Onna wa nido umareru (1961, Yûzô Kawashima)
19 de abril de 2025
18 de abril de 2025
| borzage, o supremo romântico |
Borzage foi talvez o mais lírico dos líricos do cinema, o mais idílico e que conseguiu imprimir um romantismo que nunca atravessou a linha que separa o sentimentalismo do melífluo… é, borzage foi isso tudo e talvez só outro frank o tenha igualado nisso, o capra, ainda que ford o tenha conseguido também, mas de outra forma, mais patriótico e mítico (talvez quiet man seja o ford mais aproximado disto que falo dos dois franks), tão humanista quanto eles, é certo, mas nunca tão miraculoso e transcendental quanto borzage (sobretudo borzage) e capra; little man, what now? é mais uma coisa magnífica que mergulha na escuridão e na feiura do mundo para nos mostrar como a força do amor tudo pode, tudo resiste; em borzage tudo é lírico, mas no altar onde a santíssima trindade se encontra uma delas é a moral, engrandece-se a humildade e glorifica-se a paz; em little man as trevas estão ali ao lado, o satanás convive com eles, mas até esse se comove com a pureza do amor, até esse se rende a ele e se redime; é portanto na rota do milagre que little man sempre caminha, imerge na adversidade e emerge dela e volta a imergir sempre à procura do milagre que só o amor o pode conseguir; mas é também as horas negras que assombram o homem e que ameaçam a desgraça que tentam hans, que lhe batem à porta para ver se ele a abre – e naquele momento em que depois de descobrir toda a imoralidade da madrasta pega naquela faca é quando ele esteve mais perto de a abrir; é também em borzage, e nele muito mais que em capra, que a candura dos seus personagens mais encanta, como se ali toda a perversidade da sociedade não entrasse, é essa candura que transcende o romantismo de borzage, a delicadeza e a ternura com que o retrata… como é belo o cinema de borzage!
17 de abril de 2025
15 de abril de 2025
| acabado de rever na cópia restaurada lançada à tempos pela The Stone and the Plot, só me fortaleceu a convicção de que é um dos mais importantes filmes portugueses |
«A filmes como O Movimento das Coisas costuma aplicar-se a designação documentário. É
despropositado, nesta “folha”, retomar a discussão acerca de tal designação e do que separa ou não
separa, enquanto objecto fílmico, o documentário da ficção. Mas também não adianta iludir a questão
classificativa e acrescentar lugares comuns do género dos que afirmam que toda a ficção é documento
e todo o documento ficção. Porque O Movimento das Coisas se situa na região indefinida onde essas
questões podem e devem ser postas sem as reduzir a chavões. Para exemplificar apenas com filmes portugueses dos anos 70-80, pode ser grande a tentação de
aproximar O Movimento das Coisas das obras de António Reis e Margarida Cordeiro, particularmente
Trás-os-Montes e Ana. A meu ver, não há maior contra-senso. Não apenas por uma questão
qualitativa (se muitos são os méritos de Manuela Serra, há uma enorme distância entre tais méritos e
a grandeza atingida por António Reis e Margarida Cordeiro) mas sobretudo porque a raiz do filme que
vamos ver, o seu imaginário e o seu fantástico, são de ordem completamente diferente.
Se comecei por uma comparação ingrata a Manuela Serra, não foi para poupar (mesmo relativamente)
o seu filme, mas porque essa comparação tem sido exercida noutros textos sobre esta obra
prejudicando a sua compreensão e o seu alcance. Atrás usei (e sublinhei) o adjectivo indefinida. Não foi
por acaso. Ao rigor que preside aos regressos originais e originados de António Reis e Margarida
Cordeiro, opõe-se em O Movimento das Coisas uma indefinição que lhe dá grande parte do seu
interesse e o singulariza não só em relação à via única – e inimitável – desses cineastas, como o
singulariza em relação a outras obras que podem, à primeira vista, ser aproximada desta, como são os
casos dos belos filmes de António Campos ou de Philippe Constantini.
O Movimento das Coisas não é nem pretende ser uma gesta mítica, como não é nem pretende ser
um documentário etnográfico ou antropológico. Reparar-se-á que a aldeia onde o filme se passa nunca
é situada. Lanheses é um nome que só aparece no genérico final, nos agradecimentos da autora.
