Até Ninotchka, a “divina” tinha feito sempre papéis sérios ou trágicos e nunca participara em
qualquer comédia. Daí a curiosidade com que foi aguardada esta nova faceta e aquele que seria o
penúltimo filme de Garbo. Ela voltaria a rir (pelo menos tão bem como na obra que vamos ver) no
seu último filme, igualmente uma comédia: Two-Faced Woman, realizado por George Cukor em
1941.
Aliás, Cukor, que já dirigira Greta Garbo em 1936 no magnífico Camille, foi o realizador inicialmente
designado para dirigir Ninotchka, quando, depois de enorme pega com David O. Selznick, este lhe
retirou Gone With the Wind. Lubitsch ia então começar a realização de The Women. À última
hora, Mayer trocou-os. Lubitsch ficou com Ninotchka, Cukor com The Women.
Há muitos anos que Lubitsch queria dirigir a Garbo e dizia a quem o quisesse ouvir: “How wonderful
Greta and I would be together. What a wonderful picture we could make together”. Finalmente, a
ocasião surgiu neste filme a que Mayer torceu muito o nariz. Não só achava que Greta Garbo nunca
seria convincente numa comédia, como, apesar do seu visceral anti-comunismo, receou as reacções
de muitos críticos e intelectuais influentes que há 69 anos pensavam e escreviam sobre a URSS
exactamente o contrário do que os bisnetos deles pensam e escrevem hoje. Greta Garbo também
teve medo. Foi o próprio Lubitsch quem declarou que foi difícil convencê-la e que, na célebre cena
da gargalhada, a actriz estava em pânico. Pediu ao realizador que mudasse. Lubitsch ter-lhe-ia
respondido: “I’ll do anything you want. I’ll change the script, the dialogue, anything, but this can’t be
changed. Too much depends on it”. E dependeu.
Noventa por cento da publicidade e noventa por cento do êxito do filme vieram dessa cena. Mas
deve dizer-se que o êxito, inicialmente, não foi muito grande, apesar de três designações para o Oscar (melhor filme, melhor actriz, melhor história original). Mas ainda não foi dessa vez – não foi
nunca, aliás – que Garbo obteve a estatueta. Vivien Leigh bateu-a, no Gone, como “toda a gente”
sabe.
Se comecei por falar de Garbo é porque, ainda hoje, é o seu mito o mais poderoso pólo de atracção
para esta obra. Mas falar de Ninotchka é sobretudo falar de Lubitsch, numa das suas mais
portentosas realizações. Certamente, Ninotchka não é o melhor Lubitsch, mas nele estão
integralmente presentes as suas decantada e depurada arte e o famigerado Lubitsch touch.
Antes de chamar a atenção para alguns dos mais belos exemplos do seu estilo neste filme, digamos
algo sobre o seu argumento e a sátira anti-URSS, que tanta tinta fez correr e tantos engulhos
causou. Estava-se em 1939 e Estaline acabava de assinar com Hitler o famoso pacto de não
agressão que caiu como uma bomba nos meios ocidentais. Embora a América guardasse ainda
algumas distâncias em relação ao conflito europeu, a política de Roosevelt tinha uma orientação
marcada (a favor das democracias ocidentais) e o pacto autorizava consequentemente a que às
sátiras à Alemanha nazi (das quais a mais célebre seria O Ditador de Chaplin no ano seguinte) se
juntassem as dirigidas à União Soviética. O famoso gag da troca, na estação, entre o camarada russo
e o dirigente hitleriano é uma charge directa ao espírito desse Pacto e à luz dele se compreende.
Mas, de tanto se falar na sátira à URSS, têm-se esquecido que Lubitsch – mestre das aparências e
ambiguidades – não apontou só para esse lado. Três anos depois, seria dele um dos filmes que mais
ridicularizaria o nazismo (To Be Or Not to Be) e, mesmo em Ninotchka, a aristocracia (francesa
ou russa) não é melhor tratada do que os camaradas soviéticos. A Grã-Duquesa Swana não é
objecto de mais meigo tratamento (para já não falar do Conde-criado) e o próprio Melvyn Douglas é
implacavelmente caracterizado (as relações com o criado e, sobretudo, o jantar no restaurante dos
operários com a sua suposta familiaridade). Mais uma vez, Lubitsch ri de tudo e à custa de todos e
não será Ninotchka que provará parcialidade. Nesse capítulo, a invenção mais genial é a escolha de
Constantinopla (com tudo o que de pouco europeu e muito pouco democrático, à época, cidade e
país evocavam) para o encontro final dos comunistas russos e do conde francês. Pode dizer-se que
Lubitsch inventou avant la lettre o “terceiro mundo”, do qual, aliás, se ri tanto como dos outros dois.
Noto agora, alguns dos mais saborosos achados de Lubitsch nesta comédia:
a) Mais uma vez, as honras são para o seu sentido de elipse, tanto visual como sonoro. A sequência
em que os três camaradas instalados na suite real, fazem as suas encomendas, com a banda sonora
a funcionar em off sobre as portas que se abrem e fecham, é um exemplo antológico, como o são o
já citado gag da saudação hitleriana, a troca de chapéus, a cena em que Garbo propõe a Douglas
mostrar-lhe os ferimentos, a estátua da república com a coroa no quarto de Douglas, a cena da casa
de banho do restaurante de luxo ou as sucessivas entradas e saídas do comissário Razinin
(desempenhado pelo popularíssimo especialista de filmes de terror, Bela Lugosi, o que já de si é um
achado). Como achados são as utilizações dos retratos de Lenine e Estaline ou a sequência dos
beijos, com o famoso “Again” da Garbo.
b) Os portentosos diálogos, funcionando para todos os lados. Tanto para justificarem a instalação no
hotel dos russos, como para as maquinações de Douglas e da Grã-Duquesa (“comprarmos o nosso
futuro com o teu passado”).
c) A construção da narrativa com o clou na famigerada sequência das gargalhadas de Garbo (repare-
se na utilização anterior da anedota dos escoceses) ou na da sua não menos célebre bebedeira.
Talvez Greta Garbo nunca tenha sido tão admirável como quando bebe champagne pela primeira vez
(“lt’s good”) ou quando, depois, de olhos fechados, ouve o barulho da rolha da garrafa.
d) Finalmente, o último gag, talvez hoje o que mais faz pensar. Apesar da conversão ao capitalismo,
os três ex-comissários continuam em purgas. Kopalski apagou-se no anúncio luminoso do
restaurante e exibe o cartaz onde se lê: “Buljanoff and lranoff unfair to Kopalski” e ficamos sem
saber se aprendeu à sua custa o que significa a livre concorrência ou se tudo mudou para tudo ficar
na mesma.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
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