22 de agosto de 2022

 






2021, Un Monde, Laura Wandel



Geralmente pensamos no cinema como a arte de mostrar algo, das imagens em movimento e de como tudo isso nos contam uma história. A obra de estreia de Wandel é coisa preciosa, coisa que imerge no realismo das imagens e da arte de contar uma história. Esse mundo do seu título original revela-se mais complexo e tortuoso que à partida possamos imaginar, mergulhamos na crueldade que existe na infância e no impacto psicológico que daí resulta. O trauma resultante do bullying que atormenta Abel é o mesmo processo traumático que atinge Nora, a irmã, que assiste a isso... na realidade, Un monde é mais Nora que Abel, é mais luta interior de quem vê sofrer do que de quem sofre. A câmara de Wandel segue Nora como a câmara dos Dardenne seguia Rosetta, com uma aproximação absurda aos personagens principais na procura do intimismo e dum tipo de inserção realista no espaço, bem como um enquadramento e um posicionamento dessa câmara sempre ao nível das crianças, criando assim uma distância entre estas e os adultos. Desde o primeiro instante, em que Nora, com as lágrimas no rosto, resiste a ser "largada" no palco que irá preencher a tela durante pouco mais de uma hora, a escola, que o trauma se adivinha. Aos poucos, a frieza e a crueldade das vicissitudes daquele campo de batalha irá afectar emocionalmente e psicologicamente aqueles dois irmãos, o processo traumático desdobra-se desde o instinto de protecção (de parte a parte) até à rejeição e finalmente, no final, à redenção. Ainda que Un monde viva do processo traumático de quem sofre e vê sofrer, da impiedade que por vezes a infância tem, Laura Wandel foge de negruras e ambiências sombrias, como que a querer dizer que, apesar de tudo, a infância é luz! Filmaço.

20 de agosto de 2022

 



1951, Cielo Negro, Manuel Mur Oti



Se nos mês passado lembrámos aqui Cottafavi e a ironia da sua carreira, agora chegou a vez de Manuel Mur Oti, cineasta espanhol da geração de Luis García-Berlanga e Carlos Saura, que começou a fazer cinema aos 41 anos e que, apesar da boa recepção pelo público e pela crítica da generalidade dos seus filmes (chamavam-no “el genio”), caiu no esquecimento a partir da morte do General Franco.  A explicação para tal é simples. É que com a entrada de um novo regime eram precisas obras que simbolizassem a ruptura, não os sucessos comerciais, feitos com o apoio e graças de uma ditadura e do seu líder. 

Ao vermos um dos seus melhores filmes Cielo Negro (o segundo de uma carreira de 17), temos precisamente os temas queridos da ditadura como a importância da religião cristã ou a materialização do melodrama nos dilemas do amor como marcas de um género e de uma “atmosfera”. Contudo, a sua protagonista, Emília (Susana Canales), uma jovem que sempre viveu com a mãe, que nunca teve um namorado, que nunca foi à verbena (festa), que vê muito mal, não é o protótipo de mulher submissa que esperaríamos. Há nela uma força (apesar da inocência) com que agarra o homem que quer para namorado, com que rouba o vestido para a festa, com que obriga o poeta impostor [Fernando Rey instigado pela antagonista Lola (a presença da actriz portuguesa Teresa Casal, à data mulher de Arthur Duarte)] a prolongar a farsa até à morte da mãe. Uma força que em último instinto a impele a pôr a hipótese do suicídio.

