6 de setembro de 2021





 

VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO: O LASTRO DO CORAÇÃO



Quanto mais poético, mais verdadeiro.
Novalis


A história de um velho realizador ciente da aproximação do seu fim, de visita aos lugares marcantes do seu passado, confrontado e embevecido com uma jovem e bela actriz, revela-se com toda a melancolia na traição do seu corpo envelhecido face à memória longínqua do desejo. Ao considerar a longevidade uma bênção divina refere que o “preço” é a ausência de todos a quem pudesse abraçar. Uma história que se cruza com a de um homem, filho de um emigrante que morreu precocemente num acidente, em França, que vai à procura de uma tia guardiã das suas raízes, na Aldeia do Lugar do Teso. Uma possibilidade de libertação? Um desejo de transcendência da própria vida?

Filma-se o cruzamento entre um caminho até ao fim e um caminho de regresso às origens, através da filmagem em vórtice duma estrada percorrida e doutra a percorrer, momento pontuado pelo personagem Duarte: “Um tempo que separa outro tempo, que com o tempo se torna agora presente”. O primeiro instante poético do encontro destas duas histórias dá-se dentro do automóvel, cenário central deste filme “on the road”, quando Mastroianni num silêncio eloquente reage como um deus à injustiça social da história que acabara de ouvir. No segundo instante poético deste filme, o grupo das quatro personagens desta viagem chega às ruínas do Grande Hotel do Pezo, onde o fulgor do passado não passa de pura consternação; Mastroianni abeira-se de uma velha árvore, uma araucária, tentando chegar à flor cor-de-rosa que a sua mão já não consegue alcançar, murmurando: “Quem quando doente não se lembrará do tempo em que tinha saúde…”

Chegados à razão inicial desta viagem, depois de diversos caminhos cruzados aonde os temas da morte e da vida atravessam todos e cada um, o grande encontro com a genial actriz Isabel de Castro, a velha tia. Não me lembro de tamanha interpretação no cinema português; tanta humanidade, tanta sageza, tanta ternura… a grande aliança de talento e trabalho, de uma actriz e a sua personagem. Chegados ao “princípio do mundo” resta-me referir o terceiro instante poético deste belíssimo autorretrato de Manoel de Oliveira, o meu amigo, que vi aos oitenta e nove anos nadar às 7h30 da manhã, na piscina de um hotel de Caminha, durante a rodagem deste filme, a ida ao cemitério consubstanciada no plano mais belo do filme feito de mãos, flores e pão.

Diogo Dória
31 de outubro de 2015.












Esta história começou num dia de verão de 1987, em Braga, durante as filmagens de O Desejado (1987) de Paulo Rocha. Conto eu ou conta Manoel de Oliveira? O melhor é contar Manoel de Oliveira, que passo a copiar e a traduzir do livro Voyage au début du monde, Ed. Alpha Bleue, Paris, Abril de 1997.

“A história que me inspirou o ‘découpage’ do filme Viagem ao Princípio do Mundo, foi-me contada por João Bénard da Costa. Trata-se de um episódio que se passou por ocasião da rodagem de uma co-produção luso-francesa, no norte de Portugal. Havia um actor francês que entrou nessa co-produção. Chamava-se Afonso e era filho de um pai português e de uma mãe francesa. Quando chegou a Portugal, o actor lembrou-se de tudo o que o pai lhe contara, em França, sobre a aldeia em que nascera, sobre a família, sobre uma tia ainda viva. O actor só pensava numa coisa: conhecer tudo isso. Exprimiu esse grande desejo a dois dos seus colegas portugueses: Duarte de Almeida (pseudónimo de João Bénard da Costa) e Manuela de Freitas. Explicou-lhes que o pai emigrara aos 14 anos, em busca de uma vida melhor e que atravessara a Espanha, à época da guerra civil, antes de se fixar em França. Cerca de dez anos depois, Afonso, segundo e último filho dele, nasceu em Toulouse. Aprendeu todo este passado com o próprio pai, que muitas vezes lhe falou das coisas que tinha vivido. Mas o pai não o ensinou a falar a língua dele. Afonso não sabia uma palavra de português. Os dois colegas ofereceram-se para ajudar o actor a realizar o seu desejo de voltar aos lugares donde o pai partira e, num dia de folga, meteram-se a caminho”.

Foi exactamente assim que se passou, nesse Verão de 1987, em Braga. Só uma pequena mudança, que talvez não seja tão pequena assim, como lá para diante explicarei. Afonso não é o nome do actor, mas o apelido. Chama-se Yves Afonso, como consta da legenda final e, entre muitos papéis (de Godard a Stévenin) fez um dia de chauffeur de João (Luís Miguel Cintra) no de Paulo Rocha. No filme, Yves é o irmão de Afonso, esse irmão que a tia tanto pede, no final, para conhecer. Ou seja, a personagem do filme chamar-se-á Afonso Afonso, duas vezes Afonso, oriundo de uma terra de tantos Afonsos, como a certa altura no filme se observa.

