3 de setembro de 2023

 


2023, Roter Himmel, Christian Petzold


Há no último filme de Petzold, que é coisa assombrosa e magnética, aquilo que já havia em undine, e que o seu cinema vem cada vez mais a declarar, que é um elo entre o real e o espiritual, ou a materialidade e a imaterialidade; em roter himmel, aonde o amor vai brotar a sua chama, precisa de experienciar os seus medos para assim os expiar e no fim recomeçar, como o livro que Leon escreve terá de ser recomeçando; os medos de Leon são exponenciados pela falta de confiança, mas também pela confiança dos outros, e se é o fogo um dos veículos para o aniquilamento da alienação e da apatia, é também o fogo que lhe vai permitir no final alcançar o culminar do processo evolutivo do qual Nadja é o gatilho; a dada altura do filme, quando ela fala na bioluminescência do mar, a fonte da segurança deles todos face ao perigo dos incêndios, cria-se um simbolismo e uma relação entre o mar e Nadja, aos olhos de Leon, apaixonado desde o primeiro olhar sobre ela, e que determina a suspensão entre o real e o espectral nesta tragicomédia brutal, simbolismo que naquela floresta, perto do final, também adquire o seu sentido quando o javali bebé morre queimado em frente a Leon, como que prenunciando a tragédia que virá logo a seguir.
Rotter Himmel é um filmaço.

24 de agosto de 2023

 



        “A um primeiro nível, a metáfora da prisão é uma representação relativamente simples do conflito corpo/alma. As personagens abandonam gradualmente os próprios corpos, mais ou menos da maneira que Fontaine escapa passo a passo do cárcere. A cadeia do corpo é o derradeiro impedimento à emancipação da alma. Joana d’Arc deposita a sua fé em Cristo e S. Miguel, em parte esperando e em parte ansiando que venham em sua ajuda, «mesmo que seja através de um milagre». Mas quando se apercebe de que o «milagre» da sua fuga será na realidade o seu martírio, desdiz a falsa confissão e opta pela morte, afirmando: «Prefiro morrer a prolongar este sofrimento.» Na noite anterior à execução, o irmão Isambart dá-lhe a comunhão e interroga-a: «Acreditas que isto é o corpo de Cristo?» «Sim, e é o único que me pode salvar», responde Joana. «Não tens esperança no Senhor?», pergunta Isambart pouco depois, ao que ela responde: «Sim, e com a ajuda de Deus estarei no Paraíso.» A salvação de Joana é a morte: o único modo de escapar da prisão é abandonar o seu corpo.

        Assim que o corpo é identificado com a prisão, surge uma tendência para a auto-mortificação. O pároco rural mortifica o corpo e na hora da morte entrega-se nas mãos de Deus. Em O Carteirista a metáfora está invertida: a prisão de Michel é o crime, e a liberdade dele está no cárcere. Também o processo dele é uma auto-mortificação, que, no entanto, não o leva à morte. Fontaine é o único protagonista do ciclo da prisão que não se persegue a si próprio activamente, embora os seus hábitos sejam bastante ascéticos. Nele, a liberdade do corpo coincide com a liberdade da alma, e esta singular ocorrência é resultado da graça, um tema que Bresson trata em profundidade em Fugiu um Condenado à Morte.

(…)

        Nos filmes de Bresson a graça permite ao protagonista aceitar o paradoxo da predestinação e do livre-arbítrio. Para demonstrar a ortodoxia de Bresson neste aspecto, Ayfre cita Santo Agostinho: «A liberdade da vontade não é anulada pela acção da Graça, antes é desse modo consolidada.» Todavia não é suficiente que a graça esteja presente, já que é ao homem que cabe escolher recebê-la. O homem deve escolher aquilo que lhe foi predestinado. Fontaine pode aceitar correctamente a intervenção da graça através de Jost porque, previamente, manifestou a vontade de fugir. Do mesmo modo, Joana, porque escolhe acreditar nas vozes que ouve («Como sabias que era a voz de um anjo?», é-lhe perguntado. «Porque quero acreditar», responde), pode reconhecer a graça na sua morte. No final de O Carteirista, Michel chega à aceitação da graça na pessoa de Jeanne, a quem diz através das grades: «Que estranho caminho tive de tomar para chegar a ti.» Mas a máxima afirmação da graça sai da boca do pároco rural, cujas últimas palavras antes de morrer são: «Tudo é graça.» Se se aceitar o estilo transcendental, então tudo é graça, porque apenas ela permite que o protagonista e o espectador se sintam simultaneamente presos e livres.”


