26 de julho de 2024

 









1961, Banditi a Orgosolo, Vittorio De Seta 



| de um tempo em que o neo-realismo italiano caminhava já para o definhamento, de seta dá ao mundo uma obra-prima que abarca não só todo um universo bíblico como antropológico, etnográfico, etc; à semelhança de outras obras-primas com o mesmo formalismo e a mesma linguagem cinematográfica, la terra trema de visconti ou finis terrae do epstein, banditi oscila entre a documentalidade e a dramaturgia onde por vezes se esforça mais por registar os ritos e o próprio métier bucólico; no entanto, banditi a orgosolo reclama para si todo o fatalismo e toda a condenação do mundo, rejeita qualquer redenção, bem pelo contrário, e toda e qualquer estase... sucumbe-se à perdição... magnífico |
















2019, Il varco [Michele Manzolini, Federico Ferrone] 




| documentário com 98 ou 99% de imagens de arquivo, narrado por um anónimo soldado italiano em tempos de plena segunda grande guerra, deslocado para a frente oriental, mais concretamente para a ucrânia, o filme tem essa particularidade de mostrar o lado vencido, as memórias dos algozes, os italianos seguem assim os alemães na invasão aos russos naquilo que seria o início da queda germânica; o ambiente do filme, além de desolador e melancólico, é também lírico mas ao mesmo tempo lúcido, o soldado já experiente em guerra, vindo de áfrica, mostra medo apesar do optimismo geral, apesar do aparente caos soviético, desde o início ao fim é expresso o desejo de voltar a casa, como sendo um sonho longínquo e utópico; no entanto, é na procura do paralelismo com a actualidade - 2018, guerra civil ucraniana em curso -, que me parece residir o principal intuito de il varco, é aí que são evocados fantasmas do passado e assim adquire contornos mais fantasmáticos e desoladores, é aí que o sofrimento humano se dilata no tempo para se perpetuar naquele espaço; uma lancinante imersão na negrura de uma página da história da humanidade | 















2023, Zielona granica, Agnieszka Holland 




| o que fica de green border, filme político que "mete o dedo na ferida" e que, como objecto cinematográfico, está bem composto de gatilhos emocionais e de facilitismos narrativos, é o final onde se denuncia a distinção das medidas políticas polacas, e consequente actuação das patrulhas fronteiriças, entre as fronteiras com a bielorrússia e com a ucrânia | 
















1994, Du li shi dai, Edward Yang 




| uma das coisas magistrais e absolutamente deliciosas em uma confusão confuciana do yang é o seu satirismo e a sua comicidade residirem à superfície, escondendo (ou tentando) o melodrama e o romantismo... fabuloso | 

















 L'air de Paris [Marcel Carné, 1954] 




| l'air de paris é coisa ambivalente, carnéana no seu sentido pleno, tão lírico quanto realista, é no amor que a ambiguidade se confunde com ambivalência, há o boxe e há as mulheres, mas também há uma relação muito próxima de victor com andré que tanto ciúme suscita a blanche, onde muitos lêem uma hipotética ou sugestionada homossexualidade; falando em leituras, se à superfície l'air de paris se traduz no amor de dois homens pelo boxe e na entreajuda (e na troca de favores, um treina e dá "asilo" e o outro pode dar a glória não só ao próprio como ao treinador que passou uma vida em busca disso), lá no fundo deste pungente e feérico petardo sobre as frustrações humanas, reside a ânsia desesperada da libertação, o boxe como metáfora ou veículo desse sentido libertário daquilo que molda e transforma o ser humano, a sociedade |

















1944, Bluebeard, Edgar G. Ulmer 


| em bluebeard, conto terrifico tantas vezes adaptado ao grande ecrã, o mais interessante nesta versão de ulmer, cineasta que nos ofereceu coisas mais série b, é a sua subtileza com que desenvolve a trama, assim como a sua veia expressionista que atinge picos de beleza no seu final |

















| a luz que emerge das trevas | 


1946, The man I love, Raoul Walsh 


"We are all in the gutter, but some of us are looking at the stars." (Oscar Wilde) 


















