30 de julho de 2010

Gertrud (1964)




















O amor da mulher e o trabalho do homem são inimigos desde o começo.

De Ordet a Gertrud vão nove anos de Dreyer sem filmar. Nove anos que o cineasta dinamarquês levaria para filmar aquela que seria a sua derradeira obra. Gertrud não é Ordet (porque Ordet é um dos mais belos filmes do mundo, a obra maior de Dreyer), mas é certamente um grande filme. De mestre.

Em Gertrud, Dreyer fala do amor (sobretudo o não correspondido e o “perdido”) e da solidão como subterfúgio a essa ausência do amor. Há, estranhamente, uma desmesurada teatralidade em Gertrud (como já havia em Ordet, embora sem essa peculiaridade [os personagens raramente se olham] e exagero). Talvez por isso Gertrud não alcance o que Ordet alcançou, a perfeição. Os filmes de Dreyer são filmes sofríveis, passagens de dor e de palavras sobre a vida. Gertrud é mais um desses ritos do cinema existencialista e expressivo de Dreyer. E a Dreyer reconheça-se-lhe sempre a habilidade de aproximar a câmara no momento certo na procura dessa expressividade do actor (lá está a teatralidade) nos momentos de grande tensão (ou sofrimento/angústia).

Gertrud é um filme negro, obscuro. Filme de sombras e de espaços. Filme de planos longos e morosos. Filme de assombrosos movimentos de câmara e de diálogos. E a forma exímia como Dreyer usa as sombras e a luz a isso anunciam, a essa obscuridade da solidão e da morte do amor. Porque é o que Dreyer “pinta” em Gertrud, a morte do amor. Para Gertrud há uma incompatibilidade entre o amor e o trabalho, ideia formada por Gabriel que ceifou esse amor entre os dois. E o fim desse amor entre Gertrud e Gabriel gera para ela o fim de qualquer amor (excepto o desejo carnal). Mas Erland ressuscita em Gertrud o amor, cria nela a esperança de que pode voltar a amar, de que pode ser feliz. O resto…

Gertrud extravasa a descrença no amor, ou melhor, Dreyer reclama o amor em detrimento do trabalho, diz que o homem troca um pelo outro. Sei lá. Gertrud é orgulhosa, idealista, prefere nunca mais amar do que continuar com Gustav (o marido, quem ela realmente nunca amou). Falhada a relação extra-conjugal com Erland, ela prefere a solidão, o isolamento. E por isso a morte do amor. Porque ao Gertrud colocar o amor acima de tudo, acima de qualquer trabalho de um homem, ao idealizar tal coisa Gertrud fala da morte do amor. Porque tal não é possível. Porque o amor não “enche barriga”. Gertrud é uma obra ambígua. Porque reclama o amor mas ao mesmo tempo traz a traição, a mentira. Traz a infidelidade como resultado dessa morte do amor mas, é essa mesma infidelidade que origina um possível “ressuscitamento” do amor. Mais que idealista, Gertrud é céptica no seu idealismo.

E a Dreyer muitos outros “grandes” (Tarkovsky, Bergman sobretudo, Fassbinder…) foram “beber”. Porque Dreyer foi um dos grandes sem qualquer sombra de dúvidas. E Gertrud não é Ordet, mas é uma maravilha de filme.

29 de julho de 2010

Sobre Inception

Ora bem, em primeiro dou muita mais credibilidade ao Oliveira do que ao Mourinha. Porque o Mourinha é muito mainstream, muito hollywoodesco. Depois, não espero grande coisa deste filme, ainda p'ra mais agora com a crítica do Oliveira mais desconfiado fiquei (e o Vasco Câmara ainda não disse nada, porque desconfio que quando vir o filme e escrever é pior que o Oliveira).
Aqui fica a crítica do Oliveira.

Visualmente enfadonho

Por razões que a "sociologia do espectador" um dia explicará, Christopher Nolan tornou-se especialista em "rebentar com o tomatómetro do consenso de massas", como se escrevia outro dia no "Village Voice" (e se o leitor não sabe o que é o "tomatómetro" procure os Rotten Tomatoes na Internet). Outro famigerado "tomatómetro", o Top 250 da IMDB, mete 3 filmes de Nolan nos primeiros 30, e "A Origem" está em terceiro... Pois sim. Um "filme sobre sonhos", anuncia-se, e a gente fantasia com um Cocteau americano ou com um blockbuster surrealista.




O que há é um Christopher Nolan inglês, e surrealismo nem vê-lo - pobres devem ser os sonhos de Nolan, tão visualmente enfadonho é o seu filme (que tem muito mais a ver com "second lives" e "third lives", ou com uma existência "em rede", plena de "zeitgeist", a que se tenta atribuir alguma misteriosa "transcendência", se a "sociologia do espectador" não se importar que a gente vá avançando uns tópicos).

