Mostrar mensagens com a etiqueta João Bénard da Costa. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta João Bénard da Costa. Mostrar todas as mensagens

5 de outubro de 2011

Viaggio in Italia (1954)
Roberto Rossellini

"Fim de Outubro ou princípio de Novembro de 1955. Eu tinha 20 anos, ainda não conhecia ninguém do grupo que um ano mais tarde formou o CCC da JUC. Também não lia os Cahiers du Cinéma, que nem de nome era dos meus ouvidos. Desde 1950 - ano da estreia de Stromboli em Portugal - que me andavam a dizer que Rossellini perdera as qualidades iniciais (essas de Roma, Città Aperta, que tanto me fizeram chorar quando eu ainda andava de calções) ao deixar-se apanhar pelas saias de Ingrid Bergman. Deus Omnipotente não perdoara aos adúlteros. O pecado só lhes tinha feito mal. Ele, já nem era neo-realista, já nem era nada. Ela, uma sombra triste do que fora.
Verdade ou consequência, nem Stromboli, aos 15 anos, nem Europa 51, aos 18 (com o Tucho) me deixaram - ai de mim! - marcas duráveis. Só muito mais tarde abri os olhinhos. Nem sei por que fui ao Eden, numa tarde de Outono, em que havia muita luz e fazia muito sol. Certamente foi mais por fidelidade a Ingrid Bergman (e talvez a George Sanders) do que a Rossellini. Mas fiquei colado à cadeira. No fim, no milagre, desatei a chorar. Os meus companheiros (melhor, as minhas companheiras) desataram a rir. Do filme e de mim. Como era possível, João? Ainda hoje me espanto como foi possível, João. Não foi a carne nem o sangue quem mo revelaram. Mas algum Deus que está no céu. Aceito que o propriamente dito.
Disse da minha justiça, à esquerda e à direita. Nem um eco. À esquerda diziam-me que era coisa de católico, nos dias mais beatos. À direita, que era coisa de neo-realista, nos dias mais estúpidos. A esquerda tinha mais razão do que a direita. Em coisas de fundo, acontece.
Demorou um ano - já disse - a encontrar gente (católica gente) que sentira o mesmo que eu. Ela levou-me a ler um número célebre dos Cahiers, seis meses anterior à minha visão, em que Jacques Rivette escrevera («Lettre sur Rossellini»): «Par l’apparition de Voyage en Italie tous les films ont soudain vieilli de dix ans» e em que Eric Rohmer dissera («La Terra du Miracle»): “Dans ce film où tout semble accessoire, tout, même les plus folles divagations de notre esprit, fait partie de l’essentiel”. Levaram-me a ler Bazin e o texto sagrado Défense de Rossellini.
Quando, em Abril de 1958, revi o filme no Jardim-Cinema, 26ª sessão do CCC, já éramos um grupo a defender a genialidade da obra. E um bonito texto do Pedro Tamen - sempre muito pedagógico e sempre a fugir dos provocadores - converteu mais incrédulos do que o próprio filme: «Depois, há um milagre que não sabemos se o foi (um paralítico que corre brandindo as muletas) e outro que, esse fim, sabemos que foi: duas pessoas descobrem-se no mais dentro, no mais fundo, fundem-se, são finalmente capazes de dizer que sim e que se amam, que sim, que sim, que se amam». Em 1958, já os Cahiers du Cinéma colocavam Viaggio in Italia no terceiro lugar da lista dos «melhores filmes da nossa vida», depois de Sunrise de Murnau e de La Règle du Jeu de Renoir.
Com o tempo, essa posição vanguardista e elitista deixou de o ser. Hoje, já ninguém se escandaliza com nada. Viaggio in Italia é pacificamente aceite entre as glórias da nossa terra (a terra do cinema) e, de cada vez que o programo, a sala esgota. Não há gato nem cão que queira ter voto na matéria que ouse sequer uma reticência. Juro pela unanimidade crítica das cinco estrelas se for reposto no Ávila. Mas quem vê caras não vê corações. A não ser que se chame Roberto Rossellini e há mais de dezoito anos que ninguém se chama assim.
Viaggio in Italia, para quem nunca o tenha visto, o que é? Como Sunrise de Murnau, como O Convento de Oliveira, como Lucky Star de Borzage ou como Os Contos da Lua Vaga de Mizoguchi, é a história da separação e da reconciliação de um casal. O casal Joyce, casal inglês de meia-idade (trinta e muitos, quarenta e poucos) bem instalado na vida, que vem a Itália vender uma propriedade que herdara de um tio chamado Homer (Joyce e Homero podem ser nomes casuais, podem não o ser). Casal são-no, porque são casados. Casal não o são, porque estão razoavelmente fartos um do outro. A viagem - rumo a Nápoles e nos arredores de Nápoles - dura sete dias (número mágico). Alex, o marido (George Sanders), namora por aqui e por ali, engata (ou é engatado) por uma pega, aborrece-se de morte. Katherine, a mulher (Ingrid Bergman) faz muito turismo: Museu Arqueológico de Nápoles, ruínas de Cuma (antro da Sibila), Templo de Apolo, Vesúvio, Pompeia, a solfatara de Pozzuoli. Recorda um poeta que a amou e morreu novo e tuberculoso, finge ciúmes do marido, farta-se com ele e dele. Ao sétimo dia, a propósito de uma discussão absurda sobre o Bentley deles, decidem divorciar-se logo que voltem à Inglaterra. Horas depois, o carro em que viajavam, muito calados, é forçado a parar porque uma procissão atravessa a estrada. Saem, cada um de sua vez, para ver o que se passa. A certa altura, a multidão desata a gritar «milagre» a propósito do tal paralítico. Na confusão, cada um deles é empurrado em direcções opostas. Katherine chama pelo marido. Quando este a consegue alcançar, abraçam-se e juram nunca mais se separar.
Nem Katherine nem Alex parecem pessoas muito interessantes. Nada lhes acontece de muito particular. Qualquer pessoa está mesmo a ver que divorciar-se é o que podem fazer de melhor. Uma procissão, o «ave» de Fátima e os dois nos braços um do outro a jurar amor eterno. Milagre da Virgem que protege o santo matrimónio? Quem nunca tinha visto e só isto ler, percebe facilmente as reacções da época.
Só que dizer isto ou não dizer nada é praticamente a mesma coisa. Não porque a história não seja isto, mas porque sob isto, ao lado disto, ou sobre isto (e nenhuma das preposições é boa) se passa tudo o que é essencial e não é traduzível em palavras.
Não vou citar nenhum exemplo dos mais célebres, como a perturbação de Katherine face aos nus masculinos do Museu de Nápoles, o passeio solitário dela ao Templo de Apolo, a «ionização» na solfatara, com o fumo e o cheiro a sufocá-la, o esqueleto visto nas catacumbas, a descoberta, durante umas escavações em Pompeia, dos corpos calcinados de um casal abraçado, há dois mil anos abraçados. Não vou falar da confusão das ruas de Nápoles ou de Capri, das mulheres grávidas que se cruzam constantemente com Katherine, das zaragatas conjugais a que assistem e que tanto chocam reservados ingleses.
Vou referir-me apenas à sequência inicial, quando, no Bentley, Katherine e Alex se dirigem para Nápoles. Primeiro, um diálogo, pedagogicamente concebido, que nos dá todas as informações úteis: quem são eles, onde se dirigem, o que vieram fazer a Itália. Depois, o marido adormece e percebemos que é a mulher quem guia. O marido acorda e propõe à mulher trocar de lugar. Em vez do corte e novo plano do carro com as novas posições, assistimos à troca toda, com toda a minúcia. No segundo minuto do filme, segunda paragem: agora é uma manada de bois que atravessa a estrada e os impede de prosseguir. Irritação de Alex, que já comentara que as estradas em Itália são um perigo. Segue-se uma bifurcação: uma seta indica Nápoles para a esquerda e Latina para a direita. O carro vira à esquerda (já sabíamos que o destino era Nápoles), mas a câmara vira-se para a direita, como se o outro caminho fosse o bom e eles o não soubessem. Pouco depois, Katherine faz uma expressão de horror: «Que é isto? Sangue?» E Alex responde, irónico, que foi só um mosquito que se esborrachou no vidro. Falam dos perigos da malária.
Aparentemente, nada se passou de particularmente interessante. Mas, nesses cinco minutos de filme, quem for capaz de ver, viu o essencial. A viagem é conduzida pela mulher, como sempre o será ao longo do filme, porque é ela quem vê quase tudo o que o marido não vê, como é ela quem o chama no final. Mas ela sem ele não existe. Por isso, ele tem de conduzir também e tudo o que lhe acontece, depois, é tão fio condutor quanto o que lhe acontece a ela. Em cada bifurcação, há sempre duas possibilidades. Seguir o que está predeterminado implica deixar em aberto o desconhecido. A qualquer plano ou ordenação sobrepõe-se a desordem e o imprevisto: bois não querem saber de Bentleys e podem parar - ou atrasar - uma viagem. Uma mancha de sangue pode não ser uma tragédia mas pode não ser tão banal como parece. Na vida não há símbolos, há sinais. A cada momento, cada sinal.
E é a acumulação de todos esses momentos e de todos esses sinais que, a cada momento e a cada sinal, vai minando aquele homem e aquela mulher que parecem fatalmente seguir numa direcção (a ruptura) e não menos fatalmente estão a seguir noutra (a redescoberta). Quando perdem o pé (o carro, a casa, a direcção, a estrada), tudo o que de vital e mortal se acumulou neles explode, tão irracional e tão racionalmente, como a fé da multidão no milagre da Virgem. E é essa explosão - essa erupção, essa ionização, se quisermos ficar ao pé dalgumas imagens do filme - que os atira um para o outro, no mesmo abraço dos cadáveres de Pompeia. Talvez que eles também - que sabemos nós? - não estivessem a fazer amor, nem mesmo se amassem. Talvez que, surpreendidos pela erupção do Vesúvio, se tivessem agarrado para não morrerem sós. Só que dois corpos juntos, juntos mesmo, dois mil anos ou dois segundos, são o milagre total. No Evangelho de Pseudo-Tomé há uma variante, mais profunda e mais certeira, da conhecida passagem dos sinópticos em que se diz que a verdadeira fé move montanhas. Em vez da passagem: «Se tiveres a verdadeira fé e disseres àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á», diz-se: «Se um homem e uma mulher viverem em verdadeira paz um com o outro e um deles disser àquela montanha move-te, a montanha mover-se-á.» Em vez da fé, a caridade. É o cerne do cinema de Rossellini.
Nem eu nem ninguém vos pode jurar que, regressados ao carro ou a casa, Alex e Katherine não recomecem as quezílias. Mas o milagre aconteceu. Não é bom que o homem ou a mulher estejam sós. Viaggio in Italia, como disse Rohmer, é um drama com três personagens. O terceiro é Deus. E em Viaggio in Italia quem O não vir não vê nada.
É só um filme? Precisamente."
João Bénard da Costa

