31 de agosto de 2011

乱れ雲 Midaregumo - Nuvens Dispersas (1967)
成瀬 巳喜男 Mikio Naruse

A derradeira obra de Naruse é talvez o seu filme mais melancólico e mais implacável, desarma qualquer um, vai buscar a tragédia para juntar dois seres tão melancólicos quanto humanos, clementes. Aí, nessa bondade que extravasa como água duma fonte, tem lugar a moralidade e a mágoa de se perder o ser amado (juntamente com a mágoa, do outro lado, de ser o responsável moral por essa perda) para se resistir à entrega ao novo amor. A redenção é desde aquele momento em que se visita o espaço fúnebre e seus intervenientes o objectivo a alcançar por aquele homem que gradualmente se vai vendo assombrado e torturado pela culpa e pela redenção que parece inatingível. Como em todos os seus filmes, Naruse explora o conflito interior do ser humano e as suas relações inter-pessoais para descortinar a ambiguidade da acção humana e das suas emoções.

27 de agosto de 2011

Steamboat Round the Bend (1935)
John Ford

"Última adenda: será “Steamboat Round the Bend “, um dos cúmulos de todas as artes, um filme sobre corridas de barcos? Panfleto humanista? Jamais...é o supremo elogio às maravilhas liquidas e às suas envolvências, ao glorioso mississipi simbolo de todas as águas e de tantos heróis, navegantes, capitães e lobos dos mares, ode às imperiais máquinas que as atravessam, num maravilhoso que vai de Grifith a Walsh ou Tourneur, Lord Jim, Julio Verne, ou aos grandes pintores idilicos de tudo isso, Manet, Corot, Wyeth."
José Oliveira, daqui

24 de agosto de 2011

Womb (2010)
Benedek Fliegauf

Aquilo que primeiramente se denota em Womb é a ausência dos movimentos de câmara à Tarr que Dealer e as curtas-metragens traziam (Tejút era já uma incursão no plano fixo embora aí se prefira falar no experimentalismo ou radicalismo do cineasta), ainda que todo esse universo do mestre húngaro se sinta presente no filme. Falo não só da lentidão como dos enquadramentos e do aspecto sensorial, ascético e melancólico que comprova a continuada influência de Tarr no cinema de Fliegauf.

Womb é um filme cinzento, coisa que acentua a melancolia e o ambiente depressivo que gradualmente vai crescendo. É aí, na melancolia, que tudo assenta e inclusivamente a ambiguidade e a imoralidade do tema se constrói e desenvolve. O que me parece, ainda que se possa atribuir uma conotação política relativa ao tema, que o que mais interessa ao cineasta húngaro seja a ambiguidade da questão. O que temos, construída nos alicerces da dor e da mágoa que a morte traz, é a tentativa duma mulher (que ao fim de doze anos ao voltar “a casa” para reencontrar o seu amor de criança o perde num abrupto acidente) trazer o seu amado de volta à vida. Resolução: clonagem. O que acontece ou o que Fliegauf explora é a ambiguidade do tema, a moralidade e a falsa satisfação (ou felicidade) que o acto trará àquela mulher, o egoísmo e a efemeridade que tudo representa, a complexidade que deriva da decisão, o que resulta num filme belo, melancólico e muito bem filmado que embora procure nunca alcança a redenção.

23 de agosto de 2011

Nos últimos dias dois filmes de Zurlini vistos, Le Soldatesse e Seduto Alla Sua Destra, dois filmes políticos, dois filmes corrosivos, de lutas interiores e plenos de compaixão e de amor ao próximo, moralistas, filmes anti-guerra, coisas brutais e negras na imensidão da desolação da guerra, do mundo e do ser humano. São ambos manifestos à paz e à humanidade, filmes de princípios e de sacrifícios. Tragédias, tormentos, vias-sacras…
The Killing Fields (1984)
Roland Joffé

Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.


Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.

Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.

Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.

Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.

Cecília Meireles in "Poemas"

20 de agosto de 2011

Só umas palavrinhas sobre alguns filmes (ou projectos de filmes) que aí vêm: o Cisne da Villaverde deixa-me bastante expectante e curioso. Fala-se também, e cada vez mais, em remakes de filmes do Peckinpah, no comments. No comments também para a sequela do Blade Runner (cheira-me que agora é que o Scott vai mostrar que ter feito o Blade Runner foi coisa que lhe caiu do céu!!!). Quanto a Malick, sem ainda ter visto o seu The Tree of Life, começo a estranhar (e a desconfiar) tão movimentada agenda cinematográfica.

19 de agosto de 2011

Cronaca Familiare (1962)
Valerio Zurlini

Se há coisa que Cronaca Familiare tem, e digo-o com toda a certeza, é a “veia” Viscontiana que carrega consigo, os planos e enquadramentos majestosos e imponentes quer dos símbolos da velha aristocracia quer do espaço rural e urbano da época, a família como coisa sagrada (ainda que amputada desde a tragédia inicial), a secura e a palidez da imagem, a música...

Em Cronaca Familiare existe uma total e contida submersão de mágoa e de nostalgia dilacerante que nasce da tragédia (ou das tragédias) para alcançar a sua plenitude na intensidade dramática que se torna erosiva na implacabilidade e na intensidade dessa dramaturgia. Se é verdade que Cronaca Familiare é um filme trágico que nasce e morre na tragédia, ainda mais verdade é que, acima de todo esse tragicismo épico, Zurlini faz um filme de reencontros e de lutas interiores com a solidão e os laços fraternais. Da ausência surge esse vazio familiar interior que teima em se dissipar mesmo no reencontro e após dele. É a tragédia ou a aproximação dela que vem colmatar esse vazio e fortalecer o amor fraternal que tanto tempo esteve adormecido. Aí tudo é libertador da mágoa contida por anos, tudo é implacável e brutal na aceitação da força do mesmo sangue que corre nas veias e une aqueles dois irmãos. O amor, adormecido pelo tempo e pela ausência, emerge lentamente para explodir sob a ameaça da tragédia.

É por isso, e sobretudo em Enrico (um assombroso Mastroianni), um caminho tortuoso e negro (alegoricamente pois o filme é repleto de luz no seu radioso technicolor) de dúvidas e de ambiguidades quer existencialistas quer espirituais na procura da redenção e do amor fraternal. Ainda que Cronaca Familiare transporte consigo todo o realismo (ou o neo-realismo) italiano do pós-guerra é o lirismo dessa visão da vida (e dos destinos daquelas duas vidas) que mais nos atrai, é a brutalidade do tempo que tudo fez para os castigar pela ausência. É aí que Cronaca Familiare irrompe toda a sua implacabilidade, todo o sentimento e todo o dramatismo que irá verter todas as lágrimas da tragédia, é aí que as trevas da mágoa, da solidão e do conflito interior irrompem para libertar o homem. Implacável, brutal, grandioso, Zurlini.

16 de agosto de 2011

Der Blaue Engel (1930)
Josef von Sternberg

O que me interessa destacar em Der Blaue Engel é a utilização do espaço como símbolo de corrupção moral e decadente do homem. Mais uma vez, Sternberg enegrece tudo pelas sombras do submundo e da devassidão humana para aqui nos contar uma fábula ou um conto trágico do declínio dum homem cuja sexualidade reprimida lhe permite o fascínio e o deslumbramento ingénuo e etéreo na sensualidade e na paixão efémera por uma dançarina. Entre o expressionismo e o realismo é sobretudo nessa aproximação ao primeiro que partimos para o tenebroso, subvertido e degradante trajecto do homem corrompido pela devassidão do ambiente nocturno e de lascívia da “serpente humana” (a mulher) em direcção à cruel humilhação, à demência e às trevas mais profundas que podem emergir na alma do homem. No momento final Sternberg mata o homem pelo arrependimento, pela condição mais vil e degradante que este atinge. Essa é a sentença trágica de quem se deixou ludibriar pelo coração da obscenidade e da devassidão, isso é que faz de Der Blaue Engel um bom filme. O resto, o surgimento duma nova estrela (Dietrich), a interpretação de Jannings (distante da de The Last Command, isto para nos restringirmos a filmes de Sternberg), alguns planos e movimentos de câmara dignos de registo e o jogo de luzes, não me pareceu que fosse suficiente para superar quer Crime and Punishment quer os mudos The Docks of New York (sobretudo este) e The Last Command.