Qualquer português identificará a aldeia, situando-a no norte de Portugal, mas a imprecisão geográfica,
ou a indefinição, para usar um termo mais apropriado, existe desde o início do filme. Não sabemos bem
onde estamos e nunca saberemos porque razão a realizadora nos levou até ali. Aparentemente, é uma
aldeia igual a tantas outras, onde coexistem ritmos ancestrais com influências da emigração, aldeia
onde predominam as mulheres, mas onde o trabalho destas não é exclusivo e as marcas de incipiente
indústria se começam a fazer sentir. Mas, desde a belíssima abertura, com o rio, as névoas, os juncos
e a câmara, muito lentamente, a descobrir-nos a povoação, sentimos que há uma relação física entre o
olhar da câmara e o que esta nos dá a ver, como se aquele espaço, aparentemente indefinido, fosse
também o único espaço possível para a corporização do imaginário contemplativo de Manuela Serra.
Essa mesma indefinição entre os diversos materiais é uma constante que atravessa o que o filme nos vai
dando a ver, com grande demora e certeira beleza. O filme não nos conta uma história (a família que o
atravessa jamais é portadora de qualquer ficção ou qualquer verdade); o filme não ilustra o quotidiano
de uma aldeia (as imagens do quotidiano mais ofuscam a narração do que a esclarecem); o filme não
está ao serviço de qualquer causa (em vão procuraremos ver nele leituras políticas, sociais ou
etnográficas); o filme não segue o ritmo exterior temporal (género, um dia na vida de uma aldeia, ou o
ciclo de estações). Podia continuar as enumerações, respondendo sempre pela negativa. E, no entanto,
tudo isso lá está (história, quotidiano, causa, tempo, espaço) mas lá está no mesmo modo indefinido
com que penetramos na comunidade. Numa linguagem literária, diríamos que a realizadora nunca
utiliza artigos definidos, mas opta sempre pelos artigos indefinidos. Como estes “artigos” se articulam
a uma matéria concreta (aparentemente despida de qualquer metafísica) a conjugação é estranhíssima
e impõe, desde o início, uma singular perturbação.
O exemplo flagrante do que estou a dizer é o uso da montagem. Aparentemente, a inserção de
sequências alheias ao que parece centrar a atenção da realizadora (pense-se nomeadamente, na
sequência do cantar da família ou na sequência da igreja) não tem qualquer nexo, parecendo arbitrárias
e retirando a duração necessária aos planos. Mas, com maior atenção, vamos descobrir que o uso de
montagem da cineasta é precisamente uma interrogação à montagem, como se Manuela Serra, a cada
momento, pusesse em causa essa própria noção, substituindo-a pela noção de colagem e reunindo num
todo os diferentes materiais que vai dando a ver.
Essa utilização específica é particularmente impressionante naquele que é, para mim, o mais belo
momento do filme. Refiro-me à sequência da igreja. O plano começa por nos mostrar a imagem de
Cristo no altar-mor e, depois, vai lentamente descobrindo o padre, o altar e a assistência. Contra-plano
e, do ponto de vista do altar, vemos a assistência e a porta da igreja aberta contra um céu nocturno e
azulíssimo. Tudo nos leva a supor que estamos numa missa nocturna, até que, lentamente e após novas
inserções das imagens “leit-motif” do campo, do rio e das névoas, voltamos à igreja, com uma luz
diferente, como se muito tempo se tivesse passado e os personagens permanecessem fixos naquele
ritual, tal arrancados a qualquer tempo preciso como a imagem de Cristo que a câmara nos dá em
pormenor. Quando as pessoas saem da igreja é dia (crepúsculo? alvorada?) ficando apenas acesas as
luzes da igreja, como se a noite se projectasse do interior desta para o exterior, num sinal contrário ao
da iluminação inicial.
Exemplos deste género multiplicam-se no filme, sempre por fragmentos, como se não houvesse outro
movimento senão aquele do que o título da obra nos fala. E esses fragmentos, e esses movimentos, são
tanto visuais como sonoros. Ouvimos bocados de diálogos que, em si mesmos, parecem sempre
esparsos e in-significantes. Mas o som com que ficamos é o da flauta da bela música de José Mário
Branco, tão obsessivo e tão embalador como o plano visual do rio que passa junto à aldeia.
Tudo flui e tudo flui indefinidamente nesta obra que voga vagamente. Mas tudo flui em torno desses
pontos de sustentação que são, paradoxalmente, os pontos de referência mais imateriais deste filme: a
paisagem ritual e o som da flauta, que guiam do princípio ao fim no nosso olhar.
