…Bresson nunca facilitou a tarefa. Este grande senhor, hoje com 87 anos* (nasceu em 1901 e não em 1907 como dizem quase todas as fontes), sempre entendeu que «o cinema não é um espectáculo, é uma escrita» e escreveu nos seus 13 filmes uma complicada história teológica, em torno de questões tão pouco populares como a Predestinação, o Acaso ou a Graça, na dependência de um catolicismo austero, a que por vezes se tem chamado jansenista.
Não usa a palavra cinema. Prefere o termo «cinematógrafo» para sublinhar a diferença «entre os filmes correntes e a arte cinematográfica» e diz que «o cinematógrafo é a aplicação em imagens insignificantes (não significantes)».
Actores? É coisa que, para ele, não há. Se nos primeiros filmes (Les Anges du Péché, de 44; Les Dames du Bois de Boulogne, de 45; Journal d’un Curé de Campagne, de 51) ainda transigiu e ainda foi escolher à Comédie actores (e actores de teatro) para os seus personagens, a partir do opus 4 (Un Condamné à Mort s’est Echappé, de 1956) recorreu exclusivamente a homens e mulheres que não fizessem qualquer ideia do que fosse representar. Chamou-lhes «modelos» em vez de actores, e quis que modelos fossem em vez de parecerem actores. «Não se trata de representar com “simplicidade” ou de representar com “intensidade”, mas de não representar de todo.» E exigiu-lhes que falassem como se falassem sozinhos, sem expressão. «Monólogos em vez de diálogos.»
Por isso, nunca usou duas vezes o mesmo modelo. Por isso, não perdoou àqueles dos seus modelos que, traindo-o, iniciaram com ele uma carreira de actor (o caso mais célebre é o de Dominique Sanda, seu modelo em Une Femme Douce). Por isso, os seus modelos parecem todos modelar-se uns aos outros na mesma inexpressividade. Com a pintura aprendeu que não havia imagens belas mas imagens necessárias. E que, como dizia Cézanne, «à chaque touche, je risque ma vie».
Nunca se importou nada que o achassem ou chamassem reaccionário. Nunca se importou nada que cada um dos seus filmes demorasse anos a ser feito. Levou uma série de produtores à falência, tão mais exigente e gastador quanto menos se viam os seus filmes. Obcecado com os números e as sortes (ou os azares) construiu em 13 filmes um universo que não se parece com nenhum outro, e que ninguém nunca conseguiu imitar. Dissertando sobre ele, Nuno Bragança escreveu: «Cristão que também sou, sinto a que ponto essa visão (a visão de Bresson) está, para muito do que marca o tempo em que vivemos, como sopa em torno de uma mosca. Mas opto pela sopa.» Eu também.
E opto, particularmente, entre todos os seus filmes (nenhum a que não possa chamar «filme da minha vida») por Pickpocket (1959) que por aqui chamaram, com alguma imaginação, O Carteirista.
Já se disse que era «o filme mais branco da história do cinema» (só talvez Luz de Inverno de Bergman possa competir), pois é a mais ousada tentativa do seu autor para desmontar o real, através das suas aparências, ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade.
Filme sobre um pickpocket, tão misteriosamente triunfador nos seus roubos iniciais, como misteriosamente vencido no seu roubo final, tanto se pode falar dele em termos de «tratado de moral» (relações entre o roubo e a homossexualidade, relações entre o crime e a lei), como em termos de «tratado metafísico» (mais uma vez, a perene contradição dos filmes de Bresson, entre o «primado da Graça» e o «primado das Obras») ou em termos estritamente «materiais» (é um filme sobre mãos, olhares e gestos, sem outra metafísica que não essa).
A ausência de expressão dos personagens, das vozes dos personagens, da fragmentação dos personagens, tanto é uma expressão de ausência como a expressão de uma presença. Quem está ausente ou presente (como em todos os filmes de Bresson) é quem não pode ser nomeado e, portanto, não pode ter imagem. Quando muito, a probabilidade dela. Dieu, Probablement como, na sua penúltima obra, Bresson disse Le Diable, Probablement. Pickpocket é o filme de Bresson que mais joga com esse vazio, com esses vazios. Ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque o essencial se esgota na pura materialidade.
Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». E esta afirmação só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que Pickpocket mostra.
Ao som da música de Lully, Bresson ilumina o caminho de um homem que sabe, paulinianamente, que a lei mata e o espírito vivifica. Um homem chamado Michel que a Graça acompanha, na sua trajectória entre a liberdade e a prisão. Livre, é prisioneiro do seu corpo e do seu espírito. Preso, encontra a alma e o misteriosíssimo sentido da frase que diz depois da morte da mãe: «Acreditei em Deus durante três minutos.»
Bresson comentou que poucas pessoas poderão dizer que acreditaram em Deus durante tanto tempo. Também poucas pessoas terão compreendido, como Michel, a razão da força irracional de um destino humano. Por isso, à única mulher que o amou e que, para o amar, também teve de abandonar toda a ordem e toda a racionalidade, Michel dirá, no final, entre as grades, com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, a seguinte frase: «O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre.» E o Magnificat de Lully invade a banda sonora, imobilizando esse encontro e essa frase na sombra da iluminação total.
Não usa a palavra cinema. Prefere o termo «cinematógrafo» para sublinhar a diferença «entre os filmes correntes e a arte cinematográfica» e diz que «o cinematógrafo é a aplicação em imagens insignificantes (não significantes)».