15 de agosto de 2011

The Last Command (1928)
Josef von Sternberg

"(...) The Last Command contains echoes of Jannings’s famous role in The Last Laugh. The exceptional importance assumed by the uniform in that German classic is carried over into the American film. When, in The Last Laugh, Jannings’s nameless character is demoted from his elevated position as a doorman to washroom attendant, he takes off his uniform and hands it over in an excruciating gesture of dejection, as if relinquishing his identity along with the garment. In The Last Command, we encounter the reverse: standing in a line with other extras, Jannings picks up a uniform to regain his former identity as a Russian general. What he surrenders in the German film he recoups in the American one. Employees in the costume department hurtle the bundled uniform to Jannings unceremoniously, indifferent to what it symbolizes. Without his uniform, Jannings looks as wretched in the American film as he does in the earlier German one. In both movies, the uniform changes the person: it bestows status, glamour, identity. The Last Command can also be read as an American counterpoint to the German film: it concludes with the death of the protagonist, while the German film offers a satiric Hollywood ending. The only intertitle of The Last Laugh states: “Here the story should really end, for, in real life, the forlorn old man would have little to look forward to but death. The author took pity on him and has provided a quite improbable epilogue.” With this, Murnau reveals the ending of a melodrama to be a mere construct: it is up to the director to end the story as he wishes.

The same level of reflection about the act of constructing filmic fiction occurs in The Last Command. Toward the end of the film, we witness the creation of a scene—the director calls for various elements, one after another: “Music, please—the Russian National Anthem!” “Wind machine!” “Lights!” And finally, “Camera!” Jannings is directed to inspire his troops to follow him and fight a final battle. The uniform has transformed him into his former chauvinist character (to the sound of the national anthem), and he rapidly loses his grip on “reality.” Past becomes present and acting becomes life. Frequent crosscuts to the running camera and the director, who monitors the scene with increasing apprehension, keep the viewer distanced from the pathos of the general reliving his traumatic past. A revolutionary soldier attacks the general: “You’ve given your last command! A new day is here! Down with your Russia!” Jannings strikes him down, grabbing the flag and climbing out of the trench. Hallucinatory images of the dead from his former Russia appear as superimposed ghostly figures—signifying (in the tradition of German expressionist cinema) that the general is going crazy. As his gestures become more imperious and threatening, reinforced by an extreme low-angle camera and high-contrast lighting, he exclaims: “The command is forward—to victory. Long Live Russia!” The reenactment of his past proves to be fatal: he dies in the arms of the director, his former adversary.

The Last Command can be seen, in part, as a melodrama about the Russian Revolution, with political conflicts translated into private tensions between two men over a woman whose death allows their reconciliation. But von Sternberg’s framing of this story turns the film into something else altogether, taking us out of the melodrama to explore the nature of acting and pretense. The last line of the movie states: “He was more than a great actor—he was a great man.” This distinction points to the director’s ambivalent attitude about the role of actors in the make-believe world of cinema. (...)"

Anton Kaes
(texto completo aqui)

14 de agosto de 2011

The Docks of New York (1928)
Josef von Sternberg

The Docks of New York é filme de mestre, conto milagroso ou coisa de utopias que emerge das sombras, da névoa e do pecado para alcançar não só a redenção como a plenitude. Aquele matrimónio vem trazer toda a luz àquelas duas almas errantes que num impulso súbito se atrevem a desafiar o destino, a escorraçar a amargura que momentos antes originou o quase suicídio. Sim, bela muito bela história de amor de Sternberg, coisa angelical bem no coração da libertinagem, o encantamento a trazer a candura, a renovada esperança e a luz à alma, mesmo que se hesite, mesmo que tudo a principio não passe de uma noite de diversão, mesmo que tudo seja inicialmente ilusão, conto de fadas por uma noite, mesmo que na manhã seguinte ele volte atrás, mesmo que aquele renascer só venha lá perto do final. Na verdade é o outro primeiro impulso, o de salvar a donzela das águas das docas, que marca a mudança, é esse passo dado que vem trazer o recomeço, a mudança, a redenção, mesmo não passando da inicial tentativa de engatar uma mulher para aquela noite. A resistência de Bill à mudança quebra naquele momento dela lhe coser o bolso da camisa… quando ela pega na linha e na agulha para coser o bolso e com as lágrimas nos olhos é incapaz de enfiar a linha na agulha, é aí que algo nele muda, é aí que o carinho e a mútua necessidade de se terem um ao outro começa, mesmo que essa mudança só se consuma depois frente ao calor abrasador das caldeiras do navio. É a singeleza e o lirismo de Sternberg a emergir na redenção de dois seres dissolutos, a luz do amor e da felicidade a irromper na névoa e na negrura do mundo.

12 de agosto de 2011

Le Quattro Volte (2010)
Michelangelo Frammartino

Tudo o que possa ser dito sobre Le Quattro Volte jamais fará jus ao filme, jamais conseguirá transmitir o poder que aquelas imagens transportam, a beleza e a imponência daqueles planos-sequência (principalmente aquele de que Vasco Câmara falava aqui) que não existiam em Il Dono, a destreza da câmara e do olhar sobre aquelas quatro vidas ou quatro voltas como que a ganhar vida entre essas voltas, porque tudo volta, tudo é um ciclo, porque tudo começa nas cinzas para nelas acabar (ashes to ashes como dizia VC), porque ali tudo é lúcido e objectivo como no anterior Il Dono, porque ali filma-se a realidade a sobrepor-se à ficção mas sem que esta se apague, filma-se uma qualquer transcendência dos sentidos, do mundo e da natureza que vai desde o homem ao carvão, da vida à morte. Grandioso é dizer pouco.

9 de agosto de 2011

Archangel (1991)
Guy Maddin

"(...) Archangel is a reverie on identity (Veronkha tells Boles to call her anything he likes) authenticity, and the ontological essence of the individual, who constructs that identity by shaping narratives that are shown in this film to be wrong-headed. The theme is echoed in its troubled family units, its doubles and reproductions, and the cinematic ghosts that haunt the film. To list the most obvious: the luminous American melodramas of Griffith, de Mille, Borzage and Vidor; the outré gestures of French Impressionists Gance and Epstein; the post-war melancholy of All Quiet on the Western Front (1930) and La Grande Illusion (1937); the subjective war horrors of Klimov’s Idi i smotri (Come and See) (1985); the avant-garde fragments of Deren, Brakhage and Anger; the post-modern experiments of early Von Trier; the shadowplay of Murnau and technology-fetish of Lang; the homosexual mythologies of Cocteau, Genet and Fassbinder; and the Surrealist-filtered Sadism of Picabia, Buñuel and David Lynch.

The events in Archangel are roughly contemporary with those of the great Russian films mythologising the Revolution, such as October (1927, Sergei Eisenstein) and The End of St. Petersburg (1927, Vsevolod Pudovkin) though because of the polyphony of this film’s bricolage, Maddin is more sparing in his use of the Soviet masters then he would be in the celebrated short The Heart of the World (2000). There are quotes from films like Aelita (1924, Yakov Protazanov), Battleship Potemkin (1925, Eisenstein) and Arsenal (1928, Aleksandr Dovzhenko), and some expert Eisensteinian montages of faces, but it is the Soviets’ symbolic relation to Maddin’s work that is important. Where these propaganda classics extolled the masses and teleological model of society and history, Maddin focuses on anti-social deviants and perverts, caught in the circles of their own primitive obsessions. The Soviet films generally focused on political centres like Moscow, St. Petersburg or Kiev; Maddin, like Pudovkin in Storm over Asia (1928), hangs on the margins. His montage, rather than synthesising opposites for a greater whole in the Eisenstein manner, isolates individuals from society and history, alone in their demented desiring. This is not to characterise the Russians as dull apparatchiks – when given the freedom, as in ¡Que Viva Mexico! (1932) and Ivan the Terrible (1945, 1958), Eisenstein was just as capable of the lurid and baroque. Ironically, Maddin’s films, like those of most “independent” film-makers, are often state-subsidised.
(...)"

Darragh O’Donoghue in Senses of Cinema

8 de agosto de 2011


Kin-Dza-Dza (1986)
Georgi Daneliya


Kin-Dza-Dza, sátira cómica e mordaz à sociedade moderna, coisa tão fantasista quanto realista, tão cómica quanto melancólica.

7 de agosto de 2011


Chronik der Anna Magdalena Bach (1968)
Jean-Marie Straub & Danièle Huillet

"...- Impossível não falar do primeiro plano do filme. Parece que o travelling foi inventado para que pudesse existir aquele plano. Após alguns minutos fechado somente em Bach tocando o cravo, o plano se abre por um travelling para trás e reconhece que há um espaço à volta dele, e que há outros músicos nesse espaço. O movimento de câmera começa no exato instante em que a música solicita a participação dos outros instrumentistas. É um movimento obediente, pois segue a demanda da música e, portanto, do espaço. É também a relação de Bach com o entorno, do indivíduo com a comunidade, do gênio com o mundo – tudo dado de um só golpe. “Se o acordo de um gesto e de um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo, a mise en scène será uma tensão rumo a esse acordo, ou sua imediata expressão” (Michel Mourlet). O que temos aqui é da ordem da “imediata expressão”."

texto completo de Luiz Carlos Oliveira Jr. aqui

4 de agosto de 2011

Duas ou três coisas sobre Macbeth e Othello de Orson Welles:

1º a negrura; não há, ou pelo menos não vi ainda, adaptações destas duas obras de Shakespeare tão negras quanto estas, tão terríficas, tragicamente subversivas, submersão total nas trevas e na ideia quer demoníaca quer demente do homem.

2º os planos, os enquadramentos, as sombras, a expressividade, o poder do texto.

3º a ideia ou a similaridade com o expressionismo alemão (nos planos, nos enquadramentos, nas sombras…).
Macbeth (1948)
Orson Welles

The Tragedy of Othello - The Moor of Venice (1952)
Orson Welles

3 de agosto de 2011

The Lady from Shanghai (1947)
Orson Welles

* “Certa vez, na costa do Brasil, eu vi o mar, negro de sangue, enquanto o sol desaparecia no horizonte. Paramos em Fortaleza e alguns de nós pescávamos. Consegui a primeira fisgada. Era um tubarão. Então veio outro… e mais outro. Todo o mar ficou repleto de tubarões. E continuavam a surgir. Já nem conseguia ver a água. O meu tubarão feriu-se no anzol e o cheiro a sangue enquanto se debatia deixou os outros loucos. Então as feras começaram a comer-se umas às outras. No seu frenesim, comeram-se a si próprios. Podia sentir o desejo de matar como um cisco dentro do olho, podia sentir o cheiro da morte a exalar do oceano. Nunca vi nada pior… até este pequeno piquenique. E, sabem, nenhum tubarão daquele cardume sobreviveu.”

