O cineasta Manuel Mozos filmou edifícios em decadência e ofereceu-lhes histórias. Nesse cruzamento de imagens e de textos fala-se, em "Ruínas", de um país mais de misérias do que de grandezas. Isto é Portugal. "De grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado". Belíssimo.
Há quanto tempo ninguém andava por aqui? Quem se lembra ainda do que aqui se passou?
Manuel Mozos tem por hábito ir anotando num caderno coisas destas: lugares, uma notícia que leu numa revista, uma referência de um texto. O que queria fazer em "Ruínas" - o filme, uma produção de O Som e a Fúria, que estreou esta semana - era cruzar essas coisas. Queria filmar os espaços vazios, sim, mas queria povoá-los, dar-lhes vozes, sons, fazê-los habitar por fantasmas que, se calhar, não eram os fantasmas desses espaços - eram outros, que obrigaram os primeiros a chegar-se para o lado e a deixá-los instalar-se também.
"Ruínas" é uma sucessão de imagens de espaços que o país deixou para trás, que esqueceu, mas que não desapareceram. Muitos permanecem, de pé, numa dignidade silenciosa, abandonados mas não vencidos. Ninguém passa por eles, mas eles ainda ali estão.
"O que me interessa, quer nos espaços quer nos outros materiais que utilizo no filme, é serem coisas que acho interessantes e que se diluem, se perdem. Achava importante dar-lhes alguma vida, tentar que não desaparecessem completamente", diz o realizador. Não se trata de um olhar nostálgico ou saudosista, sublinha. "Mas são sítios que têm um lado poético, de coisas que existiram, que fizeram parte de histórias deste país."
Inicialmente pensou usar excertos de filmes antigos, postais, ou até encontrar pessoas que pudessem contar histórias sobre aqueles sítios. Pensou, inclusivamente, em alargar o filme a outras coisas que estavam a desaparecer, "profissões, jardins, matas, falar da transformação de certas coisas, da construção de campos de golfe ou do efeito das auto-estradas nos percursos dos animais", não numa perspectiva sociológica mas apenas como uma constatação de que é assim. Mas à medida que ia filmando foi abandonando essa ideia. O filme foi-se tornando cada vez mais depurado até chegar ao essencial: espaços vazios e sons.
O que vemos e o que ouvimos
E o que faz a força de "Ruínas" é esse cruzamento, sempre ligeiramente deslocado, entre o que os nossos olhos vêem e a história que estamos a ouvir. No Restaurante Panorâmico de Monsanto, enquanto a câmara mostra uma escadaria, a janela panorâmica, os murais, uma voz lê uma ementa de um livro de receitas do século XVI - uma lista de iguarias que, para Mozos, "se conjugava com aquela monumentalidade".
Às vezes, como no caso do sanatório das Penhas da Saúde, o que ouvimos - neste caso: relatórios médicos com todos os pormenores sobre o estado de saúde dos doentes à entrada e à saída do internamento - tem a ver com a história do sítio. Outras vezes é apenas uma história que podia pertencer àquele lugar, e só por acaso não pertenceu - como a carta a perguntar quais os preços de um fim-de-semana para um grupo de amigos num hotel, lida sobre a imagem da Estalagem de São José, em Porto da Barca, junto ao mar, um sítio onde Mozos chegou a ficar alojado antes de o estabelecimento fechar e começar a resvalar para o esquecimento.
"Na recolha de textos interessava-me ir para coisas que não ficam como grande literatura, procurava mais literatura de cordel, epistolar, relatórios, ementas". Ficaram três poemas. O resto são textos como o edital "Ao povo do Barreiro sobre o lançamento de uma bomba", de 1934, ou uma carta com um pedido de empréstimo - "coisas um pouco fúteis, do dia-a-dia, que as pessoas guardam, mas que nunca ficarão como nada de importante a não ser para quem faz e para quem recebe".
