Onna wa nido umareru (1961, Yûzô Kawashima)
das intermitências...
19 de abril de 2025
18 de abril de 2025
| borzage, o supremo romântico |
Borzage foi talvez o mais lírico dos líricos do cinema, o mais idílico e que conseguiu imprimir um romantismo que nunca atravessou a linha que separa o sentimentalismo do melífluo… é, borzage foi isso tudo e talvez só outro frank o tenha igualado nisso, o capra, ainda que ford o tenha conseguido também, mas de outra forma, mais patriótico e mítico (talvez quiet man seja o ford mais aproximado disto que falo dos dois franks), tão humanista quanto eles, é certo, mas nunca tão miraculoso e transcendental quanto borzage (sobretudo borzage) e capra; little man, what now? é mais uma coisa magnífica que mergulha na escuridão e na feiura do mundo para nos mostrar como a força do amor tudo pode, tudo resiste; em borzage tudo é lírico, mas no altar onde a santíssima trindade se encontra uma delas é a moral, engrandece-se a humildade e glorifica-se a paz; em little man as trevas estão ali ao lado, o satanás convive com eles, mas até esse se comove com a pureza do amor, até esse se rende a ele e se redime; é portanto na rota do milagre que little man sempre caminha, imerge na adversidade e emerge dela e volta a imergir sempre à procura do milagre que só o amor o pode conseguir; mas é também as horas negras que assombram o homem e que ameaçam a desgraça que tentam hans, que lhe batem à porta para ver se ele a abre – e naquele momento em que depois de descobrir toda a imoralidade da madrasta pega naquela faca é quando ele esteve mais perto de a abrir; é também em borzage, e nele muito mais que em capra, que a candura dos seus personagens mais encanta, como se ali toda a perversidade da sociedade não entrasse, é essa candura que transcende o romantismo de borzage, a delicadeza e a ternura com que o retrata… como é belo o cinema de borzage!
17 de abril de 2025
15 de abril de 2025
| acabado de rever na cópia restaurada lançada à tempos pela The Stone and the Plot, só me fortaleceu a convicção de que é um dos mais importantes filmes portugueses |
«A filmes como O Movimento das Coisas costuma aplicar-se a designação documentário. É
despropositado, nesta “folha”, retomar a discussão acerca de tal designação e do que separa ou não
separa, enquanto objecto fílmico, o documentário da ficção. Mas também não adianta iludir a questão
classificativa e acrescentar lugares comuns do género dos que afirmam que toda a ficção é documento
e todo o documento ficção. Porque O Movimento das Coisas se situa na região indefinida onde essas
questões podem e devem ser postas sem as reduzir a chavões. Para exemplificar apenas com filmes portugueses dos anos 70-80, pode ser grande a tentação de
aproximar O Movimento das Coisas das obras de António Reis e Margarida Cordeiro, particularmente
Trás-os-Montes e Ana. A meu ver, não há maior contra-senso. Não apenas por uma questão
qualitativa (se muitos são os méritos de Manuela Serra, há uma enorme distância entre tais méritos e
a grandeza atingida por António Reis e Margarida Cordeiro) mas sobretudo porque a raiz do filme que
vamos ver, o seu imaginário e o seu fantástico, são de ordem completamente diferente.
Se comecei por uma comparação ingrata a Manuela Serra, não foi para poupar (mesmo relativamente)
o seu filme, mas porque essa comparação tem sido exercida noutros textos sobre esta obra
prejudicando a sua compreensão e o seu alcance. Atrás usei (e sublinhei) o adjectivo indefinida. Não foi
por acaso. Ao rigor que preside aos regressos originais e originados de António Reis e Margarida
Cordeiro, opõe-se em O Movimento das Coisas uma indefinição que lhe dá grande parte do seu
interesse e o singulariza não só em relação à via única – e inimitável – desses cineastas, como o
singulariza em relação a outras obras que podem, à primeira vista, ser aproximada desta, como são os
casos dos belos filmes de António Campos ou de Philippe Constantini.
O Movimento das Coisas não é nem pretende ser uma gesta mítica, como não é nem pretende ser
um documentário etnográfico ou antropológico. Reparar-se-á que a aldeia onde o filme se passa nunca
é situada. Lanheses é um nome que só aparece no genérico final, nos agradecimentos da autora.
Qualquer português identificará a aldeia, situando-a no norte de Portugal, mas a imprecisão geográfica,
ou a indefinição, para usar um termo mais apropriado, existe desde o início do filme. Não sabemos bem
onde estamos e nunca saberemos porque razão a realizadora nos levou até ali. Aparentemente, é uma
aldeia igual a tantas outras, onde coexistem ritmos ancestrais com influências da emigração, aldeia
onde predominam as mulheres, mas onde o trabalho destas não é exclusivo e as marcas de incipiente
indústria se começam a fazer sentir. Mas, desde a belíssima abertura, com o rio, as névoas, os juncos
e a câmara, muito lentamente, a descobrir-nos a povoação, sentimos que há uma relação física entre o
olhar da câmara e o que esta nos dá a ver, como se aquele espaço, aparentemente indefinido, fosse
também o único espaço possível para a corporização do imaginário contemplativo de Manuela Serra.
Essa mesma indefinição entre os diversos materiais é uma constante que atravessa o que o filme nos vai
dando a ver, com grande demora e certeira beleza. O filme não nos conta uma história (a família que o
atravessa jamais é portadora de qualquer ficção ou qualquer verdade); o filme não ilustra o quotidiano
de uma aldeia (as imagens do quotidiano mais ofuscam a narração do que a esclarecem); o filme não
está ao serviço de qualquer causa (em vão procuraremos ver nele leituras políticas, sociais ou
etnográficas); o filme não segue o ritmo exterior temporal (género, um dia na vida de uma aldeia, ou o
ciclo de estações). Podia continuar as enumerações, respondendo sempre pela negativa. E, no entanto,
tudo isso lá está (história, quotidiano, causa, tempo, espaço) mas lá está no mesmo modo indefinido
com que penetramos na comunidade. Numa linguagem literária, diríamos que a realizadora nunca
utiliza artigos definidos, mas opta sempre pelos artigos indefinidos. Como estes “artigos” se articulam
a uma matéria concreta (aparentemente despida de qualquer metafísica) a conjugação é estranhíssima
e impõe, desde o início, uma singular perturbação.
O exemplo flagrante do que estou a dizer é o uso da montagem. Aparentemente, a inserção de
sequências alheias ao que parece centrar a atenção da realizadora (pense-se nomeadamente, na
sequência do cantar da família ou na sequência da igreja) não tem qualquer nexo, parecendo arbitrárias
e retirando a duração necessária aos planos. Mas, com maior atenção, vamos descobrir que o uso de
montagem da cineasta é precisamente uma interrogação à montagem, como se Manuela Serra, a cada
momento, pusesse em causa essa própria noção, substituindo-a pela noção de colagem e reunindo num
todo os diferentes materiais que vai dando a ver.
Essa utilização específica é particularmente impressionante naquele que é, para mim, o mais belo
momento do filme. Refiro-me à sequência da igreja. O plano começa por nos mostrar a imagem de
Cristo no altar-mor e, depois, vai lentamente descobrindo o padre, o altar e a assistência. Contra-plano
e, do ponto de vista do altar, vemos a assistência e a porta da igreja aberta contra um céu nocturno e
azulíssimo. Tudo nos leva a supor que estamos numa missa nocturna, até que, lentamente e após novas
inserções das imagens “leit-motif” do campo, do rio e das névoas, voltamos à igreja, com uma luz
diferente, como se muito tempo se tivesse passado e os personagens permanecessem fixos naquele
ritual, tal arrancados a qualquer tempo preciso como a imagem de Cristo que a câmara nos dá em
pormenor. Quando as pessoas saem da igreja é dia (crepúsculo? alvorada?) ficando apenas acesas as
luzes da igreja, como se a noite se projectasse do interior desta para o exterior, num sinal contrário ao
da iluminação inicial.
Exemplos deste género multiplicam-se no filme, sempre por fragmentos, como se não houvesse outro
movimento senão aquele do que o título da obra nos fala. E esses fragmentos, e esses movimentos, são
tanto visuais como sonoros. Ouvimos bocados de diálogos que, em si mesmos, parecem sempre
esparsos e in-significantes. Mas o som com que ficamos é o da flauta da bela música de José Mário
Branco, tão obsessivo e tão embalador como o plano visual do rio que passa junto à aldeia.