Avesso a qualquer noção de "estilo", o filme avança de cenas desinteressantes em cenas desinteressantes, banalmente filmadas e montadas (a única ideia "onírica" tem a ver com uma canção de Piaf, é a melhor ideia e é uma ideia de som) como as de qualquer anónimo "action movie" (muita correria, muito tiroteio), cosendo tudo com uma intriga complicadíssima sobre "implantações" e "extracções" de "ideias".

Dez anos a escrever o argumento, diz Nolan, e mesmo assim, dizemos nós, "A Origem" tem que pôr as personagens permanentemente a explicar o que aconteceu na cena anterior e o que vai acontecer na cena a seguir, como se o filme tivesse integrado um PDF com o manual de instruções (há alguns filmes de "fc" que funcionam assim, mas não se levam a sério um décimo do que "A Origem" se leva: longas explicações sobre "barreiras anti-projecções" e afins, who cares?).

Acaba com um piãozinho a rodopiar, ao género dos cavalinhos brancos do "Blade Runner", para deixar o espectador a "pensar". Ora, tomates. (Donnie Darko, por onde andas tu?).



PS: Nota especial para o comentário do anónimo (que se pode ler na imagem) que vai de encontro ao que a crítica do Oliveira refere.


28 de julho de 2010

Jeder für Sich und Gott Gegen Alle (1974)












Antes de mais, isto sim é cinema. Depois, Jeder für Sich und Gott Gegen Alle é um grande filme. Porque é mais do que um filme, é uma tese, é uma dissertação sobre as estruturas sociopsicológicas do ser humano. É uma análise sobre a sociedade e suas ramificações, uma reflexão sobre o Homem e sua natureza humana.

Ao ver Jeder für Sich und Gott Gegen Alle (em português Cada um por si e Deus Contra Todos) lembrei-me de The Elephant Man (David Lynch). Poque ambos tratam desse indivíduo disfuncional no meio social onde se inserem. Porque ambos perseguem a interacção social como indicador da formação intelectual, filosófica e cultural do indivíduo. Aqui, é a ausência dessa interacção social que condiciona e define a formação psicológica e sociocultural de Kaspar Hauser. Mas é quando Kaspar Hauser se insere na sociedade que a semelhança com o filme de Lynch é visível. Porque é na forma como a sociedade reconhece estes dois “intrusos” que os dois filmes se relacionam, porque da mesma maneira que John Merrick é visto como uma aberração, também aqui Kaspar é tratado como um ser anormal, como um jovem alienado das regras e convenções socioculturais (o que é realmente verdade mas devido ao isolamento até aí), sendo tanto um como outro motivo de atracção social face à condição a que estão sujeitos (cada um à sua). Aliás, o filme de Herzog é essencialmente um estudo sobre essa vertente da natureza humana, um questionamento sobre a identidade do indivíduo como factor determinado pela convivência social. Ou seja, e se o ser humano for desprovido de qualquer contacto social até idade relativamente avançada? Qual será o seu desenvolvimento intelectual face a essa ausência de interacção humana? Será um indivíduo tal qual o conhecemos hoje em dia? Ou desenvolverá somente as potencialidades primitivas e retrocederá aos primórdios do ser humano? E a reinserção no meio social é possível? Terá esse ser desenvolvido capacidades e habilidades intelectuais para se (re)ajustar na sociedade?

Jeder für Sich und Gott Gegen Alle é um filme cru, rude e paisagístico. Herzog, de certa forma, questiona as convenções da época (muitas delas ainda actuais), condiciona a igreja e a ciência como partes integrantes e identificadoras da sociedade e da formação intelectual e sociocultural do indivíduo. Acima de tudo, é esta vertente filosófica e sociológica que faz de Jeder für Sich und Gott Gegen Alle um grande filme. Isto sim é cinema.

26 de julho de 2010

Levitar

Záhrada de Martin Sulík

Zerkalo de Andrei Tarkovsky

Záhrada - O Jardim (1995)










Por vezes acontece-me destas surpresas, filmes que me intrigam pela sua origem e que me conquistam (neste caso) pelo seu misticismo e naturalismo. Záhrada é um conto vindo da Eslováquia que oscila entre o real e a fantasia, que se confunde entre a magia do realismo e do misticismo. Naturalista e simbólico, Záhrada é uma leve comédia sobre o modernismo e as relações pessoais. Fresco, livre e surpreendente. Muito bom. E mais um nome a descobrir, Martin Sulík.

25 de julho de 2010

Scarface (1932)











Finalmente vi Scarface de Howard Hawks. Por acaso nunca gostei muito do filme do De Palma. E talvez por isso me tenha agradado tanto este do Hawks. Mas é mais do que isso, é o preto e branco que favorece a vertente sombria/obscura do filme, são as magistrais sombras a reforçarem isso, é a forma de filmar de Hawks. É o início brilhante do filme, é a simples, directa e eficaz condução narrativa, é Paul Muni numa interpretação fabulosa (como Al Pacino na versão de 83), é a força sensual do filme com aquelas duas mulheres, é a denúncia do crime organizado como principal intenção do cineasta. Grande filme.