Apetecia-me falar da tristeza ou da revolta interior pelas atrocidades cometidas, falar dessa nefasta acção humana que outrora trucidou milhares de seres humanos. Sei lá, falar dos responsáveis ou dos causadores de tal coisa, falar da aparência que esconde a verdadeira forma do ser. Sim, apetecia-me mas já não me apetece (coisas da vida), porque chego à conclusão que mais vale falar nas memórias, porque penso que era o que Resnais queria transmitir acima de tudo em Hiroshima Mon Amour. Talvez, e talvez é dizer com toda a certeza que mais do que talvez L'année dernière à Marienbad seja a captação mais bela, mais enigmática e mais complexa de qualquer ideia que seja sobre a forma ou sobre a procura dessa forma das memórias (e com isso não digo que Hiroshima lhe fique muito atrás). Talvez (e volta o talvez da certeza) tudo se invoque pela erupção trágica ou mais do que qualquer coisa fugaz nessa erupção trágica que encarne qualquer pensamento ou conjectura individual sobre a definição ou a própria ideia da definição das memórias. Nada de talvezes ou coisas prováveis. Aquilo que Marienbad irrompe no cinema é qualquer coisa de fugaz que se perpetua no tempo mas que recusa essa mesma perpetuidade alegando o esquecimento. Fale-se das memórias como algo abstracto do passado, como algo agarrado ou aprisionado ao tempo, sim e as memórias é que trazem a perpetuidade, mas fale-se acima de tudo que esse algo abstracto ou incorpóreo surge primeiro no passado e só posteriormente nas memórias, o que resume qualquer reflexão ou conjectura ou instigação a uma conjectura da essência das memórias. Sendo assim, nada mas mesmo nada de talvezes ou merdas dessas, o que interessa é a certeza de que tudo ali são memórias instigadas por um passado incerto no qual o esquecimento se intromete. Ora, dentro da imaterialidade do passado surge então a imaterialidade das memórias em conflito interior com a imaterialidade do esquecimento, ou seja, abstracto mais abstracto não há. Aquilo que acontece em Hiroshima Mon Amour não é mais do que a perpetuação da perpetuidade da inalcançável imaterialidade que já acontecera em Marienbad. Isto lá no fundo bem no fundo do âmago, coisa que não implica a variação do esquecimento como resultado dum conflito interior do ser. E é aqui que tudo se distingue de Marienbad. Isto porque em Hiroshima Resnais traz uma certeza ou uma justificação ou fundamentação para esse conflito interior ou para o aparecimento do esquecimento originado por esse conflito interior, o que em Marienbad não acontece, já que aí Resnais se preocupa somente em explorar o momento desse conflito interior que insistentemente resiste a qualquer avivar ou reviver dessas memórias. Nesse sentido Hiroshima é mais filme (ou ficção) e menos experimentação do que Marienbad, já que este tudo faz (quem faz é Resnais claro) para confundir o espectador com a introdução da dúvida do que seja ou não verdade. Ah, a dúvida, por momentos esqueci-me da dúvida, coisa tão importante em Marienbad. E nada disso (de dúvidas ou incertezas) ocorre em Hiroshima. A dúvida do passado, das memórias, do próprio esquecimento, aliás, Marienbad é acima de qualquer coisa, acima de qualquer memória fugaz ou de qualquer aprisionamento das memórias no esquecimento, um filme de dúvida. Nada é certo (ao contrário do que acontece em Hiroshima), tudo é fugaz do mais fugaz que pode haver dentro da incerteza do passado e das suas reminiscências que afectam o presente. Tudo em Marienbad é a exploração da imaterialidade do passado e da dúvida do esquecimento das suas memórias. Não vou negar que Marienbad me agrada mais como cinema, como exploração duma certa experimentação ou ensaio desse conflito interior ou mental do auto-esquecimento que resulta dum trauma qualquer (ou de algo marcante). Esse trauma, que em Marienbad nem se preocupa em o esmiuçar, é em Hiroshima a causa de todo o conflito de que falo, um certo colapso mental que recorre ao esquecimento para continuar a vida. Ora, se em Hiroshima temos uma certeza das reminiscências do passado que resulta na conduta humana no presente, já em Marienbad essas reminiscências do passado são constantemente postas em causa pela dúvida da sua veracidade. O que pode também emergir como similitude nas duas obras (e por força de todo o objecto de estudo, as memórias) é o tempo, a força e a veemência do tempo como utensílio feroz da implacabilidade do esquecimento e consequente ideia de morte (ou mais um adormecimento perpetuo) das memórias inerentes ao trauma (que em Marienbad se especula já que de traumas somos nós que o supomos). Portanto, e para finalizar, onde Hiroshima Mon Amour recorre à desmitificação da memória, ou seja, onde Hiroshima vai buscar toda a certeza do mundo para decifrar a conduta de Emmanuelle Riva e do ser humano (ao trauma e às memórias dele e ao consequente esquecimento dessas memórias do trauma, e por isso Resnais escolheu Hiroshima), L'année dernière à Marienbad recusa desmitificações ou resoluções do enigma e recorre à incerteza e ao sentido inóspito do esquecimento de quaisquer reminiscências como total recuperação dum suposto trauma ou simplesmente recorre à mais pura das imaginações do homem.
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