1939, The roaring twenties, Raoul Walsh



| há em the roaring twenties, outro dos sumptuosos walshes, uma oscilação quase orgásmica da descida ao orco e da subida ao éden, oscilação que tem lugar não só em eddie, numa das grandes interpretações de cagney, como naquela américa economicamente inflacionária do pós-guerra que tanto se vira para uma lei seca próspera no contrabando como enfrenta um crash da bolsa; a primeira descida ao orco, vertiginosa e inevitável, é a primeira guerra mundial, ponto de partida de roaring twenties, é logo aí que conhecemos a tripla que me fez lembrar (não obstante todas as suas diferenças), a tripla que lá pelos anos sessenta, sergio Leone criou para o seu bom, mau e o vilão, é naquele buraco onde se abrigam das bombas inimigas que os destinos daqueles três homens se encontram e se irão interligar; mas dizia eu, a oscilação parte dessa descida ao hades na guerra para no retorno a casa a oportunidade do crime organizado na lei seca o levar ao éden, ou pelo menos ao que se lhe assemelhe no mundano com toda a ilusão que o poder apresenta e com todo o glamour que os filmes de gangsters dos anos trinta detinham (a paixão ou o amor atingem-no e durante a ilusão da conquista amorosa há de facto, em eddie, essa felicidade paradisíaca), e é após o crash da bolsa de vinte e nove que o ciclo oscilatório se completa com o retorno ao orco; no meio dessa vertiginosa viagem trevosa que inicia naquele buraco em mil novecentos e dezoito para não mais encontrar a luz - talvez naquele final redentor se vislumbre uma sacralidade e uma subida ao verdadeiro éden -, encontramos a mestria de walsh e as suas escolhas narrativas na jornada de ascenção e queda social que as escolhas daqueles três "camaradas" de guerra trazem nos anos vinte duma américa em ebulição | 

27 de junho de 2024

 








| 1945, The body snatcher, Robert Wise | 



Em the body snatcher a escuridão é total, se há filme em que a descida ao hades é de tal forma tão terrifica e tão vertiginosa é este; em nome do progresso, o conto de stevenson analisa o facto macabro de que a evolução da medicina e o conhecimento da anatomia humana passou, obrigatoriamente, pela dissecação de cadáveres, a morte como via sine qua non para a vida, ponto de partida para o que wise executa com mestria, é esse mergulho tão negro quanto o carvão e tão assustador quanto as casas assombradas mais assustadoras; na verdade, em body snatcher assistimos a uma simbiose de almas - "tu e eu temos dois corpos... sim, tipos de corpos muito diferentes... mas estamos mais próximos do que se estivéssemos na mesma pele, pois salvei essa sua pele uma vez e não te vais esquecer disso” diz gray a dada altura a macfarlane -, o passado que assombra e tolda o presente, é coisa que determina a acção, a tal descida vertiginosa ao hades, a perversão progressiva da alma, a sua completa escuridão que tem o seu pico naquele final tão aterrador e negro; e depois, que eu saiba, não há outro filme em que o frankenstein mata o drácula... 
















 | 1964, Lilith, Robert Rossen | 



há em lilith um dos maiores gritos cinematográficos por redenção, contido e reprimido durante o filme todo até ao momento final em que é expressado e suplicado; na verdade, toda a narrativa de lilith é sobre os fantasmas reprimidos de bruce, expelhados em lilith, mulher oposta mas também "gémea" do seu fantasma, a mãe, a perda irrecuperável que o assombra lá no âmago da sua alma, é, portanto, ela o veículo para o libertar, lilith, a doente bipolar, tão pura quanto perversa que "caiu" após a morte do irmão, a doente que apenas quer ser irmã de todos, que o seduz e o enlouquece e assim o guia para o limite onde se encontra ou a destruição ou a salvação. 






"Será uma almeia?... às primeiras horas azuis
Destruir-se-á ela como as flores defuntas...
Diante da esplêndida vastidão em que se sente
Respirar a cidade largamente florescente!

É belo de mais! De mais! Mas é necessário
- Para a Pescadora e a Canção do Corsário,
E também porque as últimas máscaras contaram
Ainda com as festas nocturnas no mar puro!

Julho de 1872
A. R."

