26 de fevereiro de 2011
22 de fevereiro de 2011
Des Hommes Et Des Dieux (2010)
Xavier Beauvois
Xavier Beauvois
O que é realmente importante em Des Hommes Et Des Dieux é que a história (verídica) em que o filme se baseia é quase superficial, irrelevante dentro da sua relevância, objecto de partida mas não de saída (e muito menos de desenvolvimento). Pouco interessa a tragédia (até porque nem a chegamos a ver), pouco interessa a causa daquilo tudo, basta-nos saber o que sabemos à partida. O resto é cinema, o resto é tudo mas tudo o que interessa no cinema, são planos e contra-planos a verter tudo e nada mais do que a incerteza do mundo transfigurada naqueles monges, são os travellings e a découpage a bradar não a tragédia que sabemos que virá mas sim a aceitação humana dessa tragédia, é a mise-en-scène da acção humana e do espaço físico (quer exterior quer interior) da devoção. O que interessa ali é a entrega daqueles monges ao sacrifício, são os silêncios e os olhares e os movimentos, a procura do espírito e da fé e do martírio e do caminho certo que os levará à redenção espiritual. A decisão. O que se quer perceber é a ambiguidade da situação, a escolha entre a dedicação ou lealdade àquele povo e à inerente “missão” ou a fuga do perigo e a preservação das suas vidas, a renúncia às discórdias religiosas (sim, também a óbvia condenação do terrorismo e do fanatismo islâmico) e à desigualdade racial e uma procura obstinada na fraternização dos homens. Nada dos convencionalismos hollywoodescos habituais nestas histórias verídicas, nada de sensibilizações baratas ou de lamúrias desnecessárias, nada de envolvências físicas acaloradas pelo cliché ou pelo temor da morte como vitimização humana. Tudo tão seco e tão frio na captação dos momentos, das decisões e das acções, tudo tão sereno e tão simples, tão fora de modernismos ