30 de junho de 2012

Tretya Meshchanskaya - Abram Room (1927) *****
The Public Enemy - William A. Wellman (1931) *****
A Farewell to Arms - Frank Borzage (1932) *****
Doctor Bull - John Ford (1933) *****
Double Indemnity - Billy Wilder (1944) *****
Le Sang des Bêtes - Georges Franju (1949) *****
Track of the Cat - William A. Wellman (1954) *****
Yōkihi - Kenji Mizoguchi (1955) *****
Les Yeux Sans Visage - Georges Franju (1960) *****
Családi Tüzfészek - Béla Tarr (1979) *****
The Savage Innocents - Nicholas Ray (1960) ****
Mayak - Mariya Saakyan (2006) ****
Tokyo! - Bong Joon-ho, Leos Carax, Michel Gondry (2008) ****
Labrador - Frederikke Aspöck (2011) ***
The Weather Man - Gore Verbinski (2005) ® **
The Descendants - Alexander Payne (2011) **
Brestskaya Krepost - Aleksandr Kott (2010) *
Prometheus - Ridley Scott (2012) *
No Mercy - Richard Pearce (1986) Ÿ

® Filmes revistos

28 de junho de 2012


“Track of the Cat” do Wellman, coisa tão inexorável e tão imoladora nas suas entranhas onde jorra tanta tensão quanto medo e coisas da noologia, é uma alegoria, um western da neve como é do medo e da emancipação e da solidão do indivíduo, coisa terrífica deambulante pelos caminhos da misantropia e da escuridão da alma. Brutal é dizer pouco, “Track of the Cat”, western injustiçado e esquecido no tempo merece o seu lugar junto dos maiores de todo o sempre, negro muito negro ainda que imergido no infindável branco de tanta neve a invadir e a envolver aquela família atordoada pelo mistério e pela ameaça quer da pantera quer da própria estrutura familiar que parece querer ruir a qualquer momento.

“Track of the Cat”, obra-prima ou o que lhe queiram chamar, é tudo isso e muito mais, beleza das belezas imagéticas só comparável aos russos como o Chukhrai ou o Kalatozov, filmado num CinemaScope em que usa a negrura das cores para nos escurecer aquilo tudo e todas as almas que ali existem, é o negro da pantera que escurece e assombra aquilo tudo, coisa que só brilhará no final já sem o “gato”, é a beleza das cores enegrecidas (com algumas excepções e lá dentro da casa - refúgio) a trazer mais mistério e a reluzir tudo e a pintar a tela como se de uma tela de pintura se tratasse. É o campo e o contracampo e a profundidade de campo, o raccord e o décor, são planos e planos e enquadramentos tantos e tão brutais e monumentais e tudo o que se lhe queira adjectivar de maior, são movimentos de câmara a verter e a romper toda a brutalidade do medo e do vazio que aquele branco infindável e impenetrável simboliza. São coisas viscerais e niilistas que ao medo e às frustrações tudo arrancam, coisas contidas na alma e na pusilanimidade de Harold, tensões e impetuosidades em Curt que tudo fazem para abalar o seio familiar e mais que isso, para mostrar a autoridade, são obsessões e pecados expiados nas tensões e no medo que a morte e a ameaça da morte lhes traz...


“Track of the Cat”, filme de fantasmas tanto quanto os pode haver, filme das sombras e das trevas da alma, do lirismo disso tudo, do pecado da alma que faz o Homem fazer certas coisas, próximo portanto dum Murnau ou dum Lang expressionistas ou até dum Ford como o do “The Hurricane” ou o do “The Prisoner of Shark Island”, coisa do medo e do caminho que o medo faz o Homem seguir, esse mesmo medo que os leva ao abismo, tormento e perversidade humana, fraqueza da alma que corrompe o homem. É o pecado do mundo que Curt carrega na alma. Mas, como no “Hurricane” do Ford, surge a catarse lá no final com aquele conselho daquela mãe, ela que tanta culpa tem pela tragédia e pela negrura daquelas almas, ela que por ela ou para lhe agradar (e ela sabe-o e di-lo perto do final) Curt sempre agiu assim tão impetuoso e tão irascível e autoritário, como se tudo precisasse de ficar ali naquela casa, como se ela não quisesse ninguém ali além dos seus (e por isso resiste tanto à ideia de Harold casar) e Curt fizesse tudo o que ela quisesse, como se a partilha dos bens e dos terrenos fosse coisa impensável e pecaminosa. Aquela estalada que ela lhe dá a Grace no início é dos mais bruscos e simbólicos momentos do filme, castigo imputado pela sua audácia em se sublevar ou exasperar contra Curt, ele que é como a mãe e que luta pelo mesmo que ela, tudo lembra Édipo mas ao mesmo tempo foge dele porque Wellman nunca nos guia nesse sentido e apenas nos leva no caminho do vazio, todos eles incluindo Grace vivem num vazio regulado pelos desejos da mãe que delibera e rege tudo. Por isso não lhes convém a emancipação do garoto como lhe chamam, isso é o início da divisão familiar, da inclusão de estranhos, ali (Curt e a mãe) luta-se pelo isolamento, por uma união que no fundo das coisas só traz desunião e discórdia e tensões. Harold, o irmão mais novo e o tal a que chamam de garoto, anseia, no final de contas, o respeito do irmão (Curt) e a timidez que o faz avançar tão devagar com Gwen é a mesma que o assombra, como a pantera assombra o gado e a morte os assombra a todos, na sua relação com Curt, é isso e o medo e o rebaixamento que sempre sofreu dele.

“Track of the Cat”, filme de fantasmas, não só os dela, da mãe, como os do Joe Sam o índio que tudo pressente e tudo sabe e todo o medo do mundo tem pela pantera. Só por ele ou caminhando com ele a pantera será derrotada, no final o saberemos, são coisas pagãs que tanta irascibilidade e tanto preconceito lhe infligiram Curt e a mãe, só Arthur estava distante desse cepticismo, só ele o tratava com dignidade e lhe dava alguma credibilidade. O fantasma da pantera que vem com a primeira neve talvez não seja tão veemente e tão bruto quanto o “fantasma” da autoridade de Curt que tanto assombra quer Harold quer Grace, só Arthur parece ter coragem para o enfrentar ainda que o siga para todo o lado. Essa autoridade é ainda assim legítima na medida em que todos (excepto talvez Grace) o admiram, o pai, velho alienado e imerso no álcool, está constantemente a elogiá-lo e a referi-lo como o “homem da casa”, até o próprio Harold quando confrontado por Gwen para exigir a Curt a sua parte lhe diz que “não havería rancho nenhum se não fosse Curt” e que “não me parece justo casar, ir até ele e lhe exigir a minha parte… ele tem de me oferecer isso”, não se trata de medo mas de admiração, de orgulho e de justeza, por isso sempre recua e se rebaixa frente a Curt e à mãe, é a emancipação que tarda porque embora tudo seja de todos moralmente tudo é de Curt, porque foi ele que tudo fez e tudo lutou para tudo ter. Só a morte o libertará (a Harold) como só a morte da pantera o negro desvanecerá.

24 de junho de 2012

“Doctor Bull”, assim como tantos outros de Ford, é coisa tão humanística quanto as mais sagradas bíblias do mundo, “in fact”, tudo em “Doctor Bull” anseia pelo humano (demasiado humano?) vs a idealização/perfeição do doutor. A isso vai reclamar o povo que mete o nariz onde não é chamado (mas isso são coisas inatas ao povo), povo ingrato e sobretudo olvidado não só do passado mas também do presente dum homem que tudo dá pelos seus. Patriotismos à parte (coisa rara em Ford), sentido nostálgico e de nobreza e de justeza a encher a tela, filme sobre um homem, daqueles homens típicos das pequenas localidades que se desdobram em vários para acudir este e aquele e aqueloutro, espécie de “pronto socorro” lá do sítio, daqueles médicos antigos que tratavam os doentes como familiares (coisas de outrora, de tempos antigos que contrastam com os de hoje), laços criados entre médico e pacientes, história desse homem que se vê mergulhado, ao fim duma vida inteira ao serviço da comunidade, numa injustiça também ela típica dessas cidades pequenas. E ali, New Winton, sítio de ninguém onde ninguém desce do comboio, apenas o jornal, terra de intrigas como tantas outras por esse mundo fora, por aí foi ficando o doutor provinciano, anos e anos a trazer ao mundo uns e outros até que por causa do “affair” com Mrs. Janet o “seu” povo se agite contra ele, até que o tifo lhe ponha em causa a sua capacidade e o assombre como em tantos outros de Ford o homem é assombrado.

Ford, Ford, Ford. O humanismo não foge, não se revolta e se converte em ódio ou rancor, não, nada de negruras ou de ambiências caóticas, tudo é lírico e moralista, mesmo depois de tudo Bull só quer erguer-se e “recuperar” as pernas de Joe, mesmo depois de tudo ele continua a dizer que é apenas um veterinário, é tudo a pisar os seus terrenos (os de Ford), valores morais gritam mais alto que a injustiça e a falsidade, há sempre humanismo e sempre alguma candura no cinema de Ford. A simplicidade é coisa valiosa.

21 de junho de 2012


O neo-realismo de Tarr

Colheita dos primórdios de Tarr (primeira longa-metragem), “Családi Tüzfészek” é coisa neo-realista que finda numa mescla ficcional com o documental ou apenas com a ausência narrativa. Longe dos travellings, dos rodopios, dos planos-sequência, do tempo como complementação ao espaço e ao objecto, “Családi Tüzfészek” busca por um clamor indignado numa Hungria comunista decadente quer moral quer social quer economicamente. Num filme onde se aposta nos diálogos e no tom de realismo social e político, Tarr estava ainda longe da minuciosidade e do caos psicológico que delega o seu cinema desde “Öszi Almanach”. Aqui é tudo agreste, seco e directo, coisa que aproveita o preto e branco para desvanecer aquela Hungria e expor a decadência social, raccords e découpages cruas e bravias a disseminar o caos social em que aquela gente está mergulhada, a câmara próxima das personagens em constantes close-ups lá dentro deles daquele mundo de ruínas e de degradações em que tem naquela casa a sua principal metáfora, é tudo amoral e assente na falácia do “faz o que eu digo não faças o que eu faço” ou coisa assim, brutalidade dum submundo onde reina a discórdia, o rancor, a sordidez e a mentira... “Családi Tüzfészek” é coisa fria e política, coisa que busca por um tipo de claustrofobia social (e por isso a maior parte do filme se passa lá dentro da casa) que abraça o caos e o desespero e a miséria. É tudo cheio de futilidades, de hipocrisias e de falsas moralidades, mundo de promiscuidades e indignidades… é o espelho duma nação… é o realismo de Tarr a verter e a expor toda a decadência social e moral da Hungria comunista dos anos setenta.

18 de junho de 2012


Pouco mais de uma hora bastou para Borzage contar a trágica história de amor de “A Farewell to Arms” do Hemingway decorrida na primeira guerra mundial, coisa que verte, como em tudo o que de Borzage já vi, um lirismo romântico espiritual, angelical, acorrentado à fé, ao arrebatamento do amor, a toda a efervescência dele… coisa, portanto, distante do de Murnau que nasce das sombras e das trevas. Em Borzage é tudo cristalino, pleno de candura e de esperança, mesmo que seja preciso enfrentar “meio mundo”, mesmo que as pernas se recusem a andar, ir à guerra e voltar, fatalidades e fatalidades e mais fatalidades, guerras e discórdias e invejas, ocultações e devoluções de cartas… mesmo assim no cinema de Borzage dá-se o triunfo do amor, o romantismo absoluto e grandioso, a fé no amor e na bondade… fé nos homens. Nada de finais felizes, ainda que os haja nalguns (“7th Heaven” ou “Lucky Star”), mas nada do que isso possa exprimir, que tudo fica bem ainda que vá ficando, porque em “A Farewell to Arms” nada fica bem, ainda que consiga, e vagando por terrenos trágicos e dalguma negrura, alcançar a redenção e a luz divina, ainda que o “irmão de guerra” no fim se redima depois das tais devoluções das cartas, ainda que a tragédia finalmente ocorra. O que fica bem, ou o que triunfa é o amor (em Borzage é sempre o amor) e pelo amor ou pela força do amor tudo vai ficar bem, mesmo que para isso e mais do que nunca (como na “Imperatriz…” de Mizoguchi) o “para além da morte” faça tanto sentido e impute tanto vigor ao amor. É a brutalidade do romantismo e de todo o seu lirismo.

17 de junho de 2012

Uma inexorável doçura


Seria preciso mobilizar todo um arsenal de comparações musicais para falarmos da Imperatriz Yang Kuei Fei, um dos últimos filmes de Mizoguchi. O cinema é a arte mais próxima da música, pois é uma arte do tempo, e a economia interior de um filme se aproxima mais de um concerto, uma sinfonia que de um quadro ou romance. Se Yang Kuei Fei pode evocar a Berenice de Racine por seu estilhaçamento elegíaco, Cinna ou Nicomède de Corneille pela amplidão dos interesses em jogo, Richard II de Shakespeare pelo papel do personagem imperial, é finalmente com Mozart que se impõe uma aproximação, em razão de uma suavidade na modulação sem igual. O principal ator de Yang Kuei Fei não é nem o imperador Huang Tsung nem a imperatriz Kuei Fei, mas o tempo. O imperador destronado e exilado numa ala de seu palácio recorda-se dos dias passados. E é a qualidade incomparável desta lembrança que confere ao filme suas vibrações sublimes, pois a evocação de um passado ainda tão próximo e tão feliz permite ao príncipe elegíaco aceder à Eternidade. A fragilidade e a incerteza de um amor temporal são abolidas em nome de uma felicidade eterna, mais forte que a morte. O amor é uma vocação, e evidentemente implica uma exigência de Absoluto, na medida em que busca ultrapassar as contingências do tempo e da morte. Ele recusa a inexorável necessidade e a implacável lógica de nosso universo, suas servidões, suas leis e seus limites. Daí o tema da reencarnação, garantia para nós de que a morte não prevalece contra nossa aspiração ao Eterno, nossa crença no triunfo último do amor. Pensemos aqui no admirável Vertigo de Hitchcock, pois estes dois filmes possuem em comum serem uma meditação sobre o amor e a morte.
É neste sentido que se pode dizer, apesar da singularidade dos figurinos e dos costumes ( des costumes et des coutumes), que Mizoguchi é o mais ocidental dos cineastas japoneses. Se seu filme nos toca tão profundamente, é porque ilustra um dos temas mais profundos da sensibilidade ocidental: o tema do amor cortês.
É útil saber que a ação se desenrola no século VII, na época da dinastia T’ang. O império chinês, como seu contemporâneo o império carolíngio, é um mundo feudal dominado por uma aristocracia de funcionários estatais que sonham com a independência. No Oriente como no Ocidente, o imperador se esforça grandemente para obter o respeito de seus dignatários e assegurar a unidade do império. Deve lutar sem tréguas contra as tentativas de “pronunciamiento” dos governadores de províncias excessivamente poderosas. A polidez compassada dos altos funcionários, sua abjeta adulação, o ritual do cerimonial imperial mascaram mal a brutalidade dos costumes. Mata-se com sinais exteriores de respeito, mas mata-se. Assim, o exotismo dos hábitos e das maneiras de agir não devem nos fazer esquecer o íntimo parentesco entre civilizações em aparência tão irredutíveis. Em Constantinopla, em Aix-la-Chapelle ou Changan, reina um clima idêntico de complots, maquinações e intrigas, de lucro e rapinagens, e pensamos aqui fatalmente em reinos da história do Ocidente europeu igualmente lacerados por perturbações e férteis em tragédias íntimas.

Mizoguchi nos torna tudo isto presente; ficaria surpreso em descobrir neste filme algum dos anacronismos que se encontram em tantos filmes europeus. Impressionam-me a precisão dos detalhes, a autenticidade do clima sugerido. Semelhante grau de delicadeza é garantia de uma perfeita harmonia do conjunto. À tragédia política, história de um império em aparência tão poderoso e tão débil de fato, corresponde uma tragédia privada que a infelicidade reinante do tempo torna ainda mais comovente. Neste mundo ao mesmo tempo bárbaro e refinado, não se sabe o que fazer com um príncipe esteta e sonhador, que não sabe adaptar sua conduta à razão do Estado. A razão dos problemas do imperador não está em que a família de sua mulher dilapide seu tesouro, mas no fato de que ele consagra muito tempo à música e ao amor. Ele sacrifica a arte de reinar à arte de viver, , e subordina desmedidamente as exigências do poder às da paixão. Em consequência,a renúncia de Yang não lhe serve de nada, e ela será destruída unicamente por culpa do amado. Neste clímax, Mizoguchi nos restitui à perfeição o caráter igualmente cativante e decepcionante deste nobre personagem. Esta “chronicle play” é magistralmente servida por uma mise en scène e uma cor de incomparáveis delicadeza. Que graça, que suavidade no emprego de tons opacos e quebradiços exaltados em certos momentos por acentos claros e fulgurantes! É Mizoguchi o único responsável por este sucesso, pois seu fotógrafo deu-se menos bem nas Portas do inferno.
Intitulei esta crítica: uma inexorável doçura. Não deveríamos pensar em Resnais, diante desta mescla tão bem dosada entre crueldade e suavidade?

Jean Domarchi, Cahiers du cinéma, agosto 1959
Tradução: Luiz Soares Júnior.

retirado daqui

14 de junho de 2012

“Mayak”, primeira longa-metragem da arménia Mariya Saakyan, filme ascético e embrenhado numa desolação quer interior quer exterior sobre um regresso a casa, carrega três importantes referências cinematográficas que resultam numa lírica e espantosa criação dum tratado da alienação dum povo em constante tumulto e mutação. Ora então:

Tarkovsky parece-me ser a elementar influência de Saakyan (ou pelo menos deste “Mayak”), a sua contemplação, nomeadamente várias semelhanças quer imagéticas quer sensoriais quer temporais a “Nostalghia” e a “Zerkalo”, o uso do sépia e do slow motion como recurso às memórias, o sentido poético, o poder da busca (ou apenas da reflexão) interior, o alheamento do indivíduo, a fé, etc.

Bartas, o cinema político de Bartas parece-me ser também base capilar para Saakyan, a desolação do pós-união soviética, coisa comum à Lituânia e à Arménia, ainda que aqui não se dê tanta relevância ao factor socio-económico em detrimento da guerra e da destruição desta. Daí, da guerra do Cáucaso e do tal pós-união soviética surge não só a desolação como a alienação do mundo face ao “estado das coisas”.

Sokurov, da plasticidade e da textura do seu cinema, do seu sentido metafísico (coisa que já vem de Tarkovsky também), da morte, do medo...

Dois filmes de Franju vistos, primeiro contacto com o seu cinema. “Les Yeux Sans Visage” percorre todos os caminhos do noir negro e aterrador de Tourneur, embrenha-se no mistério e na tensão do suspense de Hitchcock e irrompe tão brusco quanto usurpador na pulsão e na tensão dum noir obscuro e moral. Aí, na moralidade e no seu julgamento traz sólidas raízes do filme de 32 do Kenton “Island of Lost Souls”, ainda que no filme de Franju se recorra à monstruosidade e à desumanização com finalidade afectiva, amor dum pai que tudo faz para remediar o erro feito. Ora, o que acontece é a dilatação temporal (que vai ao passado) que nos remete para um passado trágico que vitimou mãe e deixou filha sem rosto. Com essa dilatação percebemos que pai, médico importante, é o “culpado” por tal tragicidade e que tudo o que faz é não só pelo amor pela filha mas também por sentimento de culpa. A isso se junta um crescendo de insanidade que lhe vai retirando a distinção entre o bem e o mal.

O mais importante parece-me ser a figura de Christiane (a filha) e a sua simbolização quer na trama quer na imagem, ou seja, o poder que a ausência do seu rosto assume e que converge na tensão e no obscurantismo presente. Os olhos do título são os olhos de Christiane e são os olhos que nos analisam, como se Christiane, imagem sem rosto apenas com olhar gélido e revoltoso, fosse ela também uma espécie de espectadora que vai observando tudo e só no fim age por vontade própria. Nesse olhar, e na ausência de rosto comutada por aquela máscara branca (ou um rosto inerte - falso), reside toda a pulsão e toda a tensão e todo o mistério e toda a fantasmagoria de “Les Yeux Sans Visage” que a pouco e pouco vai eclodindo nela (em Christiane) toda a raiva e toda a mágoa pela sua condição e, mais importante, toda a incompreensão e julgamento moral pelas acções do pai.

O espaço, que a Christiane é confinado àquela casa, longe das ruas de Paris para um isolamento que lhe permita alimentar uma hipotética morte forjada pelo pai. Aí, no espaço ou naquele espaço a que Christiane é delimitada, reside e compartilha com a tal dilatação temporal, o poder de toda a revolta, mágoa e depressão de Christiane. E é pela figura da portentosa Alida Valli - Louise (assistente do pai à qual a operação correu bem - vitima também do tal erro do Docteur Génessier) - que Christiane vai alimentando alguma fé e esperança num futuro radioso. Mas o confinamento àquele espaço traz não só o próprio isolamento do mundo (a morte forjada) como a abdicação do noivo (o amor) e da própria identidade. Christiane torna-se assim, ou começa a sentir-se assim pois tornada já estava, uma morta-viva sem rosto que vai vagueando por aquela mansão como um fantasma. Assim, Franju busca um surrealismo melancólico (ou o que se lhe possa parecer) ainda que todo o ambiente macabro e aterrador pontue a tensão e a narrativa da obra.


“Le Sang des Bêtes” é um documentário que usa o espaço como coisa primordial, isto é, como essencialidade para a funcionalidade retractada. E o que se retracta em “Le Sang des Bêtes”? Matadouros de Paris, mais concretamente dois matadouros de Paris, um em que se abatem cavalos e outro onde se abatem vacas, vitelos e ovelhas. O espaço, os matadouros, funcionam como extrema importância para o desenvolvimento do objecto documentado (o abate dos animais), coisa vital que se envolve e confunde com a serenidade das primeiras imagens dos subúrbios de Paris (“Aux Portes de Paris” diz-nos Franju) que nos trazem um certo lirismo (e até romantismo) e contraponto com o que se segue, é ali que se abatem os cavalos (caso do primeiro matadouro – Vaugiraud), exposição crua e dura da realidade e do quotidiano dum matadouro. Desse contraponto surge a ideia de obscurantismo do objecto exposto (os matadouros), como que funcionando à margem da sociedade (e com uma violência inata) e buscando além da ideia de obscurantismo um certo tipo de surrealismo. Franju documenta tudo, desde os utensílios ao processo de abatimento e consequente desmembramento animal num preto e branco com recurso à negrura das formas, das texturas e das próprias sombras. Pelo meio fala dum ou outro trabalhador, mas o que interessa (tanto num como noutro matadouro em que o processo fílmico ou documental segue a mesma linha) é a crueza e a brutalidade da crueza do objecto exposto (coisa que me parece ter influenciado tanto cineasta desde Wiseman a Herzog), bem como a ausência de exploração quer sensibilizadora quer emotiva. No fim voltam as imagens dos subúrbios de Paris como que saindo de um mundo e entrando noutro ainda que lado a lado um do outro.

6 de junho de 2012

Holly Motors do Carax, Like Someone in Love do Kiarostami, Post Tenebras Lux do Reygadas, Reality do Garrone, V tumane do Loznitsa, Vous n’avez encore rien vu do Resnais e o Mekong Hotel do Weerasethakul são as minhas maiores expectativas relativas aos que passaram por Cannes. Além destes espera-se também ferverosamente o Low Life do Gray e o O Gebo e a Sombra do Oliveira.

As sombras da morte

“Double Indemnity” é coisa minuciosa, negro como os mais negros de Murnau ou de Dreyer, sombrio e brutal e imerso na perversidade do poder da femme fatale, coisa do noir que aqui emerge na perfeição. É nas sombras que brota toda a perdição daquele vendedor de seguros, na negrura mais recôndita daquela estória que a pouco e pouco vai escurecendo a vida e a alma de Walter Neff, o vendedor que se deixa enfeitiçar por aquela mulher que o conduz, como lhe diz Keyes, ao cemitério.

Wilder consegue ser tão negro quanto os mais assombrosos filmes de Murnau sim, e por isso o filme traz tantas heranças do expressionismo alemão (ou direi antes que o noir traz essas heranças), mas o que irrompe e avulta dessa escuridão fantasmagórica e comprimida pelo desejo e pela perversidade é a narrativa minuciosa, literal e intimista de índole literata na primeira pessoa, coisa submersa na tragicidade que se avizinha e nas trevas diabólicas da mulher que corrompe o homem. É por isso, pela negrura constante da noite e das ruas de Los Angeles e pelas sombras da morte e do noir, que “Double Indemnity” é um dos mais brutais e subservientes noirs da história do cinema.