(Rimbaud)













 | 1991, Avstriyskoe pole, Andrei Chernykh | 



a procura da esperança (e da felicidade e do amor e dum sentido na vida) num mundo alienado e fragmentado; ambiguidade narrativa no tempo e no espaço; magnético e imersivo 



 “Saímos, com efeito, de uma evolução natural, mas desde que ingressamos no mundo da cultura, as nossas relações com a natureza tornaram-se mediatizadas, misturadas com o 'ruído' ideológico. É porque nos afastamos da natureza que queremos reencontrá-la. Entretanto, não podemos reencontrar a unidade perdida, nem um 'saber reconciliado'. O pensamento humano é algo singular, bizarro, no Univerno; ele não reflete o real, ele o traduz, não reflete o mundo, faz uma representação dele. Não podemos pôr fim a essa alienação, o nosso estranhamento com essa natureza, que é contudo nossa mãe/madrasta. É preciso romper com a visão sobrenatural e insular do homem, mas não podemos romper com nossa situação peninsular e biocultural.” 
 
Edgar Morin 














 | 1971, Emitaï, Ousmane Sembène | 

      (o sangue dos "impuros") 



 “Why did Africa let Europe cart away millions of Africa's souls from the continent to the four corners of the wind? How could Europe lord it over a continent ten times its size? Why does needy Africa continue to let its wealth meet the needs of those outside its borders and then follow behind with hands outstretched for a loan of the very wealth it let go? How did we arrive at this, that the best leader is the one that knows how to beg for a share of what he has already given away at the price of a broken tool? Where is the future of Africa?” 

 Ngũgĩ wa Thiong'o, 'Wizard of the Crow' 














 (o amor é a verdadeira força da natureza para além dos tempos) 




 | 2023, La bête, Bertrand Bonello | 




o último bonello, além de ser daqueles filmes que precisa de ser revisto para se entender melhor, é uma imersão experimental por um universo lynchiano somado a laivos weerasethakulianos e resnaisnianos; daquilo que me ficou e depreendi das quase duas horas e meia que, diga-se, passam a voar, foi a tentativa de dissolver a barreira da morte como interrupção das emoções ou dos sentimentos no ser humano; três épocas, três versões das mesmas duas pessoas, sempre interligadas por esse amor intemporal, interrompido, quase que proibido, sempre acompanhado pelo mensageiro da morte, o pombo; se entramos num mundo místico, onde as vidas passadas são recuperadas para entender (ou tentar) os sentimentos presentes, vamos depois chegar ao pós-humanismo e à ameaça da ia onde a morte assume outro sentido, mais vasto, mais destruidor que a própria morte em si; no final fica a dúvida se o amor sobreviverá também a isso. 






"MEMÓRIA 

Amar o perdido 
deixa confundido 
este coração. 

Nada pode o olvido 
contra o sem sentido 
apelo do Não. 

 As coisas tangíveis 
tornam-se insensíveis 
à palma da mão 

 Mas as coisas findas 
muito mais que lindas, 
essas ficarão."

Carlos Drummond de Andrade

















| 2015, Kishibe no tabi, Kiyoshi Kurosawa | 



 o sobrenatural de kiyoshi é aqui transcendido na procura da eternidade, o perdão como busca imperativa para alcançar essa eternidade; no entanto, há em rumo à outra margem uma tranquilidade pristina associada não só à morte como à busca pela redenção nessa vida para além da morte; belíssimo.




"SABEDORIA I, III 

Que dizes, viajante, de estações, países? 
Colheste ao menos tédio, já que está maduro, 
Tu, que vejo a fumar charutos infelizes, 
Projectando uma sombra absurda contra o muro? 

Também o olhar está morto desde as aventuras, 
Tens sempre a mesma cara e teu luto é igual: 
Como através dos mastros se vislumbra a lua, 
Como o antigo mar sob o mais jovem sol, 

Ou como um cemitério de túmulos recentes. 
Mas fala-nos, vá lá, de histórias pressentidas, 
Dessas desilusões choradas plas correntes, 
Dos nojos como insípidos recém-nascidos. 

Fala da luz de gás, das mulheres, do infinito 
Horror do mal, do feio em todos os caminhos 
E fala-nos do Amor e também da Política 
Com o sangue desonrado em mãos sujas de tinta. 