6 de abril de 2011

O tragicismo provinciano

Coisa pueril provinciana que vai-se emoldurando na azáfama e contaminação citadina, é de chegada e de partida que a candura tanto cinematográfica (começava aqui o Novo Cinema Português) como daquele jovem sucede. A inadaptação e a rebeldia em Júlio, coisa própria da mocidade, da vivacidade da mocidade, o sangue a ferver, a vontade de vida, de singrar, do amor. Há mais do que ruptura com o cinema clássico português, há toda uma renovação quer em termos de estrutura narrativa quer cinematográfica, «na respiração fílmica, na atenção aos movimentos de câmara, à realidade plástica dos planos, aos tempos.» (Jorge Leitão Ramos, in Dicionário do Cinema Português 1962-1988, ed. Caminho, Lisboa, 1989). Os Verdes Anos vem desbravar aquilo que o cinema clássico não conseguiu, não só a temática da qual se desprende como da forma como a aborda (à nova temática), conseguindo trazer um realismo cru e claustrofóbico daquela Lisboa dos anos 60, conferindo àquela geração (neste caso a provinciana) uma asfixia e uma inadaptação àquele meio que tolhe a nova geração, «Ainda, Verdes Anos, é o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda.» (João Bénard da Costa, in Histórias do Cinema, Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa). Mas não é só o realismo que Os Verdes Anos augura, coisa trágica que lembra tanto o Rocco de Visconti e todo o neo-realismo italiano, é também um manifesto político por essa frustração e claustrofobia que aquela Lisboa (reflexo do resto do país) oferece, precariedade e falta de oportunidades, as próprias mentalidades enraizadas no costume vicioso, um grito de revolta por esse fluxo de miséria e de subdesenvolvimento que o país atravessava. É sem dúvida o “pai” do novo cinema português, «o que faz de quase todos os melhores filmes posteriores seus herdeiros.» (João Bénard da Costa, in Histórias do Cinema, Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa).