Paul Schrader, 'O Estilo Transcendental no Cinema'

13 de julho de 2023

 

O tédio enquanto instrumento estético 

Recusar aos espectadores o que estes procuram. Recusar, recusar, recusar. Porque haveria um espetador de suportar tamanhos maus-tratos? Tamanho tédio.
Bom, a maioria dos espectadores não o faz. A maioria dos filmes ditos lentos é de facto «aborrecida» (um juízo subjectivo, mas as coisas são como são) e não há assim tanta gente que goste de slow cinema.
Alguns filmes «lentos» possuem o efeito contrário. Prendem o espectador. Servem-se de forma calculada do tédio como instrumento estético. O aborrecido transforma-se em fascinante. São esses os filmes verdadeiramente importantes.
Por que razão aguentamos isso? O tédio. A distância. Em primeiro lugar, porque os praticantes eficazes do slow cinema são mestres na gestão das expectativas. Recorrendo a imagens impactantes, truques auditivos e fragmentos de actividade, o realizador de um filme «lento» mantém o espectador cativado, a julgar que há uma recompensa, uma «compensação» logo ao virar da esquina. É uma chantagem hábil. Se me for embora, vou perder aquilo de que tenho estado à espera. Até o espectador experimentado no slow cinema conta com alguma coisa. Algum momento. Algum fim para as expectativas. A espera vai valer a pena.
Em segundo lugar, porque alguma coisa a acontecer. O cinema permite-nos olhar em volta. Quando é bom, o slow cinema dá-nos algo que ver quando o fazemos.
A terceira razão está relacionada com o acto de ir ao cinema. Ir ver um filme é como ir à igreja. Estabelece-se um compromisso. «Vim cá de livre e espontânea vontade e aceito as regras.» não se sai de uma cerimónia religiosa passada meia hora por ser aborrecida. Os filmes «lentos» tiram partido desse pacto entre o espectador e o que é visto.
Em quarto lugar, temos aquilo a que Haladyn chamou «vontade de tédio». O que desemboca no «sim fervoroso» - o sim nietzschiano -, «que persiste perante a falta de sentido de um mundo subjectivo, na esperança de ver mais (…), de criar sentido onde não existe nenhum.»
(...)

in 'O Estilo Transcendental no Cinema', Paul Schrader

27 de junho de 2023


 

1974, La gueule ouverte, Maurice Pialat


entre as fodas do filho, a depravação do pai e o leito de morte agonizante da mãe, pialat, talvez o mais bressoniano cineasta francês (e o mais anti-nouvelle vagueano), e só isso é sinónimo de ausência de ornamentos narrativos e visuais, coisa portanto crua e frontal, declara na sua magnitude a antítese das relações entre pai e filho, e a sua hereditariedade, mãe e filho, e moribunda com quem a rodeia; la gueule ouverte opõe a vida à morte, sendo a vida esse fulgor e esse frenético impulso sexual que os faz, a pai e filho, trair as suas mulheres e ser mulherengos, ainda que no fim vejamos que o amor estava lá, num travelling final assombroso que quer dizer tanto mas tanto... grandioso é ser modesto!

20 de junho de 2023


 

1994, Wrony, Dorota Kędzierzawska 


O cinema de Kędzierzawska é coisa sokuroviana e kieslowskiana, ao adquirir deles os elementos oníricos e contemplativos assume assim a sua linguagem cinematográfica para a partir daí criar um cinema muito próprio vincado nos silêncios e na linguagem corporal dos seus personagens; em wrony existe uma tendência crescente de efabular aquela história de uma criança inserida na disfuncionalidade familiar, vive com a mãe, que desde operária a puta cultiva, no fundo, um desdém pela filha, ela sente-o, sente particularmente a solidão e a ausência física e afectuosa da mãe, é no fundo essa lacuna que lhe insere a ânsia de interpretar ela esse papel de mãe, como que querendo mostrar a si mesma que ela é diferente; a candura em confronto com a negrura do mundo.