O mais importante ou o mais assustador e brutal nos filmes de Welles é o seu olhar, o terror daquele olhar, o medo que o domina. Tudo naquele Michael de The Lady from Shanghai é pleno de lirismo, homem sonhador, idílico, cheio de esperança e de confiança em si, é tudo isso e toda a ideia do amor e da redenção que o consome, que o persegue, que o faz caminhar para o meio das trevas. Aí tudo é negro, subversivo, irascível, brutal tão brutal quanto as noites do Tabu do Murnau, tão psicótico e sensual envolto num noir classicista bruto que submerge nas trevas da paixão e do desejo que tudo turva ao homem, na cegueira que o domina e que o conduz para o terreno tortuoso que tudo confunde e tudo esconde, a delicadeza e a fragilidade daquela mulher (uma espantosa Rita Hayworth loura) que tudo ou quase tudo consegue daquele homem, nada das habituais femmes fatales, coisa tão próxima da Tierney do Laura do Preminger, aquela doçura do olhar dela, a fragilidade que se mistura com a sensualidade, o olhar dele de quem tudo fará para a ter e tudo espera dela mas que sabe que cada vez mais se afunda numa teia corrompida. É esse o olhar de Welles, a procura do refúgio que acaba no meio da traição e do crime, a culpa que virá da obscuridade de toda a viagem tortuosa que se inicia naquele cigarro oferecido logo no inicio, a beleza e a fragilidade a enfeitiçar o homem e a moldar os seus actos, a complexidade do mistério, o mergulho vertiginoso na negrura daquele cardume de tubarões* que culmina naquela espantosa sequência final dos espelhos. Brutal.
A Casa (1997)
Sharunas Bartas

2 de agosto de 2011

楢山節考 Narayama-bushi kô (1983)
Shohei Imamura

Remake dum filme de 1958 com o mesmo título realizado por Keisuke Kinoshita (que ainda não vi), A Balada de Narayama de Imamura é um filme negro, sombrio, primitivo. O plot segue uma velha de 70 anos que apesar de ainda saudável anseia e determina a sua ida para Narayma. Ora, Narayama é o monte onde todos os velhos daquela aldeia primitiva japonesa (num tempo indeterminado mas primitivo) vão morrer. Tradições, costumes e regras ou leis próprias àquele povo. Essa, a de aos setenta anos irem para Narayama morrer, é uma regra que é imposta ou que deve ser cumprida porque a aldeia é escassa em alimentos, porque com a exclusão desses sobra mais para os outros. O mesmo para crianças indesejadas ou para o excesso delas numa família. O castigo é severo para quem rouba e para quem não cumpre as regras daquela comunidade. Imamura filma o caos, a fome, filma a sobrevivência ou a luta por ela, os mitos e os ritos primitivos, a negrura do mundo, a ausência (ou quase) de dignidade, de amor, filma a desumanidade e a natureza, a austeridade dela, da vida e do mundo. No entanto, naquele final, naquele homem que tem voltar sem olhar para trás Imamura deposita ali todo o amor ausente neste grande filme.

1 de agosto de 2011

L'Eclisse (1962)
Michelangelo Antonioni

L’Eclisse, o culminar perfeito duma trilogia estrondosa e brutal sobre a incomunicabilidade e a alienação do ser humano, coisa social da alta sociedade porque os pobres estão muito ocupados em tentar sobreviver. Existencialismos sim, mas acima de tudo conflitos interiores e incertezas pessoais, a solidão plena mesmo inclusivamente no seio duma relação, inadaptação ou abstracção ao mundo, às regras, à sociedade, aos convencionalismos, ao amor, coisa irascível ainda que contida, aprisionada no interior das personagens ou no vazio das imagens, das estradas e dos edifícios. São planos e planos e enquadramentos e planos e movimentos de câmara tão virtuosos e tão geniais a invadir o ecrã...