E Yves Afonso, Manuela de Freitas e eu pusemo-nos a caminho em 1987, à procura do Lugar do Teso, nos arredores de Castro Laboreiro, onde nascera o pai de Yves e onde ainda vivia uma tia dele, a tia que ele queria conhecer. O que se vê no filme corresponde aproximadamente ao que vivemos – os três – na casa da nora da velha Maria Afonso (só que a rapariga não era francesa mas bem portuguesa), na casa de Maria Afonso, pessoa tão impressionante como Isabel de Castro o é no filme, e no cemitério. Foi uma das experiências mais extraordinárias e mais radicais da minha vida. Quando voltávamos, com a emoção que Oliveira transpôs para esta obra-prima, a certa altura, para amenizar, começámos a falar das cenas de O Desejado previstas para o dia seguinte. E foi então que Yves Afonso teve o desabafo que no filme também se conservou, na boca de Jean-Yves Gautier: “Histórias, histórias! Inventam tantas, mas ninguém filma uma como esta que hoje vivemos e que não foi inventada por ninguém!” Enganou-se. Manoel de Oliveira, cerca de dez anos depois, filmou-a.

Contei-a a muita gente, a Manuela de Freitas contou-a a muitas outras, imagino que Yves Afonso (que nunca mais vi) a terá contado a muitas mais. Mas ninguém a ouviu com mais atenção do que Manoel de Oliveira, quando lha contei, no Outono de 1994, durante a rodagem de outro filme: O Convento (1995). E mal a concluí, Oliveira disse-me que queria filmar aquela história. Dou-lhe outra vez a palavra: “Esta história simples causou-me enorme impressão porque a vi como uma ligação com o que se passava nos conflitos do leste, na Checoslováquia, na Hungria, na Tchetchenia, uma espécie de regresso às raízes, que se adivinhava nesse movimento [...] Parece-me que subsiste o que chamaria uma ‘ordem’ atávica, em que etnias, que nunca se extinguiram, permanecem obscuramente, como que adormecidas, no fundo do nosso ser.

Percebi que a circulação dessa ‘ordem’ se faz por via subterrânea e se transmite, através do sangue e da memória, alimentando um enorme cordão umbilical que, nas suas ramificações, nos liga às origens da humanidade. Acaso serão elas que, ao longo dos tempos, nos conduzem a conceitos tão sólidos como os conceitos de tradição e de evolução, que a natureza tornou nossos ‘compagnons de route’? Por isso, a história que João Bénard da Costa me contou me pareceu de grande actualidade, direi mesmo de permanência e portanto tão propícia à evocação de recordações e atavismos. Mais ainda: o Lugar do Teso, a aldeia donde o pai saíra um dia, tornou-se, para mim, um símbolo. Deixei de a ver como uma simples aldeia, para ver nela Portugal e até a representação do mundo – a casa da humanidade”.

Não posso citar o texto todo, mas Oliveira explica a seguir como é que a história das memórias de Afonso (daqui para diante, chamar-lhe-ei como no filme se chama) invocou as memórias dele, numa viagem que o levou obrigatoriamente (o advérbio é de Oliveira) a passar por lugares que faziam parte da vida dele, “momentos da sua (ou da minha) juventude”.

A partir daqui, convém prestar alguma atenção aos cinco ocupantes daquela carrinha, às cinco personagens que vão viajar até ao princípio do mundo.

Primeiro os três actores: Yves Afonso deu lugar a Afonso (ou Afonso Afonso, como já disse) interpretado por Jean-Yves Gautier, também um actor francês, numa “co-produção luso-francesa, no norte de Portugal”. De Duarte de Almeida, Oliveira conservou o nome de Duarte, para o papel de Diogo Dória, sobretudo um contador de histórias ou, ainda mais precisamente, um cicerone didáctico. E é ele quem faz a aproximação entre a Judite do filme e a Judite bíblica, numa versão soft da história de Holofernes, e é ele quem introduz o tema da monarquia (casamento de D. Duarte Pio, mas o Duarte que ele é nada tem que ver com a família real) e é ele quem diz – e repete – “un temps qui sépare un autre temps qui, avec le temps, devient maintenant présent”, recebendo um bravo irónico de Mastroianni.

