10 de abril de 2010

Estou ansioso por isto

A feroz liberdade de "Ervas Daninhas" danifica, felizmente, a experiência do espectador. Esta ferocidade exige energias novas.

Este é o cineasta que em 1961, respondendo numa entrevista, a François Chalais, sobre o "enigma" "O Último Ano em Marienbad", propôs que cada espectador encontrasse a sua solução para o filme - por isso, a dele, Alain Resnais, até nem seria necessariamente a melhor; e que essa era a forma de explicitar a "estima" por quem estava na sala de cinema. Este é o cineasta, já agora, que na mesma entrevista não soube o que dizer quando lhe atiraram "cineasta de vanguarda"...

As salas de cinema mudaram, não tem sido grande a estima dos realizadores pela inteligência do público (e é preciso dizer que o público, isto é, todos nós, não tem estado à altura de desafios). É natural, por isso, que Resnais, 87 anos, faça figura de "cineasta de vanguarda", essa expressão que soa a palavrão ou a crime. O que ele continua a propor é solitário, selvagem, inóspito: a liberdade do espectador. É com isso que conta. Viva isso! É que isso, se formos capazes de descobrir, pode ser tão intenso, tão saturado de experiências, tão capaz de se concretizar em mundos novos e sensações novas como... um qualquer 3D (ainda para mais sem o desconforto dos óculos...). Essa é a cara de "Ervas Daninhas", filme mal educado, inclassificável, impossível de domesticar.

Com os habituais Sabine Azéma e André Dussolier a liderarem um "cast" onde aparecem recém-chegados à "família", e de novo a partir de material - tem sido às vezes romance, outras vezes é peça de teatro - sem problemas em habitar os encontros/desencontros da "comédia de boulevard", sem problemas com a separação entre a "alta" e a "baixa" cultura, portanto, Resnais forma e aniquila violentamente um par.

Por causa do roubo de uma carteira, Azéma e Dussolier são atirados um contra o outro: neuróticos, a passar a problemática meia-idade, ela aviadora de cabelo ferozmente ruivo, ele a ser comido vivo por um mal - é algo no seu passado, não saberemos -, têm estado adormecidos, sentimentalmente "arrumados". Mas aquela carteira, e o que se segue depois, empurra a comédia BD para a tragédia. Puxando também pela mulher de Dussolier (interpretada por Anne Consigny). E quem é "o par", afinal? O marido e a amante ou o marido e a mulher? Teremos, e se quisermos, a oportunidade de olhar o filme por um lado ou por outro, de novo simulando-se em cena, depois do jogo com a interactividade de "Smoking"/ "No Smoking" (1993), esse viveiro de hipóteses múltiplas, angustiantemente múltiplas, que pode ser ver um filme. Essa possibilidade de tudo...

No caso de "Ervas Daninhas", e por causa da sua liberdade, e por causa daquilo a que o filme se permite - é que este filme escreve-se, gesticula, é pintado; parece BD, depois teatro e grande produção de Hollywood com "happy end"; é "work in progress", é ainda esboço... -, é como se a própria natureza da experiência de espectador tivesse sido fundamentalmente alterada (queremos dizer: saudavelmente danificada). Não estamos a ver um objecto "arrumado", obra acabada e pronta a consumir. Estamos a ver algo que parece ter sido acordado naquele momento. Com uma ferocidade que pede energias novas ao espectador. Como se a coisa estivesse viva: ela mexe-se.

Está a ser feito ali, realizado ali, perante o espectador. Que tem de ser, também, uma entidade "nova". Isto é cinema ao vivo. E não são precisos óculos. Bastam os olhos.


Vasco Câmara


4 comentários:

Diogo disse...

Eu vou vê-lo amanhã, no Medeia.

[só para o gabanço de quem quer meter nojo] ;)))

Álvaro Martins disse...

Sim, muito nojo mesmo ;)) Eu, provavelmente, terei de o sacar para ver, não estou a ver o filme chegar às salas de cá. São as desvantagens de viver numa cidade pequena :(

Diogo disse...

Conheces o Caos Calmo, com o Nani Moretti? Foi um dos meus filmes favoritos que estrearam no ano passado cá... é muito bom, tem aquele slow pace que nós, os de bom gosto :), gostamos. E para além da pertinência na mensagem, etc. Vai passar hoje na 2. Se não viste, é uma boa oportunidade, só para avisar

Álvaro Martins disse...

Obrigado pelo aviso ;) mas já o vi já, falei dele aqui http://alvaromartins.blogspot.com/search?q=caos+calmo