Um filme de David Lynch
Quando nos deparamos com “Inland Empire” entramos num mundo à parte, no mundo de Lynch. E se para uns é um mundo indecifrável e inexplicável, para outros é um mundo fascinante onde se aceita e explora a visão de Lynch. Um mundo onde entramos para testemunhar os pesadelos do cineasta canadiano. Um mundo surrealista que me fascina, como me fascinou “Eraserhead” (entre os dois nem sei qual será mais surrealista e difícil), “Lost Highway”, “Mulholland Drive” e aquele final enigmático de “Twin Peaks”.
E “Inland Empire” é talvez o seu trabalho mais ambicioso. Um filme por detrás do filme dentro do filme. Complexo, sim. Mas fascinante. Porque estamos ali para ver, viver e sentir o seu pesadelo, testemunhar o seu mundo desafiando a lógica e a racionalidade. Porque Lynch desafia convencionalismos, regras e linearidades, porque Lynch atinge cada espectador que tente encontrar respostas pessoalmente. E “Inland Empire” transcende-se na sua espiral que se desenvolve, na sua beleza metafórica e onírica. Porque Lynch deixa-nos de tal forma envolvidos que a dado momento nos perdemos tal e qual Laura Dern (numa interpretação impressionante). E Lynch consegue criar e transmitir essa vertente sensorial, esse aglomerar de sensações e alucinações de Dern, como que se estivéssemos dentro da sua mente a testemunhar toda essa viagem alucinogénica que Dern experiencia.
“Inland Empire” perde-se e encontra-se, afunda-se nos mais obscuros pesadelos e brinda-nos com delírios lynchianos. Tal como em “Eraserhead”, “Mulholland Drive” e “Lost Highway”, Lynch cria um ambiente surrealista (in)explicável, quiçá onírico, onde explora uma dualidade de personalidades que origina um conflito entre demência e sanidade. E o cineasta cria uma obra enigmática, um filme hermeticamente poético, um reflector dos nossos medos e desesperos, onde nos cabe a nós explorar o seu mundo, onde a história tem que ser descoberta dentre os mais tenebrosos e abstractos pesadelos psicadélicos de Lynch.
11 comentários:
Já estive por várias vezes para ver este filme, mas acabei por optar por outros. Talvez, essa complexidade de que tanto se fala tenha contribuido para isso... Seja como for, adoro os trabalhos do realizador. Certamente acabará por entrar no meu leitor de DVD.
João, quando o vi pela primeira vez foi semelhante. É impossíevel perceber o filme, quem o disser mente. Mas tu formas ideias, teorias. Depois de o ver pela primeira vez andei dias a pensar no filme, a tentar desvendar o que era o quê. Mas depois de o ver pela segunda vez, as minhas ideias ganharam mais peso, mais veracidade e concluí que por mais vezes que veja o filme nunca chegarei a outra conclusão. Poderei desvendar mais um ou outro pormenor, talvez mudar a minha opinião sobre um ou outro detalhe, mas o essencial é sempre o mesmo, o cerne da questão é a complexidade de Lynch. É um filme que só o ele o compreende na totalidade, um filme sobre os seus medos, os seus pesadelos, um filme em que nos limitamos a experienciar e aceitar (ou não).
E como disseste, o prazer basta.
Filipe, a complexidade fascina-me, seja num Lynch, num Cronenberg, num Tarr, num Bartas.....
Aconselho-te a veres. :)
este filme do lynch (e logo por aí não deve ser comparado com mais nenhum dele), é filmado, pela primeira vez no formato digital e que é atento percebe bem isso. ao usar o digital lynch torna o filme mais realista e movimentado, com menos planos estáticos. só é lynch porque está lá a crítica a hollywood, e o argumento confuso (com excertos do Rabbits) que, por ser confuso, nos cativa. de resto, não é lynch. pode ser melhor ou pior, dependendo da opinião de cada um. concordo com alguns críticos quando dizem que o lynch "abandonou" o classicismo, a arte e passou para um outro nível. é claro que já se podia ver um pouco dessa "quebra" no Mulholland Dr. mas faltava algo. Desconfio, que pela primeira vez, o lynch fez um filme ... para ele.
Genial! Um filme para pensar, que faz pensar no que pensar... acho que os filmes de Linch são raríssimas oportunidades para se contemplar a arte num sentido mais original. E quanto mais próxima ao que o compositor tem em mente, mais original... de fato, achei fantástico, especialmente a canção final.
decker,
eu sei que foi filmado em digital, pela primeira vez o Lynch experimentou o digital e parece que gostou. Eu também não desgostei. Quanto ao não ser Lynch, discordo completamente. Como disseste estão lá os excertos do Rabbits, está lá toda a confusão de uma mente perturbada como no Eraserhead, no Lost Highway, no Mulholland Drive e do final do Twin Peaks. Claro que já fez filmes mais convencionais, mais lineares como o Blue Velvet, o próprio The Elephant Man, o Wild at Heart, etc, mas não é a primeira vez que Lynch nos brinda com um filme, como disseste, "para ele". Até posso aceitar essa descrição, para ele, mas é preciso ver que já o Eraserhead é na mesma onda, surrealista até dizer chega, psicadélico e onírico por demais. Por isso não penso que Lynch tivesse abandonado o classicismo porque ele nunca o teve, ou melhor, vai o visitando nalguns filmes como o The Straight Story e os que falei em cima. Mas o verdadeiro cinema de Lynch é este, o de Inland Empire, o de Lost Highway, o de Eraserhead e o de Mulholland Drive (que de entre estes é o menos confuso).
