14 de junho de 2012


Dois filmes de Franju vistos, primeiro contacto com o seu cinema. “Les Yeux Sans Visage” percorre todos os caminhos do noir negro e aterrador de Tourneur, embrenha-se no mistério e na tensão do suspense de Hitchcock e irrompe tão brusco quanto usurpador na pulsão e na tensão dum noir obscuro e moral. Aí, na moralidade e no seu julgamento traz sólidas raízes do filme de 32 do Kenton “Island of Lost Souls”, ainda que no filme de Franju se recorra à monstruosidade e à desumanização com finalidade afectiva, amor dum pai que tudo faz para remediar o erro feito. Ora, o que acontece é a dilatação temporal (que vai ao passado) que nos remete para um passado trágico que vitimou mãe e deixou filha sem rosto. Com essa dilatação percebemos que pai, médico importante, é o “culpado” por tal tragicidade e que tudo o que faz é não só pelo amor pela filha mas também por sentimento de culpa. A isso se junta um crescendo de insanidade que lhe vai retirando a distinção entre o bem e o mal.

O mais importante parece-me ser a figura de Christiane (a filha) e a sua simbolização quer na trama quer na imagem, ou seja, o poder que a ausência do seu rosto assume e que converge na tensão e no obscurantismo presente. Os olhos do título são os olhos de Christiane e são os olhos que nos analisam, como se Christiane, imagem sem rosto apenas com olhar gélido e revoltoso, fosse ela também uma espécie de espectadora que vai observando tudo e só no fim age por vontade própria. Nesse olhar, e na ausência de rosto comutada por aquela máscara branca (ou um rosto inerte - falso), reside toda a pulsão e toda a tensão e todo o mistério e toda a fantasmagoria de “Les Yeux Sans Visage” que a pouco e pouco vai eclodindo nela (em Christiane) toda a raiva e toda a mágoa pela sua condição e, mais importante, toda a incompreensão e julgamento moral pelas acções do pai.

O espaço, que a Christiane é confinado àquela casa, longe das ruas de Paris para um isolamento que lhe permita alimentar uma hipotética morte forjada pelo pai. Aí, no espaço ou naquele espaço a que Christiane é delimitada, reside e compartilha com a tal dilatação temporal, o poder de toda a revolta, mágoa e depressão de Christiane. E é pela figura da portentosa Alida Valli - Louise (assistente do pai à qual a operação correu bem - vitima também do tal erro do Docteur Génessier) - que Christiane vai alimentando alguma fé e esperança num futuro radioso. Mas o confinamento àquele espaço traz não só o próprio isolamento do mundo (a morte forjada) como a abdicação do noivo (o amor) e da própria identidade. Christiane torna-se assim, ou começa a sentir-se assim pois tornada já estava, uma morta-viva sem rosto que vai vagueando por aquela mansão como um fantasma. Assim, Franju busca um surrealismo melancólico (ou o que se lhe possa parecer) ainda que todo o ambiente macabro e aterrador pontue a tensão e a narrativa da obra.


“Le Sang des Bêtes” é um documentário que usa o espaço como coisa primordial, isto é, como essencialidade para a funcionalidade retractada. E o que se retracta em “Le Sang des Bêtes”? Matadouros de Paris, mais concretamente dois matadouros de Paris, um em que se abatem cavalos e outro onde se abatem vacas, vitelos e ovelhas. O espaço, os matadouros, funcionam como extrema importância para o desenvolvimento do objecto documentado (o abate dos animais), coisa vital que se envolve e confunde com a serenidade das primeiras imagens dos subúrbios de Paris (“Aux Portes de Paris” diz-nos Franju) que nos trazem um certo lirismo (e até romantismo) e contraponto com o que se segue, é ali que se abatem os cavalos (caso do primeiro matadouro – Vaugiraud), exposição crua e dura da realidade e do quotidiano dum matadouro. Desse contraponto surge a ideia de obscurantismo do objecto exposto (os matadouros), como que funcionando à margem da sociedade (e com uma violência inata) e buscando além da ideia de obscurantismo um certo tipo de surrealismo. Franju documenta tudo, desde os utensílios ao processo de abatimento e consequente desmembramento animal num preto e branco com recurso à negrura das formas, das texturas e das próprias sombras. Pelo meio fala dum ou outro trabalhador, mas o que interessa (tanto num como noutro matadouro em que o processo fílmico ou documental segue a mesma linha) é a crueza e a brutalidade da crueza do objecto exposto (coisa que me parece ter influenciado tanto cineasta desde Wiseman a Herzog), bem como a ausência de exploração quer sensibilizadora quer emotiva. No fim voltam as imagens dos subúrbios de Paris como que saindo de um mundo e entrando noutro ainda que lado a lado um do outro.

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