1 de fevereiro de 2011

Spellbound (1945)
Alfred Hitchcock

(…) Essa história dos filmes que não eram para a minha idade, durou até acharem que devia acabar. Julgo que até aos 15-16 anos. Lembro-me de alguns requintes. Levarem-me ao ginásio para ver um documentário sobre o Palácio Pitti e fazerem-me sair da cadeira vinte minutos depois do «filme grande» começar, porque iam também começar as coisas que não eram para a minha idade. O requinte não estava na visão do documentário (de museus sempre gostei tanto como de filmes) mas em me interromperem o prazer que estava a ter. E lembro-me de imensos filmes proibidos, com títulos portugueses mais do que sugestivos (Almas Perversas, Amar Foi a Minha Perdição, O Pecado de Cluny Brown) que eu imaginava – tanto quanto podiam chegar os meus conhecimentos – com imagens não muito diversas dos actuais Coxas Quentes, Orgias Escaldantes ou Bombeiros do Sexo. Desde essa altura, amei esses filmes tão antes de os conhecer, respectivamente, por Scarlet Street, Leave Her to Heaven e Cluny Brown e saber que eram de Fritz Lang, John M. Stahl e Ernst Lubitsch. Porque será que os pais nunca se enganam?
Talvez por isso, ir ao cinema – sobretudo quando ia sozinho, o que começou a acontecer cedo – teve sempre foros de coisa perigosa, ou até mesmo pecaminosa. Depois, tudo se fazia escuro e começava a magia. O spell do tal filme de Hitchcock, disparatadamente traduzido, mas certeiramente conduzido à «casa encantada». Que, no caso, era não só a casa do Dr. Edwards (clínica para doentes mentais e ninfomaníacas) mas o décor pintado por Dali para o primeiro sonho à Freud do cinema: era nesse sonho que se ficava a perceber – como muito, muito mais tarde percebi – que o doente mental não era o médico mau Leo G. Carrol, mas o médico bom Mikhail Chekhov (que, de resto, tinha a quem sair, pois era sobrinho de Tchekov), e a ninfomaníaca não era a rapariga má Rhonda Fleming, mas a rapariga boa Ingrid Bergman. Sem ofensa para ninguém, antes pelo contrário, pois doentes desses foram sempre os que me curaram melhor.
E deve ser essa a razão – uma das razões – para, logo que me falam em filmes da minha vida, me lembrar de Spellbound. E a música de Miklos Rozsa para esse filme ainda hoje é a que mais me diz a zonas sombrias. Por isso, comecei estas crónicas sob o signo desse Selznick-Hitchcock Film e deixei-me ir. (…)

João Bénard da Costa


29 de outubro de 2010

Pickpocket (1959)

…Bresson nunca facilitou a tarefa. Este grande senhor, hoje com 87 anos* (nasceu em 1901 e não em 1907 como dizem quase todas as fontes), sempre entendeu que «o cinema não é um espectáculo, é uma escrita» e escreveu nos seus 13 filmes uma complicada história teológica, em torno de questões tão pouco populares como a Predestinação, o Acaso ou a Graça, na dependência de um catolicismo austero, a que por vezes se tem chamado jansenista.
Não usa a palavra cinema. Prefere o termo «cinematógrafo» para sublinhar a diferença «entre os filmes correntes e a arte cinematográfica» e diz que «o cinematógrafo é a aplicação em imagens insignificantes (não significantes)».
Actores? É coisa que, para ele, não há. Se nos primeiros filmes (Les Anges du Péché, de 44; Les Dames du Bois de Boulogne, de 45; Journal d’un Curé de Campagne, de 51) ainda transigiu e ainda foi escolher à Comédie actores (e actores de teatro) para os seus personagens, a partir do opus 4 (Un Condamné à Mort s’est Echappé, de 1956) recorreu exclusivamente a homens e mulheres que não fizessem qualquer ideia do que fosse representar. Chamou-lhes «modelos» em vez de actores, e quis que modelos fossem em vez de parecerem actores. «Não se trata de representar com “simplicidade” ou de representar com “intensidade”, mas de não representar de todo.» E exigiu-lhes que falassem como se falassem sozinhos, sem expressão. «Monólogos em vez de diálogos.»
Por isso, nunca usou duas vezes o mesmo modelo. Por isso, não perdoou àqueles dos seus modelos que, traindo-o, iniciaram com ele uma carreira de actor (o caso mais célebre é o de Dominique Sanda, seu modelo em Une Femme Douce). Por isso, os seus modelos parecem todos modelar-se uns aos outros na mesma inexpressividade. Com a pintura aprendeu que não havia imagens belas mas imagens necessárias. E que, como dizia Cézanne, «à chaque touche, je risque ma vie».
Nunca se importou nada que o achassem ou chamassem reaccionário. Nunca se importou nada que cada um dos seus filmes demorasse anos a ser feito. Levou uma série de produtores à falência, tão mais exigente e gastador quanto menos se viam os seus filmes. Obcecado com os números e as sortes (ou os azares) construiu em 13 filmes um universo que não se parece com nenhum outro, e que ninguém nunca conseguiu imitar. Dissertando sobre ele, Nuno Bragança escreveu: «Cristão que também sou, sinto a que ponto essa visão (a visão de Bresson) está, para muito do que marca o tempo em que vivemos, como sopa em torno de uma mosca. Mas opto pela sopa.» Eu também.
E opto, particularmente, entre todos os seus filmes (nenhum a que não possa chamar «filme da minha vida») por Pickpocket (1959) que por aqui chamaram, com alguma imaginação, O Carteirista.
Já se disse que era «o filme mais branco da história do cinema» (só talvez Luz de Inverno de Bergman possa competir), pois é a mais ousada tentativa do seu autor para desmontar o real, através das suas aparências, ou, se se preferir, as aparências através da sua realidade.
Filme sobre um pickpocket, tão misteriosamente triunfador nos seus roubos iniciais, como misteriosamente vencido no seu roubo final, tanto se pode falar dele em termos de «tratado de moral» (relações entre o roubo e a homossexualidade, relações entre o crime e a lei), como em termos de «tratado metafísico» (mais uma vez, a perene contradição dos filmes de Bresson, entre o «primado da Graça» e o «primado das Obras») ou em termos estritamente «materiais» (é um filme sobre mãos, olhares e gestos, sem outra metafísica que não essa).
A ausência de expressão dos personagens, das vozes dos personagens, da fragmentação dos personagens, tanto é uma expressão de ausência como a expressão de uma presença. Quem está ausente ou presente (como em todos os filmes de Bresson) é quem não pode ser nomeado e, portanto, não pode ter imagem. Quando muito, a probabilidade dela. Dieu, Probablement como, na sua penúltima obra, Bresson disse Le Diable, Probablement. Pickpocket é o filme de Bresson que mais joga com esse vazio, com esses vazios. Ou, melhor dito, em que esses vazios podem ser pressentidos como o essencial, apenas porque o essencial se esgota na pura materialidade.
Nunca, talvez, como nesta obra, Bresson tenha ido tão longe na defesa da sua ideia de que «o cinematógrafo é a arte de não mostrar nada». E esta afirmação só pode parecer paradoxal a quem não tenha sido capaz de ver o que é esse nada que Pickpocket mostra.
Ao som da música de Lully, Bresson ilumina o caminho de um homem que sabe, paulinianamente, que a lei mata e o espírito vivifica. Um homem chamado Michel que a Graça acompanha, na sua trajectória entre a liberdade e a prisão. Livre, é prisioneiro do seu corpo e do seu espírito. Preso, encontra a alma e o misteriosíssimo sentido da frase que diz depois da morte da mãe: «Acreditei em Deus durante três minutos.»
Bresson comentou que poucas pessoas poderão dizer que acreditaram em Deus durante tanto tempo. Também poucas pessoas terão compreendido, como Michel, a razão da força irracional de um destino humano. Por isso, à única mulher que o amou e que, para o amar, também teve de abandonar toda a ordem e toda a racionalidade, Michel dirá, no final, entre as grades, com o inconfundível acento neutro dos personagens bressonianos, a seguinte frase: «O Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre.» E o Magnificat de Lully invade a banda sonora, imobilizando esse encontro e essa frase na sombra da iluminação total.

João Bénard da Costa


*Robert Bresson morreu em 1999, com 98 anos.


9 de maio de 2010

O Sangue (1989)












Gostava de escrever algo sobre esta relíquia do cinema nacional, algo que conseguisse demonstrar o meu apreço (leia-se admiração, adoração) por aquele que é talvez o melhor filme português de todos os tempos (sem que isso seja ingrato para os outros “grandes” do nosso cinema). E, de facto, d’O Sangue de Pedro Costa muito se pode dizer, mas já quase tudo foi dito, principalmente por Bénard.

20 de fevereiro de 2010

Johnny Guitar (1954)














E como este era o filme da sua vida...

