9 de abril de 2009

Go Go Tales - Histórias de Cabaret (2007)

Independança

Um belíssimo manifesto pela independência, capaz de integrar, irónica e esfuziantemente, todas as suas ambiguidades e sombreados morais.
Abel Ferrara é um especialista do caos, esse mesmo caos (viram o episódio do "Cinema de Notre Temps" que a ARTE fez sobre ele?) que lhe inunda a vida pessoal, os processos criativos e uma data de filmes. Pois bem, há muito que ele não filmava assim o caos, a periclitância como estado permanente, o risco de a qualquer momento tudo dar para o torto.
"Histórias de Cabaret" é habitado por estas sensações de uma ponta à outra, dir-se-ia mesmo que é sobre elas; mas, e quase como uma inevitabilidade tratando-se de Ferrara, foi ele próprio extraído ao caos e à iminência do falhanço, no decurso de uma rodagem (na Cinecittà, em Roma) marcada por inúmeros problemas de produção e pela ameaça constante de tudo ficar pelo caminho.
Quer o filme se tenha alimentado dessas perturbações quer não, o efeito de espelho adensou-se. "Histórias de Cabaret" rima as angústias de Abel Ferrara como autor "independente", reflecte a dificuldade da condução a bom porto do seu "pequeno comércio", do seu "cabaret", quer dizer, do seu cinema. É a história de um "night club" nova-iorquino (reconstituído num estúdio romano, como dissemos, incluindo alguns planos de exteriores) dirigido por um Willem Dafoe, actor em estado de graça, tão entalado como optimista (a energia positiva da personagem evoca a do Ed Wood de Tim Burton, outro filme sobre as agruras da independência). Não há dinheiro para pagar a ninguém, nem às "strippers" que ameaçam entrar em greve, nem à senhoria, uma velhota a quem Dafoe deve vários meses de renda e que não se cansa de anunciar que ou ele paga ou é despejado. Está tudo à beira do fim, mas Dafoe tem razões para estar optimista: apostou tudo num esquema (confuso e aparentemente fraudulento) para ganhar a lotaria, e teve sucesso. Mas ainda o caos: nem ele nem nenhum dos seus parceiros se lembram de onde raio guardaram o bilhete premiado.
É portanto uma noite de "ou vai ou racha", num frenesi dado praticamente em "tempo real" (a duração do filme corresponde à duração da acção), o fulcro de "Histórias de Cabaret". Em suspensão (sobre o abismo, em fuga para a frente) e em "suspense" (ah mas onde está aquele maldito bilhete salvador?). O tempo preenche-se com as correrias à procura do bilhete e com as conversas de Dafoe para apaziguar os credores e convencer as meninas a subirem ao palco - e entretanto, "the show must go on", com "performers" vindos de outros filmes de Ferrara (Matthew Modine ou Asia Argento). Dafoe é uma espécie de figura paterna, mestre de cerimónias, psicólogo, intrujão por uma boa causa (a sua independência, o seu negócio, o bem-estar da "família" composta pelos funcionários do "cabaret"). Também é uma espécie de cineasta, como que um duplo do próprio Ferrara, a conduzir um filme de expediente em expediente, a arrancá-lo às garras do fracasso. Ferrara mencionou "A Morte de um Apostador Chinês", de Cassavetes, o filme onde Ben Gazzara se dispunha a tudo para preservar o seu negócio nocturno. "Histórias de Cabaret" tem outro tipo de intensidade, e um espírito de irrisão totalmente diverso da sisudez de Cassavetes. Mas é, como ele, um belíssimo manifesto pela independência, capaz de integrar, irónica e esfuziantemente, todas as suas ambiguidades e sombreados morais.

Luís Miguel Oliveira (Público)

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