 E sobretudo não te esqueças de ti mesmo, 
Arrastando a fraqueza e a simplicidade 
Em lugares onde há lutas e amores, a esmo, 
De maneira tão triste e louca, na verdade! 

Foi já bem castigada essa inocência grave? 
Que achas? É duro o homem; e a mulher? E os choros, 
Quem os bebeu? E que alma capaz de os contar 
Consola isso a que podes chamar tuas dores? 

Ah, os outros, ah, tu! Crendo em vãos lisonjeios, 
Tu que sonhavas (e era também demasiado) 
Com uma qualquer morte suave e ligeira! 
Ah, tu, que espécie de anjo sempre amedrontado! 

Mas que intenções, que planos? Terás energia 
Ou o choro destemperou esse teu coração? 
A julgar pela casca, é uma árvore macia 
E os teus ares não parecem de vencedor, não. 

Tão desastrado ainda! e com a agravante inútil 
De seres cada vez mais um sonolento idílico 
A fitar pla janela o céu sempre tão estúpido 
Sob o astuto olhar do diabo do meio-dia. 

Sempre o mesmo na tua extrema decadência! 
Ah! — Mas no teu lugar, e assumindo as culpas, 
Um ser sensato quer impor outra cadência 
Com o risco de alarmar um pouco os transeuntes. 

Não terás, vasculhando os recantos da alma, 
Um vício pra mostrar, qual sabre à luz do dia, 
Algum vício risonho, descarado, que arda 
E vibre, dardejante, sob o céu carmim? 

Um ou mais? Se os tiveres, será melhor! E parte 
Prà guerra e briga a torto e a direito, sem 
Escolher ninguém e enverga a indolente máscara 
Do ódio insaciado, mas farto também… 

Não devemos ser tansos neste alegre mundo 
Onde a felicidade não é saborosa 
Se nela não vibrar algo perverso, imundo, 
E quem não quer ser tanso tem de ser maldoso. 

- Sabedoria humana, eu ligo a outras coisas 
E, de entre esse passado de que descrevias 
O tédio, em conselhos ainda mais penosos, 
Só consigo lembrar-me, hoje, do mal que fiz. 

Em todos os estranhos passos desta vida, 
Dos lugares e dos tempos, ou também dos meus 
«Azares», de mim, dos outros, da estrada seguida, 
Sempre retive apenas a graça de Deus. 

Se me sinto punido, é porque o devo ser. 
O homem e a mulher não estão aqui em vão. 
Mas espero que um dia possa conhecer 
O perdão e a paz que aguardam os cristãos. 

É bom não sermos tansos neste mundo efémero, 
Mas pra que o não sejamos na eternidade, 
O que é mais necessário que reine e governe 
Nunca é a maldade, mas sim a bondade."

Paul Verlaine





 "O perdão é um catalisador que cria a ambiência necessária para uma nova partida, para um reinício."

Martin Luther King 















 | 2023, Eureka, Lisandro Alonso | 



 historicidade e misticismo dos povos indígenas ameríndios olhado sobre o estigma das suas comunidades; a narrativa tripartida serve os seus propósitos criando as pontes necessárias ao objecto analisado; soberbo. 

 

“Qual é a sua estrada, homem? - a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada… Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?” 

Jack Kerouac 
















| 2023, All of us strangers, Andrew Haigh | 

       (a morte fica-vos tão bem)





"POÉTICA 

De manhã escureço 
De dia tardo 
De tarde anoiteço 
De noite ardo. 

 A oeste a morte 
Contra quem vivo 
Do sul cativo 
O este é meu norte. 

Outros que contem 
Passo por passo: 
Eu morro ontem 

Nasço amanhã 
Ando onde há espaço: 
– Meu tempo é quando." 

 Vinicius de Moraes 

















 | 2022, Unrueh, Cyril Schäublin | 

 os relógios (o tempo) da anarquia 





 «O mundo só será salvo, se o puder ser, por insubmissos. Sem eles, que seria feito da nossa civilização, da nossa cultura, daquilo que amávamos e que dava uma justificação secreta à nossa presença neste mundo. Esses insubmissos são «o sal da terra» e os responsáveis de Deus.» 