Era inevitável. Tinha de ser. Se escrevo sobre «os filmes da minha vida», como podia ficar de fora «o filme da minha vida», my Johnny Guitar? Só mesmo quem não me conheça nem mais gordo nem mais magro, podia supor que um dia destes - mais cedo ou mais tarde - o Johnny Guitar não enchia esta página.
Faz parte das minhas lendas - como essa de dizer-se que eu sabia o Larousse de cor aos sete anos - atribuírem-me centenas de visões do Johnny Guitar. Num caso como noutro há exagero. Só vi o Johnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o Johnny Guitar de cor. Cada vez é uma nova vez.
Como género, é classificado entre os westerns. Estreou-se na América, a 27 de Maio de 1954, sob o signo de Gémeos. É um filme de Nicholas Ray, que tinha 42 anos, 9 meses e 20 dias na noite de estreia. Na filmografia do autor, iniciada em 1948, é o «opus 9». Depois dela assinou mais 13 longas-metragens, até morrer, «lightning over water», num filme de Wim Wenders, em 1979.
Johnny Guitar foi feito para uma pequena companhia - a Republic - e custou pequeno dinheiro. A crítica americana tratou-o com os pés («the silliest film of the year»), mas o público, sem que ninguém conseguisse explicar por que, encheu as salas meses a fio. Herbert J. Yates, produtor da obra, abarrotou os bolsos. Quando o filme chegou à Europa - em 1955 - as posições críticas extremaram-se. Alguns - poucos - apanharam o micróbio a que há mais de trinta anos dou casa e pucarinho. A maioria achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente analfabeta podia gostar. Ou, então, cegos, surdos, mudos, paralíticos e aleijadinhos dos cornos. Eu e mais alguns passamos vexames, quando a polémica chegou a Portugal. O nosso delírio provocava. Quem provoca maiorias ou o senso comum acaba sempre por levar mais do que dá.
Só que, no caso de Johnny Guitar, vivi o bastante para ver o mundo dar as tais voltas. Quando, em 1981, programei o filme para Gulbenkian, num ciclo de cinema americano dos anos 50, a enchente foi tal que teve de haver bis. Depois, de cada vez que o filme passa na Cinemateca (e tenho-o programado com razoável frequência), não cabe um alfinete. Uns milhares de portugueses vão hoje por Nick Ray. Aconteceu o mesmo por toda a parte. «La Belle et la Bête du western», como à época escreveu Truffaut, transformou-se na própria definição de cult movie.
Nick Ray, que também viveu o suficiente para assistir a esta viragem, adiantou um dia algumas razões para explicar este fenómeno: 1) foi a primeira vez, num western, que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; 2) é um filme cheio de luz e calor. Opunha-se ao estilo do «cinema negro» que predominava nessa época; 3) é um filme em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitectónica; 4) foi o primeiro filme a utilizar a cor em toda a sua potencialidade; 5) utilizou o décor e a paisagem para potencializar ao máximo a imagem.
Não serei eu quem o desminta, mas muitas dessas coisas foram à época das que mais serviram para atacar a obra. Odiaram as mulheres (Joan Crawford e Mercedes McCambridge), acharam a cor (um processo chamado trucolor) de insuportável mau gosto, berrante e exageradíssima. Por mim, acho que não vale a pena tentar explicar. De Johnny Guitar só sou capaz de falar delirando. Deus e tantos - amigos e inimigos - sabem como é quando me largam...
Disse-se, por exemplo, que era o filme com mais belo diálogo da história do cinema (eu, pelo menos, disse-o). Alguns convenceram-se por esse lado e recordo programas de cineclubes, ou artigos de revistas, que publicaram aquele famoso encadeado de perguntas e respostas entre Guitar (Sterling Hayden) e Vienna (Joan Crawford) quando começam a evocar o passado, na noite da chegada de Johnny ao saloon de Vienna. É quando ele lhe pede para ela dizer «something nice», quando ele lhe pede para ela lhe mentir. «Tell me you love me like I love you.» Mas, reduzido a escrito a seco, o diálogo é constrangedoramente banal. Se as pessoas ficam com tal memória dele é pelo concerto de vozes que se ouvem no filme - raspante a de Crawford, átona a de Hayden - e pela associação delas à fabulosa partitura de Victor Young. É pelo modo como a câmara e os corpos se movem durante, é pelo contraste dos encarnados, dos verdes e dos castanhos. É pela prodigiosa presença daquele décor gruta, alucinantemente barroco, simultaneamente mausoléu, bordel e casa de feitiços.
Muitas vezes ouvi a banda sonora de Johnny Guitar sem ver as imagens. Tudo bem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa. Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Johnny Guitar é também uma ópera, não o é menos que está dependente daquela única e irredutível mise en scène.
Rever as imagens (ou os sons) do Johnny Guitar é rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez é ainda de rever que se trata. Porque todas as personagens - os doze actores principais, cada um deles essencial - não fazem outra coisa.
Quando o filme começa - na tarde em que mataram o irmão de Emma (Mercedes McCambridge) - Johnny Logan, que se irá se chamar Johnny Guitar, volta para o pé de Vienna, de quem se separou há cinco anos. Por que se separaram? Por que o mandou chamar ela? Por que volta ele? Nunca, no filme, nos são dadas respostas a tais perguntas. Também nunca sabemos o que se passou com cada um deles nesses cinco anos em que não se viram, entre uma tarde no Hotel Aurora (desse hotel, sim, se fala no filme) e a tarde em que Johnny regressa. Mas, nesses cinco anos, se fabricou o sentimento dominante de cada um dos protagonistas: a amargura de Vienna, o cansaço de Johnny, o ódio de Emma, ou o amor por Vienna daquele miúdo loiro que acaba com o pescoço rasgado, no cavalo e na forca, a pedir que cumpram a promessa que lhe tinham feito de o salvar.
Johnny Guitar é um filme construído em flash-back sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash que não pode come back? Ou será que é tudo a mesma coisa?
Não vou continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. É a Imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontrar-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra-se a resposta certa para o que se está a viver.
Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: «Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin.» No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projeccionistas: «Keep the film spinning, Ed. I like to see it spin.» Tanto, tanto.


João Bénard da Costa


13 de fevereiro de 2010

Splendor in the Grass (1961)