Os "makavenkos" ["Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos", de Francisco de Almeida Grandella, 1919], por exemplo, aparecem mais do que uma vez, sem qualquer ligação aparente com o que estamos a ver. Mas este clube de "bon vivants", formado para os prazeres da comida, fundado em 1884 por Grandella e alguns amigos, apareceu naturalmente no processo de pesquisa de Mozos.
"Vi uma vez numa revista uma notícia sobre a construção de um sanatório que nunca tinha sido terminado no Cabeço de Montachique, e percebi que o Grandella, dos Armazéns Grandella, tinha feito parte das pessoas que se juntaram para esse projecto."
Mais tarde, descobriu numa livraria o livro de Grandella e interessou-se primeiro pelo lado da gastronomia. Só depois encontrou uma série de outras histórias. "Havia uma lenda de que haveria um cofre enterrado no Cabeço de Montachique com moedas a que eram para pagar o sanatório. O edifício é estranhíssimo, tem uma configuração de estrela, o que tem a ver com [sociedades secretas como] as maçonarias, as carbonárias." Soube que o realizador António Macedo fizera lá um filme, e quis vê-lo. Depois filmou o sanatório que nunca chegou a existir, mas as imagens acabaram por praticamente não entrar no filme, à excepção de dois planos ao cair da noite - como se o edifício não conseguisse libertar-se da maldição de nunca conseguir materializar-se.
Um país pequeno
Mas os textos dos "makavenkos" ficaram, entre a história de "Henriqueta, uma heroína do século XIX" e o livro de ciências naturais para a 4.ª Classe do Ensino Primário e Elementar do ano de 1961. Com esses textos, os espectadores são conduzidos para a história que o realizador quer contar, seguem atrás dos fantasmas que ele ali quis projectar. Mozos não tem dúvidas sobre isso. "Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado." As mesmas imagens com outro texto contariam outra história. Durante a montagem experimentou vários textos (houve um enorme trabalho de pesquisa prévia sobre os lugares, com Ana Gomes e Dulce Mendes) combinados com diferentes imagens. "A construção ia-se fazendo por experiências, justaposição de imagens com sons, até eu achar que ficava assim. Mas era um jogo que podia tornar-se infindável."
O que ficou é também uma história do país. Ou melhor, são histórias de um certo país. Alguns espaços podem ser grandiosos, mas o que ouvimos são histórias pequenas, pequenas misérias. Um país pequeno?
"Penso que não fugimos a um lado pequenino mesmo quando se tentam coisas mais majestosas ou grandiosas. Em alguns dos textos há uma espécie de impotência, um lado quase tragicómico. Como na primeira história dos 'makavenkos', de um senhor que quer muito escrever uma peça de teatro e nunca consegue, ou o rapazinho que eles adoptam e depois a mãe leva embora. Há um lado, que sinto que é um bocadinho o país, de grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado."
Não é um filme sobre o Estado Novo, mas este insiste em espreitar aqui e ali, nos textos, nas imagens - nos velhos livros de escola e mapas do Centro Educativo do Mosteiro de Santa Clara ou no enumerar de serviços disponíveis (por categorias) para os funcionários da Hidro-Eléctrica do Douro. "Apercebi-me de que, se calhar, estaria excessivamente centrado no Estado Novo, mas não era isso que queria, para mim era o século XX, porque é o que eu conheço bem, vivi nele uma parte razoável da minha vida."
Há, em todo o filme, uma única cena com pessoas. É logo no início, no cemitério do Prado do Repouso, no Porto, no dia de Finados. Antes disso, apenas uma imagem: a implosão das torres de Tróia. "Quer esse plano de Tróia (quis filmar antes da implosão mas não foi possível) quer a sequência no Prado do Repouso têm um carácter metafórico para o resto do filme. O primeiro porque é a única coisa em todo o filme que desaparece. Depois da implosão só fica pó. E essa ideia do pó conduz-nos à questão do cemitério. Se não houvesse pessoas, o filme seria lido de outro modo. Nós, pessoas, temos uma memória. Mesmo quando as coisas desaparecem ficamos ligados a elas."