Tudo flui e tudo flui indefinidamente nesta obra que voga vagamente. Mas tudo flui em torno desses
pontos de sustentação que são, paradoxalmente, os pontos de referência mais imateriais deste filme: a
paisagem ritual e o som da flauta, que guiam do princípio ao fim no nosso olhar.
O Movimento das Coisas é, simultaneamente, um filme extremamente materialista e extremamente
abstracto. Os dois termos não são inconciliáveis. Só que para o não serem é preciso uma determinável
visão e é essa visão que dá coerência a este filme disperso e o transforma numa obra una, com
surpreendente lógica e surpreendentes rimas.
Infelizmente, este filme, nunca estreado comercialmente, não teve sequência e Manuela Serra nunca
mais voltou a filmar nestes vinte anos. Até nisso, este filme ficou indefinido e invisível. Entre uma
longínqua passagem na Cinemateca há vinte anos, outra em 2004 e a sessão de hoje, quantas vezes
mais terá sido exibido? Das múltiplas singularidades do cinema português, este filme e o seu destino são
um dos casos mais singulares.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
Este texto foi escrito por João Bénard da Costa para acompanhar a exibição do filme em 1986, e revisto
pela última vez pelo autor para uma sessão realizada em 2006.»
(retirado da folha da cinemateca portuguesa)
14 de abril de 2025
1947, Black Narcissus, Michael Powell & Emeric Pressburger
No black narcissus, revisto hoje, quando a loucura na irmã ruth atinge o seu pico, antes de ser rejeitada por mister dean, a mestria de powell e de pressburger escancara-se para todos os que a percebam naquele momento em que as trevas da noite e dos trovões se misturam com a euforia da loucura de ruth e com a imagem de kali, que é naquele momento pela primeira vez desnudada do lençol que a tapava - simbolismo exímio ( um deles, porque o filme está repleto deles) não só da morte como da destruição que a deusa hindu simboliza -, e que naquele acto final de ruth, tão ou mais terrífica que a própria deusa que a incorpora totalmente a partir daí - e não é coincidência tudo acontecer após ela não renovar os votos da castidade -, a cristandade vença o hinduísmo, assim como a ressurreição vença a aniquilação.
13 de abril de 2025
1989, Johanna D'Arc of Mongolia, Ulrike Ottinger
| ritos de um povo em transformação |
Em johanna d’arc da mongolia depararmo-nos com um delírio etnográfico de ritos passados e em processo de esquecimento; ottinger biparte o filme para nos mostrar a disparidade entre ocidente/oriente, civilização/primitivismo (ou tradicionalismo); importantíssimo (obrigatório mesmo), johanna d’arc of mongolia tem uma primeira parte onde as europeias (e são as mulheres as personagens do filme, todos os homens são secundaríssimos e irrelevantes) se passeiam e se mostram pelo cavalo de ferro que atravessa desde a rota transiberiana à transmongoliana, para depois de uma hora e pouco de filme assumir o seu carácter ritualístico e etnográfico nas estepes mongóis onde as nómades raptam as europeias e a fronteira entre a ficção e o documental se funde e nos brinda com o ethos de um povo que caminhava para a ocidentalização e consequente perda de identidade...
8 de abril de 2025
2024, Gouzhen, Guan Hu
| dog’s land |
Black dog, drama realista na senda dum jia (o tio yao do filme), na sua análise da reabilitação do homem, insere o caos como ponto de partida (e de base capital) para o desenvolvimento da trama, onde um certo absurdismo coexiste com o surgimento dos laços que se criam entre homem/animal, o galgo preto que se afeiçoa ao ex-presidiário (e vice-versa), em pleno deserto do gobi onde a tonalidade cinzento-escura acentua o sentimento de abandono e caótico (e até apocalíptico) em que aquelas matilhas abandonadas se juntam e reinam por ali; exímio no seu ritmo, na sua condução narrativa, contido e sem histerismos, black dog desenvolve-se sobriamente evitando sensacionalismos ou facilitismos para atingir a redenção de lang; muito bom.
Subscrever:
Mensagens (Atom)
-
Qual o melhor filme de Hitchcock? Estou dividido entre o Rear Window e o Spellbound .