«Eu sei que Deannie Loomis não existe / mas entre as mais essa mulher caminha / e a sua evolução segue uma linha / que à imaginação pura resiste.»
Começa assim o soneto intitulado «Esplendor na Relva», que Ruy Belo inseriu em Homem de Palavra[s]. Deannie Loomis (aliás Wilma Deannie Loomis) é o nome da protagonista interpretada pela fabulosa Natalie Wood. O pretexto (em sentido literal) é o filme de Elia Kazan Splendor in the Grass (1961), com argumento de William Inge.
Hoje, o filme ganhou ressonâncias míticas, associado aos idos de 60 e aos Maios de tal década. Na altura, não as teve e foi mesmo, da América a Portugal, implacavelmente zurzido pela crítica que o achou piegas e cabotino. O público também não ligou peva. Mas para alguns – poucos, e certamente não felizes – foi paixão tão devastadora como a que, no filme, os adolescentes Deannie Loomis e Bud Stamper (Warren Beatty) tiveram um pelo outro. Ruy Belo foi desses. Aliás, não certamente por acaso, foi ele o único poeta que conheço a cantar as duas mulheres mais intensas dos late fifties e dos early sixties: Marilyn Monroe (esse assombroso poema chamado «Na Morte de Marilyn», que vem no Transporte no Tempo e em que nos pede para «em vez de Marilyn dizer mulher») – e Natalie Wood.
Eu sei que Ruy Belo não cantou Natalie Wood mas Deannie Loomis. Mas também sei que Natalie Wood «não existe /mas entre as mais», etc. E há nesse verso um prodígio de adequação poética.
É quando se diz que «a sua evolução segue uma linha /que à imaginação pura resiste». Resiste à «imaginação pura» (no sentido de «pura imaginação») ou resiste, «pura», à imaginação? Ou seja, o adjectivo «pura» refere-se à imaginação ou a Deannie Loomis? Ou – pode ser também – à «linha que resiste»? Nestas três perguntas está o cerne de Deannie Loomis, de Natalie Wood e de Splendor in the Grass. São mulheres e filme da nossa imaginação? São mulheres e filme que resistem à nossa imaginação? Ou são mulheres e filme que resistem a uma linha evolutiva que só na nossa imaginação existe? Não sei, como provavelmente Ruy Belo não saberia, mas, como também ele escreveu (na «explicação preliminar» à 2ª edição do livro): «Ninguém no futuro nos perdoará não termos sabido ver esse verbo que tão importante era já para os gregos.» E, em Splendor in the Grass, tudo está no ver, que traz a história dos meninos e moços de Kansas – meninos e moços dos anos 20, de antes da Depressão – à dimensão das mais belas histórias de amor e de morte jamais contadas.
Sirvo-me do exemplo mais conhecido, também ele poético, e que dá o título ao filme. No liceu de Natalie Wood, onde ela entrava sempre com três livros apertados ao peito, um deles de capa azul, a aula de literatura, nesse dia, não era sobre Os Cavaleiros da Távola Redonda mas sobre Wordsworth e a «Ode of Intimation to Immortality». Deannie/Natalie chegava de vestido grenat muito escuro, gola de rendas. Todas as colegas sabiam – e ela também, embora ninguém lho tivesse dito – que Bud/Warren, incapaz de separar por mais tempo o desejo e o amor, tinha enganado, na véspera à noite, a fome do corpo dela, no corpo de Juanita, única da turma que não se ficava pelos beijos. Nada seria mais, para eles, como antes fora. Como também se diz no filme (noutro contexto), Deannie trazia, debaixo do vestido, o primeiro golpe na sua própria carne.
E é quando todo o mundo vacila à roda dela que a professora a interpela para lhe perguntar o que é que o poeta quis dizer com os versos famosos: «No, nothing can bring back the hour / the splendor in the grass, the glory in the flower.» Para a estúpida e pedagógica pergunta não há resposta, ou a esse nível só há a que Natalie Wood comoventemente tenta articular. Mas não é nada disso que o poeta quis dizer.
O que conta, o que o poeta quis dizer, é o que Natalie só naquela altura sente e sabe, ou pressente e entrevê. Por isso, o que conta e o que o poeta quis dizer é o espantoso traveling que arranca Deannie do lugar e a põe diante da professora atónita, depois daquele outro em que sai a correr da aula e nos atira com a porta na cara e, por fim, esse plano em que a vemos, sozinha, na profundidade de campo do corredor do liceu, até ir parar à enfermaria. Nesse minuto de cinema, sabemos, para além das palavras, que «that radiance that was once so bright / Is now forever taken from my sight». Irradiância que, no filme, foi entre o plano inicial (Deannie e Bud a namorar nas cataratas, e ela com tanto medo de não aguentar mais) e essa sequência, também nas cataratas, em que Bud fez com Juanita o que não fez com ela e de que essas cataratas são a mais poderosa das metáforas.
O «esplendor na relva» é o que vimos até à aula: são os planos em que se deita de bruços na cama (Warren Beatty deita-se da mesma maneira); é o búzio encostado ao ouvido; são os ursos de peluche coexistindo com o retrato dele; é o dia em que entrou no liceu ao lado dele, tão orgulhosa, de blusa amarela e saia branca; é o plano do duche dos rapazes; é a noite de chuva no carro amarelo e Deannie a dizer a Bud que ficará para sempre à espera dele; é uma saia cor-de-rosa que funde em negro; é, sobretudo, a estarrecedora sequência em que Bud a obriga a ajoelhar-se-lhe aos pés e ela desata a chorar. Aflitíssimo, Bud diz-lhe que era uma brincadeira. E ela a responder: «Não posso brincar com estas coisas. Eu era capaz de fazer tudo o que tu me pedisses. Tudo. Juro que era.»
Mas é depois da sequência da aula que o filme atinge o máximo de beleza e tensão, desde longo período em que Deannie se isola até à crise que a leva ao manicómio. Natalie Wood começa por cortar os cabelos ao espelho (iniciaticamente) e, depois, veste-se de encarnadíssimo («bandelette» encarnada, colar encarnado) para se oferecer a Bud na sequência da festa, para ser recusada por Bud e, depois, correr pelos rails até às cataratas (terceira e última presença delas no filme) e mergulhar nas águas, onde até a morte lhe frustram.
Mas nem Wordsworth nem Kazan terminam no desespero ou nesse desespero. Após os versos que dão título ao filme, Wordsworth diz: «We will grieve not, rather find / strenght in what remains behind.»
Não estou nada certo que seja «força» o que Natalie Wood encontrou na relva da clínica, entre velhas catalépticas e enfermeiras de olhar estranho. Não estou nada certo que seja «força» o que Warren Beatty encontrou na universidade para onde o mandaram, ou na noite de Nova Iorque em que o pai lhe pagou uma «rapariga parecida com Deannie». Mas «o que ficou para trás», isso, introduz-se a cada plano do lento desmoronar deles, das famílias deles, da América da crise de 29, de um mundo com tais valores.
Elia Kazan disse preferir no filme a sequência em que Deannie regressa à casa paterna, ao que dizem «curada», e conversa com a mãe que lhe diz que tudo o que fez foi para bem dela. Já está noiva do «rapaz de Cincinatti», que conheceu no hospital e Bud já está casado com Angelina, que não tinha entrado na história e até já tem um bebé. Deannie vai visitá-los, com as amigas. Não há uma palavra sobre o passado e há só o passado. Depois do «esplendor na relva», Bud fica com as capoeiras e ela com um companheiro das trevas. «Como numa tragédia grega: sabemos o que vai acontecer e só podemos ver o que acontece.»
Estas palavras são de Kazan. Mas esta tragédia americana não acaba em mortes violentas. Só na morte que cada um de nós traz dentro de nós, feita de tudo «what remains behind». «We will grieve not» e, por isso mesmo, a nossa dor é muito maior. De Deannie Loomis e de Bud Stamper me despeço com outro poema de Ruy Belo: «Mas agora que cantei da tristeza / não observo já os mais leves traços / e a minha maneira de me matar / é deixar cair ambos os braços.» É a isto que se chama «intimação à imortalidade»?