André Gide 




 «Não são as sociedades secretas, nem sequer as organizações revolucionárias, que acabam com os governos. A sua função, a sua missão histórica, é preparar os espíritos para a revolução. E quando os espíritos estão preparados - com a ajuda das circunstâncias externas -, o último impulso vem, não do grupo iniciador, mas da massa que está fora das ramificações da sociedade.» 

 'Paroles d'un révolté', Piotr Kropotkin 



















 | 2021, Una escuela en Cerro Hueso, Betania Cappato | 



 numa coisa semi-autobiográfica, o intimismo e o estilo semi-documental (a atenção ao detalhe, o olhar os siêncios, etc) resultam na análise de que a comunidade é determinante para a reabilitação quer da doença (autismo) quer da frustação paternal; a sensibilidade e a dedicação (e a paciência) como factores decisivos; muito interessante. 





"Ter paciência é difícil, mas o resultado é gratificante." 

Jean-Jacques Rousseau 



"Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência." 

Santo Agostinho 





















| 2024, No other land [Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal, Rachel Szor] | 


no other land devia ser filme obrigatório em todas as escolas, em todos os institutos, em todos os lugares onde se preze a humanidade e o direito à vida, à dignidade e a todos os direitos alienáveis do ser humano; num tempo que se intitula civilizacional, que se orgulha dos avanços tecnológicos e científicos, etc, é completamente absurdo e incompreensível que se permita (e se financie e se defenda e se propagandeie como o oposto daquilo que é) um regime colonial, despótico e desumano como o regime sionista; ainda bem que o cinema tem (ainda) o poder de expor a(s) verdade(s) 




 "Quando a injustiça se torna a lei, a resistência passa a ser um dever." 

Thomas Jefferson 










"MORCEGOS 

 Morcegos na minha janela 
Sugam as minhas palavras 
Morcegos à entrada da minha casa 
Atrás dos jornais, nos cantos 
Seguem os meus passos, 
Observando todos os movimentos da minha cabeça. 

Por trás da cadeira, os morcegos observam-me 
Seguem-me nas ruas 
Espreitam sobre os meus livros 
Ou sobre as pernas das raparigas... 
Vigiam-me, vigiam-me sempre.
 
Há morcegos na varanda dos meus vizinhos 
E aparelhos escondidos nas paredes. 
Agora os morcegos 
Estão à beira do suicídio.
 
Estou escavando uma estrada para a luz do dia." 

Samih Al-Qasim 
















 | 2023, Slimane, Carlos Pereira | 



 slimane não só consegue evitar o registo panfletario como embarca numa viagem formalista e simbólica naquilo que me parece um futuro distante (ou não) e distópico; no âmago dessa distopia reside a desolação da marginalização, o luar e a noite como refúgios e a consciencialização do poder interior do indivíduo; muito bom.




"RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje, 
Assim calmo, assim triste, assim magro, 
Nem estes olhos tão vazios, 
Nem o lábio amargo. 

Eu não tinha estas mãos sem força, 
Tão paradas e frias e mortas; 
Eu não tinha este coração 
Que nem se mostra. 

Eu não dei por esta mudança, 
Tão simples, tão certa, tão fácil: 
- Em que espelho ficou perdida 
a minha face?" 

Cecília Meireles

6 de junho de 2024

 






| 1957, Il grido, Michelangelo Antonioni | 


Ao rever il grido dou-me conta que é talvez o filme de antonioni (e ainda há filmes dele que não vi, nomeadamente os anteriores a este) que mais flerta com o neorealismo; não que isso seja muito relevante, até porque em antonioni isso não só é redutor como, digamo-lo, inexistente na sua generalidade - o papel que a análise sócio-económica assume no neorealismo italiano de de sica ou dos primeiros rossellinis, in veritas, nunca foi a preocupação nem a intenção de antonioni -, e em il grido, ainda que se nos apresente um operário, esse operário é nos apresentado em crise existencial derivado da marital, ou seja, aonde o carácter neorealista seria assumido antonioni foge a sete pés e atribui um teor individual e emocional habitualmente inexistente; o cinema de antonioni sempre esteve mais ligado ao existencialismo e ao psicologismo, a alienação das suas personagens sempre foi, justamente, reconhecida; em il grido, o vazio que irma deixa em aldo é determinante e sólido como uma rocha, e na sua busca (na de aldo) pelo preenchimento desse vazio nas mulheres que lhe vão aparecendo apenas se fortalece esse vazio, a deriva é lancinante e o vazio incomensurável, por isso o final trágico de quem não se conseguiu livrar desse vazio que o corrói por dentro... 