É por sobre essa força que Mur Oti se revela como cineasta. Ao contrário de muitos filmes feito no Estado Novo em Portugal onde o folhetim era tudo e a expressividade cinematográfica algo raro, Cielo Negro controla a tragédia lacrimejante (o filme da ceguinha como lhe chamavam), com absoluta certeza. Eis alguns traços:

1. A ponte da cena final vista logo no primeiro plano do filme, a partir de casa de Emília, quando tudo estava bem (quando ainda não chovia). Se esse plano inicial nos mostra a simbologia da vida de Canales antes do amor, com os pássaros na gaiola à janela, a saída lá para fora revela o preço da liberdade;

2. A cegueira. Antes desta ser apresentada como elemento da tragédia [como o é por exemplo em Magnificent Obsession (Sublime Expiação, 1954) de Douglas Sirk] ela é, logo no início, trabalhada na relação com espaço: é o dia tan hermoso de Emília, onde o céu surge pequenino emparedado entre linhas de cimento; ou são os gerânios que ela pergunta à mãe se estão à janela da vizinha, ao que esta mente ante a visão das meias estendidas; ou essa sequência tão erótica quanto difusa da ida à festa com o amado Fortún. Como se a sua alegria que são 75 minutos e depois duas horas (ela conta o tempo que passa) fosse só uma questão de música, de luzes (os fogos de artifícios são estrelas) da proximidade dos corpos. Nessa sequência ela tira os óculos à boneca que ganha nas rifas, como o fizera a si própria antes de sair de casa. Mais do que se impor a beleza, Emília quer impor-se a cegueira, para poder amar Fortún por breves instantes (para ir-se à felicidade é preciso ir-se sin gafas), ainda que ele seja boémio, ainda que ele não a queira da mesma maneira. Esse acto perfeitamente edipiano, a auto-cegueira é uma etapa de crescimento que depois se converte numa inevitabilidade. É quando Emília sabe que vai ficar cega e que não pode trabalhar, o momento em que realmente “vê”: como se a cegueira física fosse o preço a pagar pela clarividência interior.

3. E quase nos esquecíamos da sequência final. A mãe morreu. Ela ficará cega. Tudo aponta o trágico. Emília revolta os olhos e sai. Junta às escadas perguntam-lhe: “¿A dónde vas Emília? Sube!”. Mas Emília desce. E nós sabemos onde vai. Sai para a rua. Chove, chove sempre. Voltamos a ver a ponte ainda com mais certeza de uma tragédia. Corre, resoluta, mesmo cega sabe o caminho. Quando chega à ponte vira-se para nós e sentimos outra vez essa força, essa espécie de abertura do ser ante o sofrimento extremo. Vira-nos costas, debruça-se sobre a ponte e a câmara com ela. Lá em baixo passa um eléctrico. Mur Oti põe a câmara junto ao solo para nos dar a distância. Mas é no último momento que Emília ouve os sinos, inesperados, belos, que numa torrente demencial a chamam. Das igrejas, de todas. A salvá-la. E para quem tinha dúvidas desse milagre rosseliniano no final, esses sinos não lhe pedem que viva, intimam-na a fazê-lo. E depois é o regresso à vida com os sinos “celestiais” cada vez mais intensos. Já se foi o vestido comido pelas traças e só há um xaile sobre os ombros a amparar da chuva num travelling inenarrável, considerado por muitos o mais belo de toda a história do cinema.

Carlos Natálio

daqui (https://www.apaladewalsh.com/2012/09/cielo-negro-1951-de-manuel-mur-oti-2/) 

13 de agosto de 2022

 


Garbo Laughs” foi a frase mais insistentemente usada pela publicidade para lançamento desta célebre película, que marca o único encontro de dois dos mais famosos nomes de Hollywood nos anos 30: Ernst Lubitsch e Greta Garbo.

Até Ninotchka, a “divina” tinha feito sempre papéis sérios ou trágicos e nunca participara em qualquer comédia. Daí a curiosidade com que foi aguardada esta nova faceta e aquele que seria o penúltimo filme de Garbo. Ela voltaria a rir (pelo menos tão bem como na obra que vamos ver) no seu último filme, igualmente uma comédia: Two-Faced Woman, realizado por George Cukor em 1941.

Aliás, Cukor, que já dirigira Greta Garbo em 1936 no magnífico Camille, foi o realizador inicialmente designado para dirigir Ninotchka, quando, depois de enorme pega com David O. Selznick, este lhe retirou Gone With the Wind. Lubitsch ia então começar a realização de The Women. À última hora, Mayer trocou-os. Lubitsch ficou com Ninotchka, Cukor com The Women.