João Bénard da Costa


4 de dezembro de 2009

Senso (1954)
Luchino Visconti

Afinidades entre o cinema e a ópera – duas artes do tempo, duas artes «parasitárias», duas «artes de acréscimo», ou as duas artes que mais tendem para a «obra de arte total», sonhada por Wagner – têm sido pressentidas, notadas ou sublinhadas por muitos e desde há muito.
Ultimamente, tem-se generalizado outra e mais equívoca forma de aproximação. Quem fala da «morte do cinema» terá tanta razão ou tão pouca como quem fala da «morte da ópera». É verdade que, no caso desta última, nada de radicalmente novo aconteceu desde a estreia de Capriccio de Richard Strauss em 1942 ou, magnanimamente, desde a de The Turn of the Screw de Benjamin Britten, em 1954. Mas também é verdade que nunca, como hoje, tão vastas audiências viram e ouviram ópera e, mesmo por um balúrdio, é difícil conseguir um lugar para as temporadas dos principais teatros líricos do mundo ou para os grandes festivais. Nunca a ópera foi tão cara, nunca se pagou tanto aos seus intérpretes e nunca as lotações estiveram tão esgotadas. Normalmente – com excepções que apenas confirmam a regra – para se escutar e olhar um reportório escrito há mais de cem anos.
Há quem diga que o mesmo está a acontecer – ou vai acontecer – ao cinema. Talvez este nunca mais tenha os seus Verdi ou Wagner, talvez o lote de novos grandes filmes seja escasso, mas, num futuro não muito distante, as salas encher-se-ão para rever periodicamente o que foi realizado na idade heróica dele.
A hipótese parece-me aventurosa e pouco fundada, mas o simples facto de ser ponderada demonstra mais uma das analogias entre os dois «reinos»: quem o diz reconhece a ambos – cinema e ópera – uma aproximável localização em paragens limiares e liminares, onde partilham a luz e as sombras, a celebração da vida e a súplica da morte, a encenação da nostalgia e o apelo a uma recôndita harmonia.
Apesar disto – ou por causa disto –, de cada vez que o cinema tomou a ópera como texto, os resultados não foram brilhantes. Por um lado, são raríssimos os exemplos de óperas escritas propositadamente para o cinema. Que eu saiba há apenas três. The Robber’s Symphony, ópera e realização do alemão Friedrich Feher em Inglaterra, 1936; Give Us This Night, ópera do alemão Erich Wolfgang Korngold e realização do americano Alexander Hall, em Hollywood, 1944; e Os Canibais, realização e ópera dos portugueses Manoel de Oliveira e João Paes, em Portugal, 1988. Por outro lado, são igualmente raríssimos os exemplos conseguidos de transposição para o cinema de uma ópera. Julgo que somente Die Verkaufte Braut (A Noiva Vendida, de Max Ophuls, 1932), The Tales of Hoffman (Powell e Pressburger, 1951), Bluebeard’s Castle (Michael Powell, 1964), Trollflöjten (A Flauta Mágica, de Ingmar Bergman, 1974), Moses und Aaron (Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, 1974) ou Parsifal (Hans-Jürgen Syberberg, 1982) merecem ser retidas como excepção.
Mas o filme-ópera, a ópera feita cinema ou o cinema feito ópera, não é nenhuma das obras citadas. É o Senso de Luchino Visconti (1954). Por isso – sobretudo, por isso –, é um dos filmes da minha vida.
Na ópera (Teatro La Fenice, de Veneza) começa o filme, situado na Primavera e no Verão de 1866, durante os últimos meses de ocupação austríaca do Veneto, pouco antes do Risorgimento lá chegar. Estamos no palco e ouve-se e vê-se o final do acto III de Il Trovatore de Verdi.
Ainda corre o genérico, quando Leonora e Manrico, na varanda de Castellor, cantam «l’onde de’ suoni mistici», «gioie di casto amor», primeiro sinal para as paixões paroxísticas que vão explodir durante o filme. Pouco depois – sempre no genérico – Ruiz vem avisar Manrico de que se preparam para lhe queimar a mãe. Este arranca-se dos braços de Leonora e vem até à boca da cena cantar o celebérrimo «Di quella pira». Precisamente nesse momento, a câmara, até aí fixa sobre o palco da ópera, acompanha-o no seu movimento e, do ponto de vista dele, descobre-nos o teatro, da plateia à geral, em amplos movimentos concêntricos. São eles que, no fim do acto e coincidindo com os aplausos, conduzem essa representação a outra representação: a manifestação política das galerias contra o ocupante austríaco.
Ópera só voltará a aparecer em Senso alguns minutos depois, quando, acalmados os ânimos e presos alguns manifestantes, começa o acto IV. Durante esse intervalo, conhecemos os protagonistas: a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) e o seu velho marido (Heinz Moog); o marquês Roberto Ussoni (Massimo Girotti), primo da condessa, seu platónico protegido e chefe dos patriotas italianos (por ele e contra o marido, escolhera a condessa o abraço revolucionário); o jovem e belo tenente Franz Mahler (Farley Granger) que insulta os italianos, se recusa cobardemente a aceitar o repto de Ussoni para um duelo e, depois, o denuncia à polícia.
Quando começa o acto IV de Il Trovatore, Livia Serpieri chama o tenente ao seu camarote, para o tentar convencer a deixar Roberto em paz. Mas, durante o breve diálogo com o oficial «de quem falavam todas as senhoras de Veneza», estabeleceu-se entre eles outra espécie de corrente. No palco, lá muito, muito ao fundo, ao pé da torre onde Manrico está preso, Leonora, disfarçada, canta que «In quest’ oscura notte ravvolta / Presso a te son io. E tu nol sai!». Nem nós, nem os protagonistas do filme lhe damos muita atenção. O primeiro plano já pertence a Livia e Franz. É para nós e para eles que uma «oscura notte ravvolta» vai começar.
Nunca mais se ouve ópera no filme. Mas a ópera, o drama per musica, vai começar quando Livia abandona o teatro e, sobretudo, quando volta a encontrar o tenente, a um canto da Piazza di San Marco, onde fora despedir-se de primo, condenado a um ano de exílio. E quando Franz Mahler se oferece para a acompanhar pelas ruas de Veneza (oferta recusada, recusa não aceite) principia a ouvir-se a verdadeira música desta ópera: a Sétima Sinfonia de Bruckner (o adagio e o scherzo). E começam os «duetos», de Franz e Livia, ou as «árias» de cada um deles. Não são cantadas. Mas não há termos mais adequados para o que murmuram («tu parli talmente piano», diz três vezes Franz a Livia) ou para o que gritam (os uivos de Livia, no final, clamando por Franz, depois de o ter mandado para o pelotão de fuzilamento, em Verona). E sempre o que os personagens dizem em-cantado é sustentado a Bruckner, e sempre as vozes são tão inseparáveis dessa música como na ópera o são. Depois de se ter visto Senso, nunca mais se pode ouvir a Sétima de Bruckner sem «sentir» que lhe falta essa dimensão de vozes. Depois de se ter visto Senso, é impossível pensar nas suas imagens sem «ouvir» Bruckner.
Por isso, e num dos mais curiosos paradoxos a que a história da relação cinema-ópera deu lugar, a descendência de Senso não é cinematográfica, mas operática. Se se quiser pensar numa posteridade para este filme, ela não está em nenhum outro (nem sequer em Morte a Venezia, onde Visconti tentou com a Quinta Sinfonia de Mahler um efeito semelhante e muito mais célebre), mas nas encenações de 1955 e 1956 com que o mesmo Visconti revolucionou todos os caminhos da encenação operática neste século. A espantosa criação de Alida Valli, no papel da condessa Livia Serpieri, só teve sequência nas da Mulher para quem Visconti fez essas encenações: Maria Callas. Em Senso, a voz e a imagem de Alida Valli preparam os caminhos para a voz e para a imagem de Callas.
As ruas de Veneza (quem nunca viu Senso nunca viu Veneza), os celeiros de Lonedo (quem nunca viu Senso nunca viu Palladio), as praças de Verona (quem nunca viu Senso nunca viu Sanmicheli) foram, em 1954, os palcos excessivos, exacerbados e exorbitados para a mais fantomática presença da mais fantomática das vozes.