 | 1974, Les femmes palestiniennes, Jocelyne Saab | 



"Eles têm uma bandeira negra 
A meia haste pela esperança 
E a melancolia 
Para levar na vida." 
 
Léo Ferré (1916-1993)











| 2005, Mizu-no-hana, Yusuke Kinoshita | 


se há coisa que existe neste singelo filme é a ternura que se vai evadindo a espaços dos confins da melancolia de onde reside, atracada à mágoa e à carência afectiva maternal, é a alienação de quem lhe foi roubada a infância pelo abandono maternal; no entanto, o mais interessante em water flower é a fuga aos lugares-comuns e aos maneirismos e aos facilitismos narrativos que uma história deste teor poderiam sugerir, é o sentimentalismo que nunca resvala para o mel ou para o choradinho... 












 | 2023, Shashvi shashvi maq'vali, Elene Naveriani | 



«To transform the world, we must begin with ourselves; and what is important in beginning with ourselves is the intention. The intention must be to understand ourselves and not to leave it to others to transform themselves or to bring about a modified change through revolution, either of the left or the right. It is important to understand that is our responsability, yours and mine...» 

J. Krishnamurti (1895-1986)












 
| 1965, Mizu de kakareta monogatari, Yoshishige Yoshida |



 complexo de Édipo


antes da sua trilogia política, e de toda a grandiosidade que representa no cinema nipónico, já kiju yoshida trilhava auspiciosos e gloriosos caminhos; o que é brilhante no seu cinema, e este é o seu primeiro filme depois de abandonar os shochiku studio, é o radicalismo e o formalismo da sua mise-en-scène, já perfeitamente apurada aqui em a story written with water; num filme tão psicológico quanto "libertário", à semelhança de naruse ou de mizoguchi, Yoshida constrói o seu cinema em torno de um olhar na sexualidade feminina e seus desejos, na exploração da sua psique e da sua identidade;a story written with water é filme edipiano que lança teias incestuosas numa construção narrativa que oscila entre presente, passado e sonhos...











| 2019, Öndög, Wang Quan'an | 


"You must have chaos within you to give birth to a dancing star"

Friedrich Nietzsche (1844-1900)











| 1966, Cathy come home, Ken Loach |



«O Estado garante sempre o que quer: a uns, a riqueza, a outros, a pobreza; a uns, a liberdade assente na propriedade, a outros, a escravatura, consequência fatal da sua miséria; e obriga os miseráveis a trabalharem sempre e a matarem-se, para aumentarem e protegerem esta riqueza dos ricos, que é a causa da sua miséria e escravidão. Esta é a verdadeira natureza e missão do Estado.»

Mikhail Bakunin (1814-1876)










| 1990, Hidden agenda, Ken Loach | 



«Sem a justiça, com efeito, não serão os reinos apenas grandes bandos de bandidos? E o que é um bando de bandidos senão um pequeno reino? Porque é um grupo de homens em que um chefe comanda, em que um pacto social é reconhecido, em que certas convenções regem a partilha do saque. Se este bandido funesto, ao recrutar malfeitores, crescer ao ponto de ocupar um país, de estabelecer postos importantes, dominar cidades, subjugar povos, então arroga-se abertamente o título de reino, título que lhe assegura não a renúncia à cupidez, mas a conquista da impunidade.» 