Actores? É coisa que, para ele, não há. Se nos primeiros filmes (Les Anges du Péché, de 44; Les Dames du Bois de Boulogne, de 45; Journal d’un Curé de Campagne, de 51) ainda transigiu e ainda foi escolher à Comédie actores (e actores de teatro) para os seus personagens, a partir do opus 4 (Un Condamné à Mort s’est Echappé, de 1956) recorreu exclusivamente a homens e mulheres que não fizessem qualquer ideia do que fosse representar. Chamou-lhes «modelos» em vez de actores, e quis que modelos fossem em vez de parecerem actores. «Não se trata de representar com “simplicidade” ou de representar com “intensidade”, mas de não representar de todo.» E exigiu-lhes que falassem como se falassem sozinhos, sem expressão. «Monólogos em vez de diálogos.»
Por isso, nunca usou duas vezes o mesmo modelo. Por isso, não perdoou àqueles dos seus modelos que, traindo-o, iniciaram com ele uma carreira de actor (o caso mais célebre é o de Dominique Sanda, seu modelo em Une Femme Douce). Por isso, os seus modelos parecem todos modelar-se uns aos outros na mesma inexpressividade. Com a pintura aprendeu que não havia imagens belas mas imagens necessárias. E que, como dizia Cézanne, «à chaque touche, je risque ma vie».
Nunca se importou nada que o achassem ou chamassem reaccionário. Nunca se importou nada que cada um dos seus filmes demorasse anos a ser feito. Levou uma série de produtores à falência, tão mais exigente e gastador quanto menos se viam os seus filmes. Obcecado com os números e as sortes (ou os azares) construiu em 13 filmes um universo que não se parece com nenhum outro, e que ninguém nunca conseguiu imitar. Dissertando sobre ele, Nuno Bragança escreveu: «Cristão que também sou, sinto a que ponto essa visão (a visão de Bresson) está, para muito do que marca o tempo em que vivemos, como sopa em torno de uma mosca. Mas opto pela sopa.» Eu também.
E opto, particularmente, entre todos os seus filmes (nenhum a que não possa chamar «filme da minha vida») por Pickpocket (1959) que por aqui chamaram, com alguma imaginação, O Carteirista.
Já se disse que era «o filme mais branco da história do cinema» (só talvez Luz de Inverno de Bergman possa competir), pois é a mais ousada tentativa do seu autor para desmontar o real, através das suas aparências, ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade.
Filme sobre um pickpocket, tão misteriosamente triunfador nos seus roubos iniciais, como misteriosamente vencido no seu roubo final, tanto se pode falar dele em termos de «tratado de moral» (relações entre o roubo e a homossexualidade, relações entre o crime e a lei), como em termos de «tratado metafísico» (mais uma vez, a perene contradição dos filmes de Bresson, entre o «primado da Graça» e o «primado das Obras») ou em termos estritamente «materiais» (é um filme sobre mãos, olhares e gestos, sem outra metafísica que não essa).
A ausência de expressão dos personagens, das vozes dos personagens, da fragmentação dos personagens, tanto é uma expressão de ausência como a expressão de uma presença. Quem está ausente ou presente (como em todos os filmes de Bresson) é quem não pode ser nomeado e, portanto, não pode ter imagem. Quando muito, a probabilidade dela. Dieu, Probablement como, na sua penúltima obra, Bresson disse Le Diable, Probablement. Pickpocket é o filme de Bresson que mais joga com esse vazio, com esses vazios. Ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque o essencial se esgota na pura materialidade.
Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». E esta afirmação só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que Pickpocket mostra.
Ao som da música de Lully, Bresson ilumina o caminho de um homem que sabe, paulinianamente, que a lei mata e o espírito vivifica. Um homem chamado Michel que a Graça acompanha, na sua trajectória entre a liberdade e a prisão. Livre, é prisioneiro do seu corpo e do seu espírito. Preso, encontra a alma e o misteriosíssimo sentido da frase que diz depois da morte da mãe: «Acreditei em Deus durante três minutos.»
Bresson comentou que poucas pessoas poderão dizer que acreditaram em Deus durante tanto tempo. Também poucas pessoas terão compreendido, como Michel, a razão da força irracional de um destino humano. Por isso, à única mulher que o amou e que, para o amar, também teve de abandonar toda a ordem e toda a racionalidade, Michel dirá, no final, entre as grades, com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, a seguinte frase: «O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre.» E o Magnificat de Lully invade a banda sonora, imobilizando esse encontro e essa frase na sombra da iluminação total.
João Bénard da Costa
*Robert Bresson morreu em 1999, com 98 anos.
3 comentários:
Já tenho saudades de rever o cinema de Robert Bresson, um dos cineastas franceses que mais me marcaram na juventude (os outros foram Truffaut e Godard). Foi com ele que aprendi que para "ver cinema" é necessário aprender a educar o olhar, a perceber a cinemática das imagens para além do óbvio. Este "Pickpot" e o "Un condamné à mort s'est échappé" foram as cerejas em cima do bolo.
E, claro, é sempre um prazer extra reler o Bénard da Costa, outro homem que muito contribuíu também para eu começar a entender o que é essa coisa tão especial e por vezes tão gratificante de "saber olhar" para um écran de cinema.
O Rato Cinéfilo
Bresson, Godard e Rohmer, é o meu "trio" francês da nouvelle vague (hoje em dia também temos um punhado de cineastas franceses muito interessantes). Não posso dizer que foi com Bresson que aprendi a "ver cinema" (sim compreendo tão bem essa expressão, e há tão pouca gente a saber ver cinema), isso aconteceu com o cinema italiano (primeiramente Visconti, De Sica e Fellini, posteriormente Pasolini, Rossellini e Tornatore). O meu filme preferido de Bresson (que foi o primeiro que vi) é o Un Condamné, mas também gosto muito deste e do L'Argent. Quanto ao texto do Bénard (grande senhor), não conheço outro tão fiel ao que o filme (e o cinema de Bresson) é.
Tive de copiar este post para o meu blog!
Não resisti. Obrigado Álvaro :)
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