28 de junho de 2012


“Track of the Cat” do Wellman, coisa tão inexorável e tão imoladora nas suas entranhas onde jorra tanta tensão quanto medo e coisas da noologia, é uma alegoria, um western da neve como é do medo e da emancipação e da solidão do indivíduo, coisa terrífica deambulante pelos caminhos da misantropia e da escuridão da alma. Brutal é dizer pouco, “Track of the Cat”, western injustiçado e esquecido no tempo merece o seu lugar junto dos maiores de todo o sempre, negro muito negro ainda que imergido no infindável branco de tanta neve a invadir e a envolver aquela família atordoada pelo mistério e pela ameaça quer da pantera quer da própria estrutura familiar que parece querer ruir a qualquer momento.

“Track of the Cat”, obra-prima ou o que lhe queiram chamar, é tudo isso e muito mais, beleza das belezas imagéticas só comparável aos russos como o Chukhrai ou o Kalatozov, filmado num CinemaScope em que usa a negrura das cores para nos escurecer aquilo tudo e todas as almas que ali existem, é o negro da pantera que escurece e assombra aquilo tudo, coisa que só brilhará no final já sem o “gato”, é a beleza das cores enegrecidas (com algumas excepções e lá dentro da casa - refúgio) a trazer mais mistério e a reluzir tudo e a pintar a tela como se de uma tela de pintura se tratasse. É o campo e o contracampo e a profundidade de campo, o raccord e o décor, são planos e planos e enquadramentos tantos e tão brutais e monumentais e tudo o que se lhe queira adjectivar de maior, são movimentos de câmara a verter e a romper toda a brutalidade do medo e do vazio que aquele branco infindável e impenetrável simboliza. São coisas viscerais e niilistas que ao medo e às frustrações tudo arrancam, coisas contidas na alma e na pusilanimidade de Harold, tensões e impetuosidades em Curt que tudo fazem para abalar o seio familiar e mais que isso, para mostrar a autoridade, são obsessões e pecados expiados nas tensões e no medo que a morte e a ameaça da morte lhes traz...


“Track of the Cat”, filme de fantasmas tanto quanto os pode haver, filme das sombras e das trevas da alma, do lirismo disso tudo, do pecado da alma que faz o Homem fazer certas coisas, próximo portanto dum Murnau ou dum Lang expressionistas ou até dum Ford como o do “The Hurricane” ou o do “The Prisoner of Shark Island”, coisa do medo e do caminho que o medo faz o Homem seguir, esse mesmo medo que os leva ao abismo, tormento e perversidade humana, fraqueza da alma que corrompe o homem. É o pecado do mundo que Curt carrega na alma. Mas, como no “Hurricane” do Ford, surge a catarse lá no final com aquele conselho daquela mãe, ela que tanta culpa tem pela tragédia e pela negrura daquelas almas, ela que por ela ou para lhe agradar (e ela sabe-o e di-lo perto do final) Curt sempre agiu assim tão impetuoso e tão irascível e autoritário, como se tudo precisasse de ficar ali naquela casa, como se ela não quisesse ninguém ali além dos seus (e por isso resiste tanto à ideia de Harold casar) e Curt fizesse tudo o que ela quisesse, como se a partilha dos bens e dos terrenos fosse coisa impensável e pecaminosa. Aquela estalada que ela lhe dá a Grace no início é dos mais bruscos e simbólicos momentos do filme, castigo imputado pela sua audácia em se sublevar ou exasperar contra Curt, ele que é como a mãe e que luta pelo mesmo que ela, tudo lembra Édipo mas ao mesmo tempo foge dele porque Wellman nunca nos guia nesse sentido e apenas nos leva no caminho do vazio, todos eles incluindo Grace vivem num vazio regulado pelos desejos da mãe que delibera e rege tudo. Por isso não lhes convém a emancipação do garoto como lhe chamam, isso é o início da divisão familiar, da inclusão de estranhos, ali (Curt e a mãe) luta-se pelo isolamento, por uma união que no fundo das coisas só traz desunião e discórdia e tensões. Harold, o irmão mais novo e o tal a que chamam de garoto, anseia, no final de contas, o respeito do irmão (Curt) e a timidez que o faz avançar tão devagar com Gwen é a mesma que o assombra, como a pantera assombra o gado e a morte os assombra a todos, na sua relação com Curt, é isso e o medo e o rebaixamento que sempre sofreu dele.

“Track of the Cat”, filme de fantasmas, não só os dela, da mãe, como os do Joe Sam o índio que tudo pressente e tudo sabe e todo o medo do mundo tem pela pantera. Só por ele ou caminhando com ele a pantera será derrotada, no final o saberemos, são coisas pagãs que tanta irascibilidade e tanto preconceito lhe infligiram Curt e a mãe, só Arthur estava distante desse cepticismo, só ele o tratava com dignidade e lhe dava alguma credibilidade. O fantasma da pantera que vem com a primeira neve talvez não seja tão veemente e tão bruto quanto o “fantasma” da autoridade de Curt que tanto assombra quer Harold quer Grace, só Arthur parece ter coragem para o enfrentar ainda que o siga para todo o lado. Essa autoridade é ainda assim legítima na medida em que todos (excepto talvez Grace) o admiram, o pai, velho alienado e imerso no álcool, está constantemente a elogiá-lo e a referi-lo como o “homem da casa”, até o próprio Harold quando confrontado por Gwen para exigir a Curt a sua parte lhe diz que “não havería rancho nenhum se não fosse Curt” e que “não me parece justo casar, ir até ele e lhe exigir a minha parte… ele tem de me oferecer isso”, não se trata de medo mas de admiração, de orgulho e de justeza, por isso sempre recua e se rebaixa frente a Curt e à mãe, é a emancipação que tarda porque embora tudo seja de todos moralmente tudo é de Curt, porque foi ele que tudo fez e tudo lutou para tudo ter. Só a morte o libertará (a Harold) como só a morte da pantera o negro desvanecerá.

2 comentários:

My One Thousand Movies disse...

Tens de ver mais alguns westerns que postei recentemente :)
"The Gunfighter", "Pursued", "Colorado Territory"...

Álvaro Martins disse...

Sim, falta é tempo Chico, mas vou tratar disso... :)