Santo Agostinho (354-430), in 'A Cidade de Deus'

29 de maio de 2024




 

Oyu [2023, Atsushi Hirai] 


 numa curta-metragem onde nada nos é explicado, é apenas no final que percebemos ao que esta vem, o sentido das palavras dos frames de cima se declara e um pequeno gesto para com uma idosa desconhecida tem todo o sentimento do mundo e acarreta toda a amargura da perda e do sentimento de não ter aproveitado o tempo; é, portanto, sobre o tempo que oyu se debruça, o tempo que não volta mais e que não traz aquilo que não foi aproveitado, a companhia e o cuidar da mãe

28 de maio de 2024

 


| 2023, Le ravissement, Iris Kaltenbäck | 



há em le ravissement, a primeira longa-metragem de iris kaltenbäck, um arrebatamento de ternura que atravessa todo o filme tentando combater a melancolia; desde o inicio somos induzidos a depreender uma situação fatídica ou de alguma forma determinante e impactante na relação do narrador, presente e ausente, e de lydia, relação construída sob as cinzas doutra relação e da solidão seguida (ou do vazio que ficou) e da rejeição de milos, a voz-off que conta a história e que passa uma noite com ela; há portanto, no encarar uma noite de prazer como um possível novo começo, a chama necessária para alimentar o fogo obsessivo de lydia e determinar assim as suas acções... le ravissement é uma agradável surpresa






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| 2023, La chimera, Alice Rohrwacher | 



 O que é verdadeiramente admirável em la chimera é a frescura e a leveza com que oscila entre o fantasioso (e o fantasmático e o mitológico) e a realidade; o tempo e o espaço em la chimera fogem da linearidade para se envolverem no onirismo e no fantasmático em si, na busca duma quimera que se confunde com o métier de arthur e o seu bando de ladrões de túmulos; tal como orfeu que viaja para o hades em busca de trazer de volta a sua eurídice, também aqui arthur persegue a sua beniamina no seu métier, ambas chimeras que ele persegue, coisa alcançada naquele final tão real quanto simbólico, lembrando também o mito de ícaro que chega demasiado perto do sol, também aqui arthur chegará perto demais da tumba/quimera; a música no filme de rohrwacher consegue alcançar o protagonismo, na medida em que consegue imprimir ritmo e frescura, assim como acaba por alcançar a coerência numa intenção declarada de glorificar o passado italiano...





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| 2022, O trio em bi menol, Rita Azevedo Gomes | 

 décor e formalismo, beleza e magnificência





22 de maio de 2024

 



Ukigumo [Mikio Naruse, 1955] 



 “Rotina! Oh, natureza! As pessoas estão sozinhas na Terra – é esta a desgraça! «Alguma alma ficou viva no campo?», grita o guerreiro russo. Também eu, que não sou guerreiro, grito, e ninguém responde. Dizem que o Sol dá vida ao universo. Vai levantar-se o Sol e… olhai para ele, não estará morto? Está tudo morto, por todo o lado só há mortos. Gente sozinha, e à volta dela o silêncio – eis a Terra! «Homens, amai-vos uns aos outros» – quem o disse? De quem é este mandamento? O pêndulo bate insensível, abominavelmente. Duas da madrugada. As botinhas dela ao lado da cama, como que à espera… Não, a sério, quando a levarem amanhã, o que vai ser de mim?”

(Fyodor Dostoyévsky, fragmento de A Submissa) 






   

um mundo do pós-guerra, de um japão dilacerado pela derrota, com as feridas abertas e o orgulho espezinhado, colónia perpétua da grande potência emergida do final dessa aniquiladora e devastadora grande guerra, é o ponto de partida para esta obra-prima de naruse, adaptada do livro do mesmo nome da escritora fumiko hayashi; é sob essa égide, na aspereza e na miserabilidade da recuperação desse japão ocupado que caminha lentamente para a recuperação económica, que se ocidentaliza forçada e apressadamente, que nuvens flutuantes irrompe e declara toda a sua magnificência.

entre yukiko e tomioka estabeleceu-se uma relação na indochina ocupada pelos japoneses, o filme inicia a partir do retorno dela ao japão, ela solteira, ele casado, relação que irá suportar tudo e todos os desgostos e vicissitudes e manifestações de orgulho tanto da parte dele como dela; a ele ainda lhe é cara a ligação com a esposa, mesmo já tendo deixado de a amar, a ela a quebra da promessa dele é lacerante, irá assombrá-la e atormentá-la ad eternum ainda que tudo se revele circular com o retorno sempre a tomioka; naruse usa de flashbacks e de elipses para nos contar o passado, e exceptuando a lembrança do estupro – elipse perfeita e assombrosa –, o passado é sempre claro enquanto o presente é maioritariamente sombrio, cria-se aí uma distinção na temporalidade da acção, as trevas da miserabilidade do país que se ergue das cinzas e da sua população passam a ter expressão visual e narrativa precisamente após essa memória do estupro.






