito, os dois J'accuses de Gance, umas das minhas falhas até à pouco tempo (umas de muitas é claro), são coisas sacras, calvários do sacrifício e da vontade humana, realizações da bondade e da natureza humana na plenitude do orco, luzes no seio da escuridão...