O abismo etéreo:
7 Women é de uma beleza hipnótica, é horrível. É belo e horrível, é uma dor aguda no estômago, um soco ideológico tremendo. Não é trágico, é outra coisa, a tragédia tem significado, consegue-se descrever. Não, é outra coisa. É morrer e voltar a nascer, é o filme mais espiritual e sagrado dos anos 60 e um traçar infinito de um pensamento que abarca todos os pensamentos, no fundo do abismo está o Céu, o fim de toda a dualidade, um Uno terreno e espiritual. O abismo etéreo.
Nem cito a gravidade que atravessa todo o filme ou a desilusão das suas personagens, na China apenas porque algo falta, something`s missing; o padre que não pregou, a freira que não viveu, a médica que não foi amada, a criada que nada viu. Não. O Cinema é o reflexo da vida e ouvi uma vez dizer que nos permite analisar as complexidades sob o véu da sua aparente simplicidade. Fora do ecrã, no pântano da realidade, não se consegue por estarem dispersas e diluídas, mas num filme, se bem feito, estão reunidas e ao descoberto, o véu desaparece. E 7 Women é dos mais belos descortinares de véus, parece levado pelo vento, naturalmente - é quando um filme não é uma sucessão de cenas e planos, mas um fenómeno inexplicável, uma força da natureza. Orgânico. Vivo.
É o mais belo e o mais sublime dos filmes e a obra de Ford é um degradé visual que se inaugura com a glória luminosa e libertadora de Young Mr. Lincoln, passa pelos jogos de luzes e sombras, os conflitos sociais e raciais, de Grapes of Wrath e The Searchers e acaba noutra glória, muito mais complexa, a deste filme. Ford é um pintor.
É conflituoso, clássico e radical. De tomada de posições, de confronto de ideologias, uma guerra aberta, de raivas libertas e raivas contidas, de rostos e enquadramentos lapidados. Num só local, que podia ser todos os locais. Cada forma, cada feitio, cada pormenor respeitado. Ford é um escultor, Ford é um arquitecto.
É de ritmos e sons, de pausas e tonalidades que ecoam pela eternidade. Em tom. Em perfeita harmonia. Ford é um músico.
Ford é de direita ou de esquerda? Aqui passa de um lado para o outro, levado pelas suas personagens, como quem dança, acompanhando os seus gestos, comportamentos e tomadas de consciência, de forma distanciada, mas sempre próximo, é a câmara, a objectiva e o visor. Serenamente. Os seus planos não descrevem, contam estórias. Ford é um coreógrafo.
E não há réstea de panfletarismo partidário em Ford, que não era um republicano que fazia westerns, mas alguém que observava e conhecia o ser humano. Pelos seus filmes dizemos que nos acha a sua família e que acha o povo a família dos seus heróis, e todos os grandes Fords descrevem isto, o dilacerar e o desfazer de uma família antes de outra, por razões nobres e de grande gravidade, nascer. O herói fordiano é alguém que se vê sem família e se designa a olhar por outra, mais numerosa, alguém que é destruído, comido vivo, mas que renasce das cinzas. Ford é um escritor.
Ford é o descritor e o constructor de sacrifícios. E é ao ver 7 Women que percebemos que filmar é o eterno sacrifício e que o abismo etéreo está apenas reservado a alguns. Mesmo na obra de Ford...
Há só uma maneira de mover a câmara, há só uma maneira de cortar, que é como quem diz “há só uma maneira de fazer Cinema”. Esta.
E fazê-lo?
Hoje, trocava todos os westerns de Ford por este filme...
por João Palhares em Cine Resort
3 comentários:
Também a mim João, também a mim ;)
Obrigado pela menção, Álvaro. E ainda bem que gostaram do filme. Tornou-se o meu preferido do Ford depois de o ver...
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