Guilherme,
sem dúvida, grande filme.
eu não disse que o filme não é confuso nem linear (e o lynch, como referiste, tem de ambos). o que eu disse é que este inland é ao contrário de todos os outros um filme que goza de mais liberdade de planos e de uma maior movimentação de câmara traduzida numa maior velocidade narrativa. compará-lo com o mulholand, vá lá, mas não se pode comparar com o lost highway, muito menos com o eraserhead.
Quando os comparo, comparo o surrealismo de Lynch, a complexidade do seu cinema, claro que a mise-en-scène é incomparável a este Inland Empire, muito devido à câmara digital, mas não só.
Coro de vergonha de cada vez que me lembro que ainda não vi este do mestre.
Vou ali auto-flagelar-me =x
Ei que falha!! Trata mas é de o ver. :)
I know, shame on me =$
Como grande fã de Lynch que sou, confesso que inicialmente também fiquei um pouco desapontado com INLAND EMPIRE. Porém, creio que é possível encontrar uma "lógica" por trás de tantos fatos aparentemente desconexos.
Primeiramente, vamos destacar alguns dos personagens e pontos chave da trama, tentando estabelecer uma ordem cronológica para os fatos. Inicialmente, Piotrek Krol é o polonês que ama a garota conhecida como Lost Girl ainda quando ambos viviam na Polônia. Creio que ambos sejam artistas por lá. Porém, existe uma rede de
prostituição especializada em levar garotas do Leste Europeu para os EUA, com falsas promessas de que as garotas serão estrelas em Hollywood. Um dos líderes dessa organização é o personagem conhecido como Phantom, que acaba por levar Lost Girl para Los Angeles.
Chegando lá, ela descobre que a triste realidade é bem diferente dos sonhos que tinha de se tornar uma atriz de sucesso, sendo que
ela acaba no mundo da prostituição. Piotrek tenta e consegue falar com Lost Girl (pelo telefone talvez) e também parte para Hollywood (há uma cena em que ele está na Polônia e a ouve mas não consegue vê-la...). A verdade é que mesmo chegando em LA, Piotrek não consegue encontrá-la, tampouco encontra Phantom. O tempo passa e ele acaba conhecendo Sue (Laura Dern), que vive em Inland Empire. Após um certo tempo os
dois se casam, mas ele parece não amá-la verdadeiramente e ela, de alguma maneira, tem um caso extra-conjugal (lembrar que em seus sonhos diversas vezes aparecem prostitutas), sendo que ela fica grávida (neste ponto, cabe uma outra possibilidade que ainda não
explorei: Lost Girl e Sue serem a mesma pessoa...).
Sem saber que Piotrek não é capaz de gerar filhos, ela diz que está esperando um filho dele. Um conflito ocorre entre os dois, o que de alguma maneira acaba resultando na morte dele (ela o mata ou contrata alguém para matá-
lo, por exemplo). Porém, outro problema aparece, que na minha visão, é ponto crucial de toda história: como ela não tem dinheiro para fazer um aborto, acaba matando o próprio filho na barriga com uma chave de fenda!!! Posteriormente, um terrível sentimento de culpa e remorso tomam conta de sua vida, de forma que o que se vê no filme é toda uma história que sua mente tenta criar, para justificar todos os erros bárbaros que ela cometeu. Vale ressaltar que dentro dessa visão, a Sue/Nikki e Doris são a mesma pessoa (notar que em determinado momento do filme, Doris é mostrada com uma chave de fenda na barriga e em outro momento, na calçada em Hollywood Boulevard, Sue é atacada na barriga por Doris... e em outro, logo em seguida, qdo Nikki está na rua conversando com algumas pessoas abandonadas, a oriental fala que uma amiga dela que mora em Pomona tem uma peruca loira e que tem um buraco na barriga feito
pela vagina... ela está falando exatamente de nossa personagem principal na vida real, retratada no filme como: Sue/Nikki/Doris).
Na história inventada pela mente da personagem principal, Sue/Nikki/Doris, esse relacionamento extra-conjugal é fruto de um filme que ela participa com o ator Devon, que interpreta o personagem Billy. Note, também, que ao longo do filme ela (Sue) diz várias vezes que as coisas ficaram piores depois que o filho dela morreu. Na verdade, assim como em Mulholland Drive, praticamente toda história foi criada pela mente da protagonista, como uma forma de escapar da realidade, do remorso e do sentimento de culpa. Nessa história inventada (ou sonho), repare como Sue consegue criar um final feliz exterminando Phantom, que foi a origem de todos os problemas, fazendo com que Piotrek, Lost Girl e a criança (representada por um menino) se reencontrem, ao mesmo tempo que ela termina no palco, sendo aplaudida e reconhecida com uma atriz de sucesso.
Essa é minha versão, extremamente simplista, sobre o pano de fundo de INLAND EMPIRE e gostaria de compartilhá-la.
Enviar um comentário