4 de dezembro de 2009

Senso (1954)
Luchino Visconti

Afinidades entre o cinema e a ópera – duas artes do tempo, duas artes «parasitárias», duas «artes de acréscimo», ou as duas artes que mais tendem para a «obra de arte total», sonhada por Wagner – têm sido pressentidas, notadas ou sublinhadas por muitos e desde há muito.
Ultimamente, tem-se generalizado outra e mais equívoca forma de aproximação. Quem fala da «morte do cinema» terá tanta razão ou tão pouca como quem fala da «morte da ópera». É verdade que, no caso desta última, nada de radicalmente novo aconteceu desde a estreia de Capriccio de Richard Strauss em 1942 ou, magnanimamente, desde a de The Turn of the Screw de Benjamin Britten, em 1954. Mas também é verdade que nunca, como hoje, tão vastas audiências viram e ouviram ópera e, mesmo por um balúrdio, é difícil conseguir um lugar para as temporadas dos principais teatros líricos do mundo ou para os grandes festivais. Nunca a ópera foi tão cara, nunca se pagou tanto aos seus intérpretes e nunca as lotações estiveram tão esgotadas. Normalmente – com excepções que apenas confirmam a regra – para se escutar e olhar um reportório escrito há mais de cem anos.
Há quem diga que o mesmo está a acontecer – ou vai acontecer – ao cinema. Talvez este nunca mais tenha os seus Verdi ou Wagner, talvez o lote de novos grandes filmes seja escasso, mas, num futuro não muito distante, as salas encher-se-ão para rever periodicamente o que foi realizado na idade heróica dele.
A hipótese parece-me aventurosa e pouco fundada, mas o simples facto de ser ponderada demonstra mais uma das analogias entre os dois «reinos»: quem o diz reconhece a ambos – cinema e ópera – uma aproximável localização em paragens limiares e liminares, onde partilham a luz e as sombras, a celebração da vida e a súplica da morte, a encenação da nostalgia e o apelo a uma recôndita harmonia.
Apesar disto – ou por causa disto –, de cada vez que o cinema tomou a ópera como texto, os resultados não foram brilhantes. Por um lado, são raríssimos os exemplos de óperas escritas propositadamente para o cinema. Que eu saiba há apenas três. The Robber’s Symphony, ópera e realização do alemão Friedrich Feher em Inglaterra, 1936; Give Us This Night, ópera do alemão Erich Wolfgang Korngold e realização do americano Alexander Hall, em Hollywood, 1944; e Os Canibais, realização e ópera dos portugueses Manoel de Oliveira e João Paes, em Portugal, 1988. Por outro lado, são igualmente raríssimos os exemplos conseguidos de transposição para o cinema de uma ópera. Julgo que somente Die Verkaufte Braut (A Noiva Vendida, de Max Ophuls, 1932), The Tales of Hoffman (Powell e Pressburger, 1951), Bluebeard’s Castle (Michael Powell, 1964), Trollflöjten (A Flauta Mágica, de Ingmar Bergman, 1974), Moses und Aaron (Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1974) ou Parsifal (Hans-Jürgen Syberberg, 1982) merecem ser retidas como excepção.
Mas o filme-ópera, a ópera feita cinema ou o cinema feito ópera, não é nenhuma das obras citadas. É o Senso de Luchino Visconti (1954). Por isso – sobretudo, por isso –, é um dos filmes da minha vida.
Na ópera (Teatro La Fenice, de Veneza) começa o filme, situado na Primavera e no Verão de 1866, durante os últimos meses de ocupação austríaca do Veneto, pouco antes do Risorgimento lá chegar. Estamos no palco e ouve-se e vê-se o final do acto III de Il Trovatore de Verdi.
Ainda corre o genérico, quando Leonora e Manrico, na varanda de Castellor, cantam «l’onde de’ suoni mistici», «gioie di casto amor», primeiro sinal para as paixões paroxísticas que vão explodir durante o filme. Pouco depois – sempre no genérico – Ruiz vem avisar Manrico de que se preparam para lhe queimar a mãe. Este arranca-se dos braços de Leonora e vem até à boca da cena cantar o celebérrimo «Di quella pira». Precisamente nesse momento, a câmara, até aí fixa sobre o palco da ópera, acompanha-o no seu movimento e, do ponto de vista dele, descobre-nos o teatro, da plateia à geral, em amplos movimentos concêntricos. São eles que, no fim do acto e coincidindo com os aplausos, conduzem essa representação a outra representação: a manifestação política das galerias contra o ocupante austríaco.