É por isso que os espaços vazios estão cheios de vozes.
Há quanto tempo ninguém andava por aqui? Quem se lembra ainda do que aqui se passou?
Manuel Mozos tem por hábito ir anotando num caderno coisas destas: lugares, uma notícia que leu numa revista, uma referência de um texto. O que queria fazer em "Ruínas" - o filme, uma produção de O Som e a Fúria, que estreou esta semana - era cruzar essas coisas. Queria filmar os espaços vazios, sim, mas queria povoá-los, dar-lhes vozes, sons, fazê-los habitar por fantasmas que, se calhar, não eram os fantasmas desses espaços - eram outros, que obrigaram os primeiros a chegar-se para o lado e a deixá-los instalar-se também.
"Ruínas" é uma sucessão de imagens de espaços que o país deixou para trás, que esqueceu, mas que não desapareceram. Muitos permanecem, de pé, numa dignidade silenciosa, abandonados mas não vencidos. Ninguém passa por eles, mas eles ainda ali estão.
"O que me interessa, quer nos espaços quer nos outros materiais que utilizo no filme, é serem coisas que acho interessantes e que se diluem, se perdem. Achava importante dar-lhes alguma vida, tentar que não desaparecessem completamente", diz o realizador. Não se trata de um olhar nostálgico ou saudosista, sublinha. "Mas são sítios que têm um lado poético, de coisas que existiram, que fizeram parte de histórias deste país."
Inicialmente pensou usar excertos de filmes antigos, postais, ou até encontrar pessoas que pudessem contar histórias sobre aqueles sítios. Pensou, inclusivamente, em alargar o filme a outras coisas que estavam a desaparecer, "profissões, jardins, matas, falar da transformação de certas coisas, da construção de campos de golfe ou do efeito das auto-estradas nos percursos dos animais", não numa perspectiva sociológica mas apenas como uma constatação de que é assim. Mas à medida que ia filmando foi abandonando essa ideia. O filme foi-se tornando cada vez mais depurado até chegar ao essencial: espaços vazios e sons.
O que vemos e o que ouvimos
E o que faz a força de "Ruínas" é esse cruzamento, sempre ligeiramente deslocado, entre o que os nossos olhos vêem e a história que estamos a ouvir. No Restaurante Panorâmico de Monsanto, enquanto a câmara mostra uma escadaria, a janela panorâmica, os murais, uma voz lê uma ementa de um livro de receitas do século XVI - uma lista de iguarias que, para Mozos, "se conjugava com aquela monumentalidade".
Às vezes, como no caso do sanatório das Penhas da Saúde, o que ouvimos - neste caso: relatórios médicos com todos os pormenores sobre o estado de saúde dos doentes à entrada e à saída do internamento - tem a ver com a história do sítio. Outras vezes é apenas uma história que podia pertencer àquele lugar, e só por acaso não pertenceu - como a carta a perguntar quais os preços de um fim-de-semana para um grupo de amigos num hotel, lida sobre a imagem da Estalagem de São José, em Porto da Barca, junto ao mar, um sítio onde Mozos chegou a ficar alojado antes de o estabelecimento fechar e começar a resvalar para o esquecimento.
"Na recolha de textos interessava-me ir para coisas que não ficam como grande literatura, procurava mais literatura de cordel, epistolar, relatórios, ementas". Ficaram três poemas. O resto são textos como o edital "Ao povo do Barreiro sobre o lançamento de uma bomba", de 1934, ou uma carta com um pedido de empréstimo - "coisas um pouco fúteis, do dia-a-dia, que as pessoas guardam, mas que nunca ficarão como nada de importante a não ser para quem faz e para quem recebe".
Os "makavenkos" ["Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos", de Francisco de Almeida Grandella, 1919], por exemplo, aparecem mais do que uma vez, sem qualquer ligação aparente com o que estamos a ver. Mas este clube de "bon vivants", formado para os prazeres da comida, fundado em 1884 por Grandella e alguns amigos, apareceu naturalmente no processo de pesquisa de Mozos.
