31 de maio de 2009

A Comédia de Deus (1995)

Um filme de João César Monteiro




























Segundo filme daquela que viria a ficar conhecida como a trilogia de Deus de João César Monteiro. Depois de “Recordações da Casa Amarela” de 1989, J.C.M. volta com este “A Comédia de Deus” a trazer-nos o seu alter-ego João de Deus.
J.C.M. dedica o filme a Serge Denay, um dos directores da revista Cahiers du Cinéma (de 1973 a 1981) e fundador da revista Trafic. Antoine Doinel é o nome do empresário que no filme está interessado em importar os gelados para França, nome que pertence também a uma personagem de 5 filmes de Truffaut. Jean Douchet, crítico da Cahiers du Cinéma, aparece também n’ “A Comédia de Deus”. Portanto, resumindo, é claramente visível e irrefutável a influência que a Nouvelle Vague exerceu sobre Monteiro.

J.C.M. criou um personagem eterno e único. Depravado mas culto e filosófico. Nunca perde a pose, mesmo provocado ou em situações de perigo eminente (como é o caso em que o pai da Joaninha, carniceiro encorpado, está prestes a deixá-lo quase em coma depois de descobrir a sua façanha com a pequena). Palavrões. Obsceno. Todo o filme é hilariante, João de Deus é hilariante. É solitário, crente e descrente, ridiculariza tudo e todos, com um ar aristocrático e bem-falante, irrisório.
“A Comédia de Deus” é uma sátira, como o era “Recordações da Casa Amarela”, como o é toda a obra de Monteiro. É a sua imagem de marca. É o seu cinema. Desafiador de convencionalidades, de morais cristãs, o cinema de J.C.M. é sarcástico, irónico. É o grito do cineasta contra a religião, a política, a moralidade, a condição humana, os bons costumes, as leis, a sociedade, a família, o país.

Mas o cinema de Monteiro traz influências e muitas. Já em “Recordações da Casa Amarela” somos confrontados com todas essas influências. E uma das mais visíveis é a dos britânicos Monty Python, onde Monteiro vai buscar todo aquele humor non-sense, sarcástico e negro. Tati também está presente em Monteiro, na maneira como filma as situações, como dá vida ao seu alter-ego João de Deus e como cria as relações sociais deste com os próximos. Mas Monteiro não faz um filme cómico. Nenhum filme de J.C.M. é uma comédia no verdadeiro sentido da palavra, nem mesmo este que se auto-intitula assim. Há que lembrar que Monteiro é sobretudo anti-clerical. Ele cria em toda a sua obra um humor anárquico, um humor que desafia a falsidade, que a expõe ao ridículo e nisso lembramo-nos logo de Buñuel. Depois, Monteiro cria alusões ao Marquês de Sade com todo o seu episódio dos ovos, do banho de leite, da urina e dos pêlos púbicos. Toda a depravação sexual que J.C.M. explora alude ao Marquês.

“Recordações da Casa Amarela”, que marca a origem de João de Deus como seu alter-ego, é uma obra toda ela marcante, decisiva na definição de um personagem sarcástico, libertino e perverso. Mas “A Comédia de Deus” avança nessa definição do personagem, confirma toda a sua personalidade, o seu deambular pelo “mundo”, a sua perversidade, a sua depravação, o seu escárnio pela hipocrisia, pelo preconceito, toda a sua libertinagem e vagabundagem.

A dada altura do filme, João de Deus discursa perante um cónego, um político, um empresário duma geladaria francesa, uma prostituta (sua patroa) que investiu no negócio dos gelados e duas criadas. E discursa assim:
“Minhas senhoras e meus senhores. Caro colega. Vou ser breve. Poupar-vos-ei o relato atribulado em que, por circunstâncias meramente fortuitas e inesperadas, me tornei geladeiro e, pouco a pouco, me fui devotando ao meu ofício. Sou um homem de paz. Podia, quem sabe, ser um criminoso, um proscrito em permanente rebelião contra uma lei social cega e aberrante. Não sei. Sei que nunca poderia ser político, engrossar o cortejo dessa corja que põe e dispõe do ser humano, guiando-o para um devir cada vez mais favorável à condição de rastejante. És réptil, e em réptil te tornarás, é a lógica que forma incansavelmente a nossa vergonhosa degradação, enquanto indivíduos, enquanto espécie. Contra a trapaça universal, os gelados enregelados, o meu gelado, que leva em si toda a energia calórica do mundo, uma palavra amiga, uma prova de amor. Rigor e fantasia. O último luxo soberano de um homem livre que teve a suprema ousadia de, no país dos gatos-pingados, exaltar a vida. Não tenho receitas, fórmulas mágicas. Cada gelado que fabrico tem um perfume que lhe é próprio, o seu perfume. Nunca é semelhante ao anterior, nunca será igual ao que lhe sucede. Cada um tem, no entanto, algo para recordar: uma viagem, um passeio, um encontro, um ente querido, a mulher amada. O meu sonho, talvez irrealizável, é fabricar um perfume que concentre em si todos os perfumes. Harmoniosamente chegar-me a Deus, à quintessência dos perfumes. Não atraiçoem nunca os sonhos da vossa infância. Se abrirdes os vossos corações, talvez possamos provar o glorioso gelado final.”
Dito isto, e depois de todas as palmas, o político conclui:
“Gostei muito. Foi irreverente e oportuno. Temos de nos voltar a ver um dia destes.”

Que mais devo dizer? Talvez que o discurso é de Monteiro e não de Deus, talvez que ele está realmente a falar do cinema e não dos gelados.

2 comentários:

Orf disse...

onde encontro um torrent desse filme?
grato antecipadamente.

Álvaro Martins disse...

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