Ópera só voltará a aparecer em Senso alguns minutos depois, quando, acalmados os ânimos e presos alguns manifestantes, começa o acto IV. Durante esse intervalo, conhecemos os protagonistas: a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) e o seu velho marido (Heinz Moog); o marquês Roberto Ussoni (Massimo Girotti), primo da condessa, seu platónico protegido e chefe dos patriotas italianos (por ele e contra o marido, escolhera a condessa o abraço revolucionário); o jovem e belo tenente Franz Mahler (Farley Granger) que insulta os italianos, se recusa cobardemente a aceitar o repto de Ussoni para um duelo e, depois, o denuncia à polícia.
Quando começa o acto IV de Il Trovatore, Livia Serpieri chama o tenente ao seu camarote, para o tentar convencer a deixar Roberto em paz. Mas, durante o breve diálogo com o oficial «de quem falavam todas as senhoras de Veneza», estabeleceu-se entre eles outra espécie de corrente. No palco, lá muito, muito ao fundo, ao pé da torre onde Manrico está preso, Leonora, disfarçada, canta que «In quest’ oscura notte ravvolta / Presso a te son io. E tu nol sai!». Nem nós, nem os protagonistas do filme lhe damos muita atenção. O primeiro plano já pertence a Livia e Franz. É para nós e para eles que uma «oscura notte ravvolta» vai começar.
Nunca mais se ouve ópera no filme. Mas a ópera, o drama per musica, vai começar quando Livia abandona o teatro e, sobretudo, quando volta a encontrar o tenente, a um canto da Piazza di San Marco, onde fora despedir-se de primo, condenado a um ano de exílio. E quando Franz Mahler se oferece para a acompanhar pelas ruas de Veneza (oferta recusada, recusa não aceite) principia a ouvir-se a verdadeira música desta ópera: a Sétima Sinfonia de Bruckner (o adagio e o scherzo). E começam os «duetos», de Franz e Livia, ou as «árias» de cada um deles. Não são cantadas. Mas não há termos mais adequados para o que murmuram («tu parli talmente piano», diz três vezes Franz a Livia) ou para o que gritam (os uivos de Livia, no final, clamando por Franz, depois de o ter mandado para o pelotão de fuzilamento, em Verona). E sempre o que os personagens dizem em-cantado é sustentado a Bruckner, e sempre as vozes são tão inseparáveis dessa música como na ópera o são. Depois de se ter visto Senso, nunca mais se pode ouvir a Sétima de Bruckner sem «sentir» que lhe falta essa dimensão de vozes. Depois de se ter visto Senso, é impossível pensar nas suas imagens sem «ouvir» Bruckner.
Por isso, e num dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela não está em nenhum outro (nem sequer em Morte a Venezia, onde Visconti tentou com a Quinta Sinfonia de Mahler um efeito semelhante e muito mais célebre), mas nas encenações de 1955 e 1956 com que o mesmo Visconti revolucionou todos os caminhos da encenação operática neste século. A espantosa criação de Alida Valli, no papel da condessa Livia Serpieri, só teve sequência nas da Mulher para quem Visconti fez essas encenações: Maria Callas. Em Senso, a voz e a imagem de Alida Valli preparam os caminhos para a voz e para a imagem de Callas.
As ruas de Veneza (quem nunca viu Senso nunca viu Veneza), os celeiros de Lonedo (quem nunca viu Senso nunca viu Palladio), as praças de Verona (quem nunca viu Senso nunca viu Sanmicheli) foram, em 1954, os palcos excessivos, exacerbados e exorbitados para a mais fantomática presença da mais fantomática das vozes.

João Bénard da Costa

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