naruse, assim como mizoguchi, foram talvez os cineastas que mais exploraram a condição da mulher na sociedade patriarcal japonesa, naruse fê-lo mais na contemporaneidade enquanto mizoguchi recorreu mais à ancestralidade; no entanto, há em ukigumo uma análise mais abrangente da condição não só da mulher como do ser humano - nos raccords, no campo e contra-campo em que a complexa relação de yukiko e tomioka se materializa, o foco oscila tanto do masculino para o feminino -, assim como o ulterior ensaio seja a desconstrução da estabilidade emocional dos dois personagens, com especial enfoque em yukiko, sim, personagem mais frágil mas ao mesmo tempo sólida, que se perde e se encontra e se volta a perder no caos do japão do pós-guerra, mas a metáfora do título que tem expressão na insistência de ambos em retornarem um ao outro ano após ano é, digamos assim, dual.

explorando assim a carga emocional adjacente aos personagens, yukiko talvez como representação suprema do martírio emocional, paralelo talvez encontrado no mito da psique ainda que tenha os seus diferendos, é depois em tomioka distendido, homem abatido pelo determinismo social e económico caminhando sempre rumo à penúria, o caos emocional reflecte-se na procura infrutífera dum futuro financeiro radioso, a constante flutuação de envolvimentos amorosos como forma não só de colmatar um vazio emocional deixado em suspenso pelas ausências de yukiko como forma, também, de magoar e determinar o rumo da sua relação com ela, yukiko, que no seu calvário oscila entre o orgulho e a humilhação, entre a fraqueza e a solidez, percorre as trevas lancinantes do destino, como o marido traído que acabará por matar a mulher tanta fé tem nele, no destino, mas dizia eu, yukiko entrega-se ao destino e tal como as nuvens flutuantes do título deixa-se levar pela correnteza da vida.






se é na escuridão deste portento melodramático que se pressente ou se anuncia um desfecho trágico, e curiosamente nuvens flutuantes faz paralelo com outra obra sublime e elegíaca do mesmo ano, o para sempre mulher da tanaka, é também na melancolia e na sua pungência que ukigumo se transfigura e se sacraliza naquele final onde se declara ao mundo o sentimento por décadas disfarçado (ou enterrado), seja pela sua natureza, seja pela conjuntura social e económica do país dilacerado ou pelo orgulho, de tomioka, é portanto, na renúncia total à sua renúncia do amor dela, ou por ela, que toda a obscuridade da alma dilacerada pelos vazios emocionais desse fluxo da vida se cristalizam naquele momento final, erupção e exteriorização da dor lancinante, revelação total; sacralidade; magnífico, obra-prima. 






“A órbitra excêntrica que o ser humano, no plano universal e
individual, acaba por percorrer, de um ponto (o da maior
ou menor singeleza) a outro (o da mais ou menos acabada
formação cultural), parece ser sempre igual a si mesma nas
suas orientações essenciais.”

(Friedrich Hölderlin, fragmento do Hipérion)

21 de maio de 2024


 

Canción sin nombre [Melina León, 2019]


ainda que se registem alguns lugares-comuns e desnecessários, canción sin nombre, baseado num caso verídico, é coisa arrojada e admirável, tem um tom quase que expressionista, onírico, é contido e não se perde na sua morosidade, no seu virtuosismo (ou estilismo) nem na sua contemplação; o filme de melina león é um lamento corrosivo e político-social, carrega consigo os ritos e a etnografia dos indígenas peruanos bem como a melancolia que está sempre associada ao ritmo do filme, assim como a sua cinematografia e o preto e branco têm ligações tanto com a burocracia e a corrupção que por ali se expõe, como com a marginalização e o preconceito para com a etnia indígena, é tudo sombrio e a cineasta peruana parece dizer-nos que não há cor naquele país em crise sócio-económica.