8 de janeiro de 2011

Stellet Licht (2007)
Carlos Reygadas

A procura da fé e a da materialização do acto miraculoso da reincarnação no cinema não é novidade. Aí, nesse contexto, Stellet Licht é a mais pura das homenagens (ou referências) a Ordet de Dreyer. Mas aqui Reygadas quer mostrar a fé na natureza, na beleza das luzes, do céu, da terra, das paisagens, da vida. A fé que Reygadas quer alcançar é a fé nos homens, na natureza, na humanidade. Por isso o sentimento de culpa, por isso o sacrifício tanto de Esther como no final o de Marianne.

Ao sentir-se dividido entre a paixão intensa com Marianne (e escolher Marianne significa o divórcio, significa desafiar as regras dos mennonites) e o amor sólido com Esther (a esposa e mãe dos filhos), Johan é um homem assolado pela dúvida e pela culpa. Mas ele sabe que essa dúvida tem de ser desfeita, sabe que tem de fazer uma escolha. Por isso aconselha-se com o amigo da oficina e depois com o pai. E ao falar com o amigo percebemos a dimensão da situação, percebemos a importância que Marianne tem para Johan. Mas Johan duvida, hesita. Marianne representa o novo amor (talvez o verdadeiro amor, talvez se tenha casado com a pessoa errada), mas Esther é a sua mulher (e o pai frisa-lho bem, lembra-lhe que o seu dever é com a mulher e os filhos, conta-lhe um episódio semelhante da sua vida, diz-lhe que também precisou de sentir, mas que é tudo fugaz, que a família é que importa). E neste dilema em que a escolha se revela tão difícil Johan faz sofrer Esther. Mais do que a traição, o que magoa Esther é a dúvida de Johan, a importância que Marianne tem para ele, a possível cessação do amor de Johan por si. Da dúvida chegamos ao sofrimento e consequentemente ao sacrifício. Esther morre de enfarte debaixo duma tempestade encostada a uma árvore. Ela sofre, chora de desgosto (momentos antes, no carro, Johan dissera-lhe que tinha estado mais uma vez com Marianne, que era mais forte do que ele). E morre de dor, de mágoa. Mas morre para Johan poder viver com Marianne, para ele poder encontrar a paz, para lhe desfazer a dúvida. E com este sacrifício, com este acto altruísta, Esther renuncia à vida e entrega-se a Deus (pois se ele a ama foi porque Deus assim o quis).

Reygadas, além de espiritualizar toda aquela história de adultério, define todo o seu desenvolvimento (a dúvida, a escolha, os sacrifícios) numa transcendência divina sobre esse dilema de Johan. A vontade de Deus (Johan escolher Marianne) e a vontade humana (ficar com Esther). Por isso o filme começa com o nascer do sol e acaba com o pôr deste. Mas a vontade humana é Marianne quem a demonstra. Porque quando Marianne dá um beijo a Esther (ao corpo gélido e inerte que ali jaz no caixão) e a ressuscita está ela também a sacrificar-se, a renunciar à vontade divina e ao amor de Johan pela felicidade deste. E é quando Marianne (num plano brilhante de Reygadas), abraçada a Johan (depois deste lhe dizer em choro que dava tudo para estar como antes), tapa o sol com a palma da mão (lá está a renúncia à luz divina) que a vontade humana prevalece. Mas o que fica sobretudo daquele final é ausência de redenção por parte de Johan. Porque realmente tudo volta a ser como antes, porque não há redenção possível, porque o que Johan finalmente percebe com a morte de Esther é que ama as duas e que, apesar de toda a angústia com aquela indecisão de dualidades afectivas, a dor da perda é ainda mais insuportável. Porque a paz é impossível, a plenitude é irrealizável.

Stellet Licht é um filme muito simbólico. Reygadas parece querer explorar a intervenção divina e a condição humana. E para isso recorre ao melodrama. Todos os seus filmes são melodramas que anseiam transcender-se. Porque todos eles vivem da dúvida (a vida e a morte em Japón, a redenção espiritual e a sexual em Batalla en el Cielo e a mulher e a amante aqui), da indecisão da escolha. Stellet Licht é um filme contemplativo, naturalista, extraordinariamente filmado. Tarkovsky é sim influência primária em Reygadas. Assim como Bresson, o seu minimalismo está lá, o nada de que Bénard falava sobre Pickpocket também, a utilização de actores não profissionais (porque quer mostrar um homem e não uma cara conhecida e as expressões que se conhecem) igualmente. Rossellini e Buñuel também se passeiam por ali. Stellet Licht é uma obra-prima absoluta, dos melhores filmes que vi na vida.

10 comentários:

Rato disse...

Resolvi seguir a tua sugestão e encomendei o filme na Amazon inglesa - falado em alemão, com legendas em inglês. O título é "Silent Light". Para os interessados, o preço é de 14,76 euros, incluindo portes para Portugal

O Rato Cinéfilo

Álvaro Martins disse...

Apraz-me que tenhas seguido a minha sugestão Rato. É sinal de que a minha opinião afinal tem algum valor eheh ;) Sim, o título em inglês é esse, como em português é Luz Silenciosa, mas o título original do filme (que é esse que me interessa) é Stellet Litch.

Diogo C. disse...

Podes estar sempre atento, e encontrar à venda na net... foi o que me aconteceu. encontrei-o no miau, que vou lá de vez em quando cirandar as listas (já comprei de Tarr a Guy Maddin a um pack de Pasolini ou Rohmer...), edição portuguesa, novinho, a um preço para rir... ;) e ainda por cima o vendedor era meu vizinho, ainda lhe comprei mais umas quantas perólas ao preço da chuva. cães com sorte.

no miau existem vários vendedores de filmes novos, das colecções da Atalanta ou da Midas ou raridades editoriais, sempre bem mais barato.

Álvaro Martins disse...

Obrigado pela dica ;)

Sam disse...

Já o encontrei na net, mas legendas em português (ou PT-BR)... nada!

Alguém consegue ajudar? Ficarei eternamente grato.

Álvaro Martins disse...

Sam, vai aqui:

http://www.opensubtitles.org/pt/search/imdbid-841925/sublanguageid-por,pob

Sam disse...

Obrigado Álvaro!

Estou bastante curioso, pelo destaque que aqui tens feito e por ter adorado o JAPÓN.

Cumps cinéfilos.

César Carvalho disse...

Concordo, o filme é realmente magistral! Anseio agora uma oportunidade de ver Japón, já o tenho e vontade não me falta :D

Rato disse...

Mais uma vez obrigado, Álvaro, por me teres falado deste filme. Vi-o esta manhã de domingo e concordo 100% com o teu comentário. Aliás, se mo permites, gostaria de citá-lo no blogue do Rato quando lá colocar o filme.
Obviamente inspirado em "Ordet", do Dreyer, a técnica usada por Reygadas lembra também o cinema dos realizadores que invocas, sobretudo Bresson e Tarkovsky. Só não gostei de um certo uso e abuso dos zooms, o que denota ainda um certo academismo. Mas o filme é na verdade belissimo - a antítese perfeita de um tal Aronofsky - que me faz agora querer redescobrir este realizador noutros filmes. Vamos ver se encontro também o muito citado "Japón". Esta edição inglesa que mandei vir traz ainda um "making-of", uma entrevista e cenas cortadas. Uma das melhores aquisições dos últimos tempos.

O Rato Cinéfilo

Álvaro Martins disse...

Fico contente que tenhas gostado eheh e claro que estás à vontade para citares lá no blog do rato :)