O Movimento das Coisas é, simultaneamente, um filme extremamente materialista e extremamente
abstracto. Os dois termos não são inconciliáveis. Só que para o não serem é preciso uma determinável
visão e é essa visão que dá coerência a este filme disperso e o transforma numa obra una, com
surpreendente lógica e surpreendentes rimas.
Infelizmente, este filme, nunca estreado comercialmente, não teve sequência e Manuela Serra nunca
mais voltou a filmar nestes vinte anos. Até nisso, este filme ficou indefinido e invisível. Entre uma
longínqua passagem na Cinemateca há vinte anos, outra em 2004 e a sessão de hoje, quantas vezes
mais terá sido exibido? Das múltiplas singularidades do cinema português, este filme e o seu destino são
um dos casos mais singulares.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
Este texto foi escrito por João Bénard da Costa para acompanhar a exibição do filme em 1986, e revisto
pela última vez pelo autor para uma sessão realizada em 2006.»
(retirado da folha da cinemateca portuguesa)
14 de abril de 2025
1947, Black Narcissus, Michael Powell & Emeric Pressburger
No black narcissus, revisto hoje, quando a loucura na irmã ruth atinge o seu pico, antes de ser rejeitada por mister dean, a mestria de powell e de pressburger escancara-se para todos os que a percebam naquele momento em que as trevas da noite e dos trovões se misturam com a euforia da loucura de ruth e com a imagem de kali, que é naquele momento pela primeira vez desnudada do lençol que a tapava - simbolismo exímio ( um deles, porque o filme está repleto deles) não só da morte como da destruição que a deusa hindu simboliza -, e que naquele acto final de ruth, tão ou mais terrífica que a própria deusa que a incorpora totalmente a partir daí - e não é coincidência tudo acontecer após ela não renovar os votos da castidade -, a cristandade vença o hinduísmo, assim como a ressurreição vença a aniquilação.
13 de abril de 2025
1989, Johanna D'Arc of Mongolia, Ulrike Ottinger
| ritos de um povo em transformação |
Em johanna d’arc da mongolia depararmo-nos com um delírio etnográfico de ritos passados e em processo de esquecimento; ottinger biparte o filme para nos mostrar a disparidade entre ocidente/oriente, civilização/primitivismo (ou tradicionalismo); importantíssimo (obrigatório mesmo), johanna d’arc of mongolia tem uma primeira parte onde as europeias (e são as mulheres as personagens do filme, todos os homens são secundaríssimos e irrelevantes) se passeiam e se mostram pelo cavalo de ferro que atravessa desde a rota transiberiana à transmongoliana, para depois de uma hora e pouco de filme assumir o seu carácter ritualístico e etnográfico nas estepes mongóis onde as nómades raptam as europeias e a fronteira entre a ficção e o documental se funde e nos brinda com o ethos de um povo que caminhava para a ocidentalização e consequente perda de identidade...
8 de abril de 2025
2024, Gouzhen, Guan Hu
| dog’s land |
Black dog, drama realista na senda dum jia (o tio yao do filme), na sua análise da reabilitação do homem, insere o caos como ponto de partida (e de base capital) para o desenvolvimento da trama, onde um certo absurdismo coexiste com o surgimento dos laços que se criam entre homem/animal, o galgo preto que se afeiçoa ao ex-presidiário (e vice-versa), em pleno deserto do gobi onde a tonalidade cinzento-escura acentua o sentimento de abandono e caótico (e até apocalíptico) em que aquelas matilhas abandonadas se juntam e reinam por ali; exímio no seu ritmo, na sua condução narrativa, contido e sem histerismos, black dog desenvolve-se sobriamente evitando sensacionalismos ou facilitismos para atingir a redenção de lang; muito bom.
7 de abril de 2025
4 de abril de 2025
2016, The road to Mandalay, Midi Z
The road to mandalay, na sua pequena odisseia da procura de uma vida melhor na ilegalidade do país vizinho, é no fundo uma história de amor, que desde o início – e espaçada pela sonoridade adjacente e condizente a tal – anuncia a tragédia que chega no final; coisa realista, midi z analisa a luta pela sobrevivência da emigração ilegal, numa incessante busca pela legalização, a corrupção, a exploração e as injustiças inerentes a todo o processo, mas lá no fundo, bem no fundo deste conto nevrálgico do fatalismo, está o amor, a decepção e a obsessão que determinará o encontro da tragédia; muito bom.
3 de abril de 2025
30 de março de 2025
Sobre au fond des bois do jacquot, filme assombroso que remete para o desejo mas que se desdobra numa complexidade notável, é de realçar a forma como o cineasta francês explora o poder da sedução e a fragilidade do seduzido; numa metamorfose desenvolvida progressivamente, que parte do fantasmático e do encantamento, au fond des bois analisa a capacidade do poder mental (e do olhar) e da altercação do poder; se é timothée quem rapta e força joséphine a segui-lo e a ter relações com ele por meios encantatórios, progressivamente observamos a passagem do comando dele para ela, sugerida mais tarde pelo fórceps hipnótico de joséphine desafiar a dor e a morte, culminado no final de ascendência “joséphiniana”; é nessa alternância (que se estende à temporalidade e à sociedade em si, tendo joséphine como símbolo dessa evolução social), na fragilização do raptor/feiticeiro (o feitiço mata o feiticeiro) pela crescente obsessão por joséphine, como se à medida que o desejo se torna amor a fragilização acontece, que au fond des bois se revela na sua maestria, deixando-nos ainda no final a dúvida de ter sido sempre ela a sedutora; magnífico!
29 de março de 2025
1987, Matewan, John Sayles
| carvão vermelho |
Em matewan, filme de mineiros (ou sobre eles) e da luta de classes, longe daquele lirismo e daquele sentimentalismo do ford de how green was my valley, mas próximos do realismo do malick do days of heaven e do pioneirismo do cimino de heaven’s gate ou do huston de sierra madre, o folk é a perfeita sonorização para um filme de época em transição do velho oeste para uma era progressiva.
Op sumptuosa que na sua crueza oscila entre o western e o que se lhe seguiu, estamos ainda naquela américa mítica dos caminhos de ferro, mas também dos xerifes e alguns cavalos, américa profunda ao sul (west virginia), embarcamos nessa transição do velho oeste para o novo onde a máquina capitalista está em seu pleno furor; conjuntura política que definiria o que (ainda) são hoje os estados unidos, falamos do ressurgimento socialista e do apogeu comunista um pouco por todo o mundo, revolução russa, alemã (falhada), na itália seriam esmagados pelo aparecimento do fascismo, é sobretudo bakunin quem é citado por joe, um anarquista a servir de modelo a um sindicalista chamado de vermelho (comunista); é no sindicalismo que o novo vem substituir o velho, ou na luta dele, o sentido pioneiro de todo o filme abarca não só a sua ambiência e o seu espaço como também esse detalhe da temporalidade, que aqui é dual com essa transição - e matewan está no epicentro dessa transição.
Ora, se o velho oeste ainda lá está enraizado em matewan, cidade mineira que à exploração está habituada, quase tudo pertence à companhia mineira, os direitos são trabalhar e calar, a desumanização do trabalhador, é nessa sindicalização que o progresso se faz ver, inclusive na erradicação do racismo que apenas serve como factor divisório do trabalhador, é a luta de classes que é priorizada, os homens dividem-se em dois diz joe: os que trabalham e os que não; é portanto no realismo que matewan se apresenta, no realismo e na luta social num sul ainda a braços com a sua transformação.
A igreja, a fé, isso surge ainda em matewan como catalisador (e prova da conciliação) da luta de classes, como se a fé renovasse as forças (e a clarividência: lembremos o momento em que danny salva joe através da pregação na missa) daqueles trabalhadores ameaçados e escravizados pelo capital, como se ela, a fé, fosse o catalisador dessa resistência pela justeza laboral e social e assim gritasse ao mundo: não, a fé não é inimiga da classe trabalhadora!
28 de março de 2025
1955, Un eroe dei nostri tempi, Mario Monicelli
| la paura |
Sordi em un eroe dei nostri tempi personifica na sua plenitude a desprezibilidade no homem, interpretação magnífica a atestar a sua grandiosidade como actor, o eterno cobarde e neurótico-maníaco que rege a sua vida segundo um medo incompreensível e uma timidez risível, fruto da criação/educação de mãe e tia; monicelli faz de un eroe dei nostri tempi uma sátira extremamente divertida e fluente, nada devendo às screwball comedys americanas, onde a flutuação entre o anedótico e a análise político-social (a crítica ao capitalismo está lá, à autoridade também) convivem em perfeita sintonia.