4 de junho de 2012

“Os que menos tiveram confiança no futuro do cinema como arte e mesmo como indústria foram, precisamente, os dois industriais, Edison e Lumiére. Edison contentou-se com seu kinetoscópio individual e, se Lumiére recusou judiciosamente a Méliés a venda de sua patente, foi porque provavelmente pensava ter mais lucro ele mesmo se a explorasse, mas efetivamente como um brinquedo, do qual mais dia menos dia o público se cansaria.”
André Bazin

2 de junho de 2012

Noventa anos após a descoberta dos irmãos Lumière, deixou de ser possível afirmar, seriamente, que o cinema não é uma arte. Será então presunção pensar que há, na história do cinema, cerca de cinquenta filmes que são tão preciosos como a Ilíada, o Pártenon, a Capela Sistina, a Gioconda ou a Nona Sinfonia, e cuja destruição empobreceria de modo idêntico o património artístico e cultural da humanidade? Sim, talvez, porque uma tal afirmação parecerá audaciosa àqueles que persistem em considerar o cinema como uma «divertimento de hilotas» (Georges Duhamel): é fácil responder que, se certas pessoas desprezam o cinema é, com efeito, porque ignoram a sua beleza e que, mesmo assim, é absolutamente irracional ter por desprezível uma arte que é, socialmente falando, a mais importante e a mais influente da nossa época.
Mas é preciso reconhecer que a própria natureza do cinema fornece muitas armas contra ele.
O cinema é fragilidade porque está ligado a um suporte material extremamente delicado e que acaba por se estragar com o uso; porque só há muito pouco tempo é que se encontra protegido pelo depósito legal e porque o direito moral dos criadores quase não é reconhecido; porque é considerado, antes de tudo, uma mercadoria, e porque o possuidor tem o direito de destruir os filmes como muito bem entender; porque está submetido aos imperativos dos comanditários e porque em nenhuma das outras artes as contingências materiais têm tanta influência sobre a liberdade dos criadores.
O cinema é futilidade porque é a mais jovem de todas as artes, nascida de uma vulgar técnica de reprodução mecânica da realidade; porque é considerado pela imensa maioria do público como um simples divertimento onde se vai sem cerimónia; porque a censura, os produtores, os distribuidores e os exibidores cortam os filmes à sua vontade; porque aas condições do espectáculo são tão lamentáveis que no sistema de sessões contínuas se pode ver o fim antes do começo, projectado numa tela que não corresponde ao formato do filme; porque em nenhuma outra arte a concordância crítica é tão difícil de atingir e porque todas as pessoas se julgam autorizadas, tratando-se de cinema, a se considerarem juízes.
O cinema é facilidade porque se apresenta, a maioria das vezes, sob as aparências do melodrama, do erotismo ou da violência; porque consagra, em grande parte da sua produção, o triunfo da imbecilidade; porque é, nas mãos das potências económicas que o dominam, um instrumento de embrutecimento, uma «fábrica de sonhos» (Ilya Ehrenburg), «rio fugaz desbobinando à farta quilómetros de ópio óptico» (Audiberti).
Deste modo, vícios profundos contrariam o desenvolvimento estético do cinema; e, para além disso, um pecado original vergonhoso pesa sobre o seu destino.

Marcel Martin in Le Langage Cinématographique (1955)

1 de junho de 2012

A impressão que “Brestskaya Krepost - A Fortaleza de Brest” deixa é de que estamos perante o “Pearl Harbor” russo, História e filmes similares, coisas que se pretendem cinema mas que não passam de espectáculo, de superficialidades a roçar o histerismo das atrocidades da guerra que tudo faz para camuflar a História e por exaltar heroísmos e expor as crueldades e o falso sangue como as falsas bombas guiadas pela feiura dos enquadramentos e dos slow motions e dos raccords “híper-usados” neste tipo de filmes com Spielbergs à cabeça, a falsa brutalidade assim como a falsa sensibilidade que quer expor o sofrimento duma época e duma pátria (mérito aqui, sempre o mérito do patriotismo). Falso como os falsos action movies de Hollywood, próximo tão próximo dum academismo trivial que consegue ser tão hipócrita e tão repugnante como os mais repugnantes do Spielberg ou do Scott e que rompe com tudo aquilo que a História legou para viciar tudo e todos na sua jornada de historiazinhas paralelas e nos embelezamentos e nos facilitismos do audiovisual que lhe permitem atrair o público em geral. Isto e nada, nada é.