De Manuela de Freitas a Leonor Silveira o percurso (a “circulação”, nos termos de Oliveira) é mais secreto. Mas o nome e o acto de Judite as podem unir e esse nome é tudo menos inocente. Decepadoras de homens. E Judite se chamou Manuela de Freitas no filme de João César Monteiro, A Comédia de Deus (1995), em que expulsa o protagonista do Paraíso, para além de outras sevícias várias. Nada a ver? É bem possível. Tudo é possível. Fiquemos pois com uma Judite, a que viaja naquele carro e, no início da viagem, se entrega, com evidente prazer, a um cruel jogo de massacre com o seu “realizador bem-amado”. Perversíssima nas primeiras memórias (ou nas primeiras saudades) quase se eclipsa em Lugar do Teso, para aparecer, no fim, vestida à minhota, no film in the film que nunca saberemos qual é.

Muito mais importantes são os outros dois. Neste caso, ao contrário do caso “real”, o realizador acompanha os seus actores. E o realizador – último papel de Mastroianni, único papel de Mastroianni num filme de Oliveira – chama-se Manoel, com o e tudo, e é evidentemente o alter ego de Oliveira. As memórias dele não são as memórias de Mastroianni, mas as memórias de Oliveira, evocando o pai, o irmão Casimiro, as amantes do irmão, a sua experiência de internato nos jesuítas em La Guardia, etc. Mastroianni é Oliveira, até com o chapéu de Oliveira na cabeça? Sim, mas... Mas, atenção ao condutor. E o condutor, presença discretíssima - tão discreta que alguns nem repararam nele, aparentemente fora daquele filme ou daqueles filmes, sem voz activa nos diálogos e uma só vez falando (quando, em Castro Laboreiro, pergunta o caminho para o Lugar do Teso) – é interpretado pelo próprio Oliveira, com um chapéu igual ao do realizador. Não faz nada? Esse pouco, que é conduzir uma viagem, missão de Caronte. E – no que é para mim o plano mais perturbante deste filme tão perturbante – é ele quem vai buscar o binóculo, quando o grupo pára em Caminha, diante do Colégio de La Guardia. E o binóculo tanto permite o zoom subjectivo sobre o Colégio, aproximando-nos dele, quanto permite o grande plano do rosto de Judite, de quem tanto se pode dizer que está vestida (fato de maruja) à Anna Karina, como à Jean Vigo, como o Diabo vestido de mulher apareceu ao Estilita no Simón del desierto (Simão no Deserto, 1965) de Buñuel. É pouco depois que Manoel lhe chama perversa (“ta question est non seulement indiscrète, mais elle est perverse”) e maligna (“c’est ta question qui est pleine de malignité”) no diálogo mais explicitamente sexual (e erótico) do filme.

E vale a pena reparar com atenção (vejam o filme várias vezes) no fabuloso plano sequência do Grande Hotel do Pezo (ou das ruínas do Grande Hotel do Pezo) nas posições do condutor. Ora se separa do grupo, ora fica, humilde e observador, muito atrás dele, ora – por duas vezes – ocupa o plano (plano geral) com Mastroianni. Depois, depois de atravessarem a ponte que os leva ao Lugar do Teso, desaparece de vez e não surge nunca mais, nem ao de leve, nas memórias de Afonso.

Várias vezes no filme se procede ao contraste entre o passado burguês do realizador e o passado proletário do pai de Afonso. Não se podem comparar as experiências nem as vidas de um homem que, desde a mais tenra infância, teve automóveis, quando automóveis quase não os havia e nunca passou frio, fome ou sede, com as de um homem cuja meninice e adolescência foram marcadas por tão fera miséria, que um dia fugiu, entre lobos e penhascos, para comer (ou não comer) o pão que o diabo amassou. Não se podem? Eu não diria tanto, pois que um passado a outro levou e o sofrimento do cineasta se não conheceu as mesmas formas, conheceu outras.

E quando tudo se reúne é na sequência do Pedro Macau, outro dos cumes da arte de Oliveira. Pedro Macau é memória de Manoel que conta como o viu em criança. Mas é para Afonso que a cantilena dele (recitada pela aldeã) é dita, traduzida, repetida e retraduzida. E é Afonso quem a decora, não Manoel. Quem é que às costas tem um pau mais pesado? Quem é que pede que o tirem deste degredo? E perto do fim do filme, perto do fim da viagem, Pedro Macau é visto de costas e só um repara nele.

“Tornar-se senhor do caos que se é” é a epígrafe do filme, citação de Nietzche. Tê-lo-á conseguido o actor, que, no fim, vestem de campino, ou seja lá do que for, e recita, uma vez mais, o poema de Pedro Macau? Soube, pelo sangue, vencer a constante pergunta da tia (inadjectivável Isabel de Castro) quando arregaçou a manga e lhe disse (ou lhe mostrou) que o sangue, e não a fala, é a casa do ser (“por que é que não fala a nossa fala?”)? Soube olhar-se ao espelho e olhar nele Isabel Ruth, chamada para Circe final, noutra obscuríssima recitação? Tornou-se senhor do caos que anda à volta dele?