"Vi uma vez numa revista uma notícia sobre a construção de um sanatório que nunca tinha sido terminado no Cabeço de Montachique, e percebi que o Grandella, dos Armazéns Grandella, tinha feito parte das pessoas que se juntaram para esse projecto."
Mais tarde, descobriu numa livraria o livro de Grandella e interessou-se primeiro pelo lado da gastronomia. Só depois encontrou uma série de outras histórias. "Havia uma lenda de que haveria um cofre enterrado no Cabeço de Montachique com moedas a que eram para pagar o sanatório. O edifício é estranhíssimo, tem uma configuração de estrela, o que tem a ver com [sociedades secretas como] as maçonarias, as carbonárias." Soube que o realizador António Macedo fizera lá um filme, e quis vê-lo. Depois filmou o sanatório que nunca chegou a existir, mas as imagens acabaram por praticamente não entrar no filme, à excepção de dois planos ao cair da noite - como se o edifício não conseguisse libertar-se da maldição de nunca conseguir materializar-se.
Um país pequeno
Mas os textos dos "makavenkos" ficaram, entre a história de "Henriqueta, uma heroína do século XIX" e o livro de ciências naturais para a 4.ª Classe do Ensino Primário e Elementar do ano de 1961. Com esses textos, os espectadores são conduzidos para a história que o realizador quer contar, seguem atrás dos fantasmas que ele ali quis projectar. Mozos não tem dúvidas sobre isso. "Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado." As mesmas imagens com outro texto contariam outra história. Durante a montagem experimentou vários textos (houve um enorme trabalho de pesquisa prévia sobre os lugares, com Ana Gomes e Dulce Mendes) combinados com diferentes imagens. "A construção ia-se fazendo por experiências, justaposição de imagens com sons, até eu achar que ficava assim. Mas era um jogo que podia tornar-se infindável."
O que ficou é também uma história do país. Ou melhor, são histórias de um certo país. Alguns espaços podem ser grandiosos, mas o que ouvimos são histórias pequenas, pequenas misérias. Um país pequeno?
"Penso que não fugimos a um lado pequenino mesmo quando se tentam coisas mais majestosas ou grandiosas. Em alguns dos textos há uma espécie de impotência, um lado quase tragicómico. Como na primeira história dos 'makavenkos', de um senhor que quer muito escrever uma peça de teatro e nunca consegue, ou o rapazinho que eles adoptam e depois a mãe leva embora. Há um lado, que sinto que é um bocadinho o país, de grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado."
Não é um filme sobre o Estado Novo, mas este insiste em espreitar aqui e ali, nos textos, nas imagens - nos velhos livros de escola e mapas do Centro Educativo do Mosteiro de Santa Clara ou no enumerar de serviços disponíveis (por categorias) para os funcionários da Hidro-Eléctrica do Douro. "Apercebi-me de que, se calhar, estaria excessivamente centrado no Estado Novo, mas não era isso que queria, para mim era o século XX, porque é o que eu conheço bem, vivi nele uma parte razoável da minha vida."
Há, em todo o filme, uma única cena com pessoas. É logo no início, no cemitério do Prado do Repouso, no Porto, no dia de Finados. Antes disso, apenas uma imagem: a implosão das torres de Tróia. "Quer esse plano de Tróia (quis filmar antes da implosão mas não foi possível) quer a sequência no Prado do Repouso têm um carácter metafórico para o resto do filme. O primeiro porque é a única coisa em todo o filme que desaparece. Depois da implosão só fica pó. E essa ideia do pó conduz-nos à questão do cemitério. Se não houvesse pessoas, o filme seria lido de outro modo. Nós, pessoas, temos uma memória. Mesmo quando as coisas desaparecem ficamos ligados a elas."
É por isso que os espaços vazios estão cheios de vozes.
Alexandra Prado Coelho in
ípsilon "Manuel Mozos nas ruínas das grandes esperanças"