Há muitos anos que Lubitsch queria dirigir a Garbo e dizia a quem o quisesse ouvir: “How wonderful Greta and I would be together. What a wonderful picture we could make together”. Finalmente, a ocasião surgiu neste filme a que Mayer torceu muito o nariz. Não só achava que Greta Garbo nunca seria convincente numa comédia, como, apesar do seu visceral anti-comunismo, receou as reacções de muitos críticos e intelectuais influentes que há 69 anos pensavam e escreviam sobre a URSS exactamente o contrário do que os bisnetos deles pensam e escrevem hoje. Greta Garbo também teve medo. Foi o próprio Lubitsch quem declarou que foi difícil convencê-la e que, na célebre cena da gargalhada, a actriz estava em pânico. Pediu ao realizador que mudasse. Lubitsch ter-lhe-ia respondido: “I’ll do anything you want. I’ll change the script, the dialogue, anything, but this can’t be changed. Too much depends on it”. E dependeu.

Noventa por cento da publicidade e noventa por cento do êxito do filme vieram dessa cena. Mas deve dizer-se que o êxito, inicialmente, não foi muito grande, apesar de três designações para o Oscar (melhor filme, melhor actriz, melhor história original). Mas ainda não foi dessa vez – não foi nunca, aliás – que Garbo obteve a estatueta. Vivien Leigh bateu-a, no Gone, como “toda a gente” sabe.

Se comecei por falar de Garbo é porque, ainda hoje, é o seu mito o mais poderoso pólo de atracção para esta obra. Mas falar de Ninotchka é sobretudo falar de Lubitsch, numa das suas mais portentosas realizações. Certamente, Ninotchka não é o melhor Lubitsch, mas nele estão integralmente presentes as suas decantada e depurada arte e o famigerado Lubitsch touch.

Antes de chamar a atenção para alguns dos mais belos exemplos do seu estilo neste filme, digamos algo sobre o seu argumento e a sátira anti-URSS, que tanta tinta fez correr e tantos engulhos causou. Estava-se em 1939 e Estaline acabava de assinar com Hitler o famoso pacto de não agressão que caiu como uma bomba nos meios ocidentais. Embora a América guardasse ainda algumas distâncias em relação ao conflito europeu, a política de Roosevelt tinha uma orientação marcada (a favor das democracias ocidentais) e o pacto autorizava consequentemente a que às sátiras à Alemanha nazi (das quais a mais célebre seria O Ditador de Chaplin no ano seguinte) se juntassem as dirigidas à União Soviética. O famoso gag da troca, na estação, entre o camarada russo e o dirigente hitleriano é uma charge directa ao espírito desse Pacto e à luz dele se compreende.

Mas, de tanto se falar na sátira à URSS, têm-se esquecido que Lubitsch – mestre das aparências e ambiguidades – não apontou só para esse lado. Três anos depois, seria dele um dos filmes que mais ridicularizaria o nazismo (To Be Or Not to Be) e, mesmo em Ninotchka, a aristocracia (francesa ou russa) não é melhor tratada do que os camaradas soviéticos. A Grã-Duquesa Swana não é objecto de mais meigo tratamento (para já não falar do Conde-criado) e o próprio Melvyn Douglas é implacavelmente caracterizado (as relações com o criado e, sobretudo, o jantar no restaurante dos operários com a sua suposta familiaridade). Mais uma vez, Lubitsch ri de tudo e à custa de todos e não será Ninotchka que provará parcialidade. Nesse capítulo, a invenção mais genial é a escolha de Constantinopla (com tudo o que de pouco europeu e muito pouco democrático, à época, cidade e país evocavam) para o encontro final dos comunistas russos e do conde francês. Pode dizer-se que Lubitsch inventou avant la lettre o “terceiro mundo”, do qual, aliás, se ri tanto como dos outros dois.

Noto agora, alguns dos mais saborosos achados de Lubitsch nesta comédia:

a) Mais uma vez, as honras são para o seu sentido de elipse, tanto visual como sonoro. A sequência em que os três camaradas instalados na suite real, fazem as suas encomendas, com a banda sonora a funcionar em off sobre as portas que se abrem e fecham, é um exemplo antológico, como o são o já citado gag da saudação hitleriana, a troca de chapéus, a cena em que Garbo propõe a Douglas mostrar-lhe os ferimentos, a estátua da república com a coroa no quarto de Douglas, a cena da casa de banho do restaurante de luxo ou as sucessivas entradas e saídas do comissário Razinin (desempenhado pelo popularíssimo especialista de filmes de terror, Bela Lugosi, o que já de si é um achado). Como achados são as utilizações dos retratos de Lenine e Estaline ou a sequência dos beijos, com o famoso “Again” da Garbo.

b) Os portentosos diálogos, funcionando para todos os lados. Tanto para justificarem a instalação no hotel dos russos, como para as maquinações de Douglas e da Grã-Duquesa (“comprarmos o nosso futuro com o teu passado”).

c) A construção da narrativa com o clou na famigerada sequência das gargalhadas de Garbo (repare- se na utilização anterior da anedota dos escoceses) ou na da sua não menos célebre bebedeira. Talvez Greta Garbo nunca tenha sido tão admirável como quando bebe champagne pela primeira vez (“lt’s good”) ou quando, depois, de olhos fechados, ouve o barulho da rolha da garrafa.

d) Finalmente, o último gag, talvez hoje o que mais faz pensar. Apesar da conversão ao capitalismo, os três ex-comissários continuam em purgas. Kopalski apagou-se no anúncio luminoso do restaurante e exibe o cartaz onde se lê: “Buljanoff and lranoff unfair to Kopalski” e ficamos sem saber se aprendeu à sua custa o que significa a livre concorrência ou se tudo mudou para tudo ficar na mesma.


JOÃO BÉNARD DA COSTA

10 de agosto de 2022


 

Últimas coisas vistas, entre filmes da Muratova, Bressane e revisões do Stalker, A torinói ló e Madam Satan do DeMille, quatro filmes de Grémillon, portentosas obras, maravilhamento total pelo cinema clássico francês. Lumière d'été, safra de 43, é noir que transpira tragédia desde o início, desde aquela chegada de Michele ao hotel, coisa progressiva que vai revelando a personalidade das personagens, coisa negra que se serve da distância entre as personagens para cavar o fosso de trevas que se vai revelando e crescendo… onde nuns existe amor, noutros há obsessão, caminho demoníaco, as trevas dominam Patrice como no passado já o haviam dominado, o destino afigura-se trágico e aniquilador. Lumière d'été é um portento de filme.
Le ciel est à vous, no ano a seguir, volta a trazer a deslumbrante Madeleine Renaud no papel duma esposa dum ex-piloto e mecânico que se deslumbra e apaixona pela aviação. Fábula emocional, Le ciel est à vous é coisa singela e humana que exalta a mulher.
De 44 saltamos para 51, L’étrange Madame X, filme de enganos e desenganos, de amor e de traição, de ilusão e decepção, de candura e de astúcia. É naqueles dois amantes, um iludido e outro perdido, que se encontra o contraste social, ele operário e pobre, conduzido por um amor idealizado que mal sabe ele não corresponder à realidade, e ela madame rica, perdida nas incertezas e nas mentiras duma vida dupla, a correr contra o tempo que a cerca com os acontecimentos do presente e a pressionam a tomar uma decisão…coisa melancólica.
Por fim, L’amour d’une femme de 53, ultima longa-metragem de Grémillon, assombro total. Tal como L’étrange Madame X, L’amour d’une femme é coisa melancólica, mais ainda até, mergulha na ambiguidade e no confronto dum amor que impõe com a vocação que a preenche.
Os filmes de Grémillon são coisas líricas e melancólicas que atestam a sua grandiosidade.