João Bénard da Costa

31 de agosto de 2009

How Green Was My Valley (1941)

Um filme de John Ford










“(…) À época, pareceu viragem de 180° que o «revoltado» Ford das Vinhas da Ira (que não chegou a ser título português de The Grapes of Wrath porque a censura se encarregou de o proibir) aparecesse em How Green Was My Valley a defender os valores menos associados à revolta: Deus, Pátria e Família. É neste filme que Donald Crisp chama à greve «socialist nonsense», recusando-se a aderir a ela e tentando proibir os filhos de o fazer. A discussão azeda em torno da velha mesa patriarcal. E o Pai proíbe que ela continue. Quem quiser coisas dessas não tem lugar naquela casa. E é então que, um a um, os cinco filhos mais velhos se levantam e saem. Fica só o mais novo – Roddy McDowall –, criança ainda, e fica um enorme silêncio perante aquele primeiro «assassinato do pai». Depois, o miúdo tosse e, sem o olhar, Donald Crisp diz muito devagar: «Yes, my son, I know you are there.»
(…) Desde o início, o filme é inscrito numa soberana harmonia entre o olhar e o olhado, entre o dito e o visto. Recorrendo à voz off de uma criança (como em tantos outros filmes dos forties) a magia começa quando o narrador começa a evocar a vida que se vivia cinquenta anos antes. E sobre as imagens da única rapariga da família – Maureen O’Hara – e do pai com a mão pousada sobre o ombro do filho (imagem que voltará com outras, no final, num efeito de recorrência tão típico de Ford) ouvimos os cânticos do País de Gales e ouvimos o miúdo dizer que «cantar está para o meu povo, como ver está para os olhos».
Depois, essa tão grande nostalgia que todo o filme «respira» é dada em breves planos do quotidiano (o dinheiro que os filhos ganham a cair no avental da mãe, os banhos, as refeições, a rapariga crescida no meio de homens sem falsos pudores). Nunca, talvez, uma figura de «passado indefinido» tenha sido tão poderosamente criada em cinema. Tudo o que vemos no presente ao passado pertence, tudo o que sucede é já efémero e perecível. Dantes (um dantes anterior ao próprio filme) fora a imobilidade do vale. Há 50 anos, tudo tinha começado a mudar e Roddy McDowall é a última testemunha dessa transição fatal e letal. Como diria Augustina, há coisas que fazem tanta pena. Todo o filme está nessa pena, nesse espaço «entre».
Ao princípio, é o primeiro casamento. Bronwen (Anna Lee), a tão bela Bronwen, vem para casar com um dos filhos do vale. E o miúdo diz-nos que imediatamente se apaixonou por ela. It’s perhaps foolish a child being in love, mas aconteceu. E esse casamento – sem que ninguém o saiba – é o último «momento verde» da vida da família, com a portentosa festa e a portentosa alegria.
(…) Quem disser que este filme é reaccionário é porque nada sabe do sagrado. Filmado com a luz de Dreyer, em torno da mesma linha fundamental (as verticais) How Green Was My Valley é a obra que mais comoventemente mostrou, em acções concretas e planos americanos, sentimentos tão simples – ou tão complexos – como a dignidade, a liberdade e a frontalidade.
Nunca deixarei de me espantar com olhar tão limpo e tão límpido. Como Roddy McDowall diz do pai, nenhum filme me existe na memória tão real como na vida, amando e amado sempre.
E não há filme que me faça mais saudades.”


João Bénard da Costa

21 de maio de 2009

Morreu João Bénard da Costa

João Bénard da Costa, director da Cinemateca Portuguesa desde 1980, morreu hoje aos 74 anos. Pedro Mexia, sub-director da Cinemateca e que, depois de Bénard da Costa se submeter a uma operação no final do ano passado, ficou com o cargo de director interino da Cinemateca, veio hoje ao Público, jornal onde participa como cronista, confirmar a morte do director.
A morte de Bénard da Costa vem, sem sombra de dúvida, deixar um vazio enorme no cinema português e na sua divulgação. Hoje é um dia negro para o cinema nacional.