Tê-lo-á conseguido, o realizador? Já disse que foi o último papel de Mastroianni, muito doente e sabendo que o estava. Como se desdobrou ele nas memórias de outro, nas ruínas de outro, apoiado a uma muleta e pedindo tanto a piedade alheia como a recusando? Estou a confundir personagem e actor? Como não os confundir aqui, quando quem se despede da vida é um e não outro? Como não fixar que o último plano de Marcello Mastroianni (dos últimos) no-lo mostra num cemitério, coxeando entre as campas ou presidindo à fabulosa genuflexão de Maria Afonso e do sobrinho Afonso? Mas ninguém pode pensar, um minuto que seja, em crueldade, ou em crueldade idêntica à de Judite para com ele. Porque quem o olhava – quem o conduzia – era um homem que quase podia ser pai dele e a quem nada do que se passava com ele podia ser alheio. É um assombroso acto de coragem dupla. Mais do que todos, ambos sabem do degredo e dos pategos que passam, como nós todos espectadores somos, ou como sobretudo eu, que impudicamente me meto no meio disto, mais do que todos sou.

Por isso, a minha única pergunta face a este filme magistral, é a pergunta que pergunta pelo título. Viagem ao Princípio do Mundo? Ou Viagem ao Fim do Mundo? Ao princípio, ainda não vimos ninguém, a câmara avança com o carro num imparável traveling para a frente. Mas, à medida que vamos sabendo mais dos passageiros dele, os travelings não nos empurram para a frente, mas para trás. É o contra-plano do plano o que sobretudo é mostrado. Oliveira costuma ter horror aos planos que não são planos de ninguém. Desta vez, não se contradisse, como apressadamente se pode concluir. Essa visão é a visão do retrovisor, é a visão só possível ao condutor. Depois da paragem em Caminha (lembram-se de eu lhes ter falado dos binóculos?), sobretudo depois da paragem do Peso, a visão dominante (até Castro Laboreiro) é a visão do que ficou para trás, visão que só um – um só – podia ter naquela barca. E se barca lhe chamo, não é só por metáfora, mas porque ninguém, como Oliveira, filmou os passageiros de um automóvel assim, como se fossem passageiros de um barco, como se do interior de um barco se tratasse.

Depois, lembramo-nos que ao corpo se chamou caixa (há um filme de Oliveira com esse nome) que algures se disse “comme la route s’éloigne de nous”, que o barco de Caronte foi mesmo figurado (barco negro, no rio Minho), que Pedro Macau está de joelho em terra, como de joelhos ficará Afonso (“e foi a primeira vez que me ajoelhei”), que Manoel faz caretas ao lobo embalsamado da casa de Cristina, que “vivre longtemps est un don de Dieu, mais il a son prix”, que Judite (sequência do Peso) se abraça à árvore como que segurando um enorme falo. Volto a repetir: Viagem ao Princípio do Mundo ou Viagem ao Fim do Mundo?

Três actores e um realizador, conduzidos por um fantasma. Mas quem vê é o fantasma. Ou o realizador. Os outros só se vêem uns aos outros. Ou, como Maria Afonso, não vêem nem ouvem ninguém, até que a carne e o sangue lhes digam o que nunca lhes pôde dizer a “nossa fala”.

Imago mundis. Com ela, sim, a única que nunca olhou para trás. Talvez por isso (mas será?) ela é a única que é senhora do caos que se é.

Cada vez que vejo este filme, mais inesgotável ele me parece. Por isso – desta vez – me atrevi, com muito impudor e o jeito de cicerone que herdei de Duarte (ou que Duarte herdou de mim) tocar nalgumas chaves para os seus quartos mais secretos. Diante de mim, as ruínas do hotel. E meço o tamanho da árvore, com a memória de Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958). Mas, como o filme me ensinou, ninguém é alguém, todos são outros. “Tu n’est déjà plus toi. Tu es un autre”.

E termino com Oliveira, que me autorizou a intromissão. “Este filme, importa sublinhá-lo, é uma ficção, uma ficção sobre presenças, saudades e atavismos. Os sítios são os sítios autênticos. Não é o caso dos personagens, que são todos representados por outras pessoas e não por eles próprios. Assim, Marcello Mastroianni faz o papel do realizador. Diogo Dória o de João Bénard da Costa. Leonor Silveira o de Manuela de Freitas (sob o nome de Judite) e Manoel de Oliveira o de chauffeur”.

Todos, outros. Todos, nós. Mas um só é eu. Ele, Manoel de Oliveira.

João Bénard da Costa
(in Folhas da Cinemateca, 27 de dezembro de 2007).