Monicelli é daquela nata de cineastas italianos que são muitas vezes esquecidos e depreciados face aos consagrados, no entanto ofereceu-nos autênticas ops assombrosas como é o caso deste la grande guerra; entre o neoralismo e a comédia, monicelli consegue em la grande guerra, como em tantos outros filmes seus (i compagni por ex), humanizar os seus personagens oscilando entre a coragem e a cobardia, a honra e a vileza, o patriotismo e a ausência dele; magnífico.
26 de março de 2025
Em miséricorde, guiraudie adentra-se pelo reino da bizarria e do surrealismo por portas realistas, nas quais o emaranhado pseudo-filosófico escatológico culminado naquele diálogo entre padre e assassino à beira de um penhasco oscila entre o simbolismo e o psicologismo; objecto falhado, miséricorde busca uma espécie de efabulação da perversão e da danação do ser humano, tentando assim adentrar na obscuridade da sua natureza e dos seus desejos primários; mas é na construção desse vórtice, que se inicia no ciúme e no realismo para culminar na bizarrice e na condenação da humanidade, que miséricorde se perde, nunca se encontrando a si próprio nem ao seu pretenso surrealismo.
25 de março de 2025
1970, Five easy pieces, Bob Rafelson
| too long in exile |
Em five easy pieces, “filme-herdeiro” de easy rider que acaba por se desconstruir e progressivamente ir aniquilando esse herdamento - na verdade five easy pieces fala da geração seguinte - há um confronto entre dois mundos no interior de um homem inadaptado ou permanentemente insatisfeito; se em five easy pieces reluz ainda algo daquela américa mítica de ford ou (sobretudo) de huston, é na verdade com os seus contemporâneos que o filme de rafelson dialoga (cassavetes, bogdanovitch, malick, hellman, altman…), numa constante confrontação entre esses dois mundos declarados e metaforizados (burguesia vs proletariado, erudição vs rudeza, limpeza vs sujidade, culto vs inculto, racionalidade vs irracionalidade, etc) que desaguam no tédio e na insatisfação que bobby sente e que lhe proporcionam a sua complexidade; é portanto essa a origem da sua irritabilidade e da sua frieza emocional que apenas sofre flutuações aquando das suas explosões irascíveis; na verdade, é a sua insatisfação, que lhe faz rejeitar o elitismo do mundo familiar, que resulta na sua irascibilidade e na sua falta de amor-próprio como lhe diz catherine perto do final, por isso se prende a alguém que despreza, que acha inferior e patética, até ao final libertador em que se dá ou a tomada de consciência ou o recomeçar de mais um ciclo.
23 de março de 2025
2016, Cartas da Guerra, Ivo M. Ferreira
| ecos coloniais |
Filme soberbo que consegue transcender as suas principais influências (a malickiana do the thin red line e a coppoliana do apocalypse now). Fica um excerto do texto do Vasco Câmara aquando da estreia:
E eis que nos devemos preparar para um filme que foge das armadilhas colocadas no percurso e, mais surpreendente ainda, que tacteia no escuro atrás da sua vida interior, que fiel à voz que ouve. É filme simultaneamente delicado e temerário. Por isto: aventura-se a procurar um corpo, para a personagem António (interpretada por Miguel Nunes) e para si próprio, que esteja num lugar que não aquele a que parecia destinado. Aventura-se a criar e organizar o (seu) mundo, como se não houvesse pré-existências.
Voz-off? Não, a voz não vem de fora a sublinhar ou a demonstrar, impossibilitando assim a vida própria dos planos. A voz vem de dentro, é o próprio filme a construir-se, a falar (-se). É voz in, à procura de um lugar out. Isto vale para Cartas da Guerra e vale para António - as cartas são o desejo de um encontro erótico com uma mulher (Margarida Vila Nova), num espaço que anule a guerra, que a derrote, que faça o mundo, que é essa história de amor, recomeçar do zero. A personagem e o filme querem estar num outro lugar.
Muito cedo António deixa de ser prisioneiro das expectativas "criadas" pelo facto de ser o escritor António Lobo Antunes quando jovem e parte para a sua própria aventura de personagem. Quer ganhar corpo. Figura frágil, inicialmente presença diáfana, vai conquistando progressivamente o (seu) espaço, a consciência política, a dimensão como escritor. Essa é exactamente a aventura de Cartas da Guerra: filme à procura de si próprio, de um corpo que chame seu. Este corpo a corpo filiam-no menos no Tabu de Miguel Gomes do que, por exemplo, nas aventuras malickianas. Há um filme para que este remete, se assim o quisermos, A Barreira Invisível/The Thin Red Line. Mas mais do que um título em especial, é com a experiência da criação do mundo que está nos filmes de Terrence Malick - como se todas as matérias se organizassem num caos inicial, e o filme fosse o testemunho vivo, a prova, de um nascimento - que Ivo M. Ferreira caminha. De forma desassombrada, aliás. Por isso a meia hora final de Cartas da Guerra pode mesmo ser qualquer coisa de triunfante. É um filme que não só sobrevive a si próprio, como se ergue. É uma personagem que se afirma. A guerra foi de Ivo M. Ferreira, o filme é dele.
21 de março de 2025
2007, Ferien, Thomas Arslan
2020, Blanco de verano, Rodrigo Ruiz Patterson
1956, Kiri no oto, Hiroshi Shimizu
2013, Grzeli nateli dgeebi, Nana Ekvtimishvili e Simon Groß
1999, Dealer, Thomas Arslan
2013, Gold, Thomas Arslan
2017, Helle Nächte, Thomas Arslan
1985, Tokyo-Ga, Wim Wenders
2024, Longlegs, Oz Perkins
1981, Coup de torchon, Bertrand Tavernier
2017, Braguino, Clément Cogitore
1941, Ball of fire, Howard Hawks
2007, United Red Army, Kôji Wakamatsu
1985, Le livre de Marie, Anne-Marie Miéville
2023, Bonnard, Pierre et Marthe, Martin Provost
2018, Maghzhaye Koochake Zang Zadeh, Houman Seyyedi
2002, Occident, Cristian Mungiu
1989, Chodník cez Dunaj, Miloslav Luther
1972, Ludwig - Requiem für einen jungfräulichen König, Hans-Jürgen Syberberg
1923, Cœur fidèle, Jean Epstein
1938, L'étrange Monsieur Victor, Jean Grémillon
1946, The spiral staircase, Robert Siodmak
1993, Chronicle of the undeclared war (Transnistria 1992), S. Fateev
2017, Le vénérable W., Barbet Schroeder
1933, Okraina, Boris Barnet
2008, Adoration, Atom Egoyan
1931, The miracle woman, Frank Capra
2022, Slovo, Beaty Parkanové
1950, Luci del varietà, Federico Fellini e Alberto Lattuada
1969, L'amour fou, Jacques Rivette
1974, Céline et Julie vont en bateau, Jacques Rivette
1976, Duelle (une quarantaine), Jacques Rivette
1976, Noroît (Une vengeance), Jacques Rivette
1959, Middle of the night, Delbert Mann
1980, Merry-Go-Round, Jacques Rivette
1981, Le pont du Nord, Jacques Rivette
1984, L'amour par terre, Jacques Rivette
2003, Buongiorno, notte, Marco Bellocchio
1960, Jungfrukällan, Ingmar Bergman
1982, Fitzcarraldo, Werner Herzog
2023, A flor do buriti, Renée Nader Messora e João Salaviza
2024, Juror #2, Clint Eastwood
2024, Verbrannte Erde, Thomas Arslan
2024, Dahomey, Mati Diop
2014, Timbuktu, Abderrahmane Sissako
2018, Alpha: The right to kill, Brillante Mendoza
2024, Anora, Sean Baker
2016, Kedi, Ceyda Torun
2024, All we imagine as light, Payal Kapadia
2024, Feng liu yi dai, Jia Zhang-Ke
1968, La concentration, Philippe Garrel
1931, Kameradschaft, G. W. Pabst
1960, The Apartment, Billy Wilder
1982, The Verdict, Sidney Lumet
2024, The room next door, Pedro Almodóvar
2024, Maria, Pablo Larraín
2010, O estranho caso de Angélica, Manoel de Oliveira
1944, Kanko no machi, Keisuke Kinoshita
1956, Together, Lorenza Mazzetti
2024, Keyke mahboobe man, Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha
2024, Grand Tour, Miguel Gomes
1969, Adelheid, František Vláčil
2024, Wu suo zhu, Tsai Ming-Liang
2006, Pillar, Bas Devos
2014, Violet, Bas Devos
2019, Hellhole, Bas Devos
2019, Ghost tropic, Bas Devos
2023, Here, Bas Devos
1958, Idiot, Ivan Pyryev
2022, Da-eum So-hee, July Jung
2024, L'Histoire de Souleymane, Boris Lojkine
1977, Budapesti mesék, István Szabó
2012, Simon killer, Antonio Campos
1995, La fille seule, Benoît Jacquot
1985, Hurlevent, Jacques Rivette
2017, Northerners, Ilya Povolotsky
2019, Froth, Ilya Povolotsky
2023, Blazh, Ilya Povolotsky
1999, Pas de scandale, Benoît Jacquot
2024, Hors du temps, Olivier Assayas
2020, Jeongmal meon gos, Park Kun-Young
2009, Villa Amalia, Benoît Jacquot
Revisões:
1966, La religieuse, Jacques Rivette
1984, Once upon a time in America, Sergio Leone
1999, Todo sobre mi madre, Pedro Almodóvar
1990, Goodfellas, Martin Scorsese
1988, The Accused, Jonathan Kaplan
1997, Donnie Brasco, Mike Newell
1972, The Godfather, Francis F. Coppola
1974, The Godfather II, Francis F. Coppola
1990, The Godfather III, Francis F. Coppola
1975, Dog Day Afternoon, Sidney Lumet
1998, New Rose Hotel, Abel Ferrara
1953, Gentlemen prefer blondes, Howard Hawks
1959, Some like it hot, Billy Wilder
1987, The Sicilian, Michael Cimino
2017, Good time, Benny Safdie e Josh Safdie
2002, Road to Perdition, Sam Mendes
2009, Public Enemies, Michael Mann
1999, Bringing out the dead, Martin Scorsese
1958, Man of the west, Anthony Mann
1958, The Big Country, William Wyler
1946, It’s a wonderful life, Frank Capra
1973, Mean Streets, Martin Scorsese
1995, Casino, Martin Scorsese
2001, Enemy at the gates, Jean-Jacques Annaud
20 de março de 2025
A distant place é um filme inteligente, consegue transmitir uma mensagem subliminarmente sem se tornar um chorrilho quer de propaganda quer de sensacionalismo; na verdade, em todo o seu lirismo que coexiste na perfeição com o realismo, o filme de kun-young fala-nos de amor e das barreiras que a sociedade lhe criou; mas o mais interessante em a distant place é não fazer da temática um panfleto propagandístico, ainda que no fundo, a mensagem esteja lá; em todo seu vórtice psicológico e na sua imersiva imanência das personagens - alcançando mesmo o mediúnico lá perto do final -, o filme projecta em si o conflito interior de quem enfrenta o preconceito e se vê face à iminência de abdicar de quem criou; ora está, naquilo que o filme de kun-young reclama, a plenitude do amor, a recusa em se centrar na questão homossexual resulta na sua grande vantagem, reforçada pelo ritmo, pela contemplação e pelo distanciamento que a própria câmara adopta a maior parte das vezes… sem ser exuberante, a distant place resulta num filme bastante competente.
18 de março de 2025
O último assayas deixou-me indeciso sobre o que achar dele, pretende ser várias coisas ao mesmo tempo, sem que seja necessariamente competente nem inepto, mas resulta num certo pretensiosismo que cria algum desconforto no espectador; hors du temps é uma mistura de rohmer com woody allen e sang-soo, recheado de referências literárias e cinematográficas, naquilo que pretende ser uma análise ao comportamento humano em tempos de isolamento pandémico; as tensões criadas entre os personagens são mal exploradas (ou insuficientemente exploradas), confunde-se a origem dos conflitos oscilando entre as memórias da infância e o isolamento em si, a paranoia “covideira” dum vs o relaxamento doutro, etc; assayas faz um filme de diálogos e aquilo que mais me ficou foi o pretensiosismo eclético que o cineasta adopta descurando assim do desenvolvimento das suas personagens e das suas neuroses/conflitos…
17 de março de 2025
Ilya Povolotsky
2019, Froth
2023, Blazh
| de northerners (cura-metragem documental) a blazh (road movie ficcional), o cinema de povolotsky é tão belo quanto a aridez das suas paisagens; se em northerners e em froth, povolotsky documenta o métier das gentes de murmansk num olhar meio que etnográfico mas incisivamente frio e perto da desolação, em blazh a desolação é total e aliada à alienação e ao tumulto interior em conflito intenso com a contenção; belíssimo |
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Qual o melhor filme de Hitchcock? Estou dividido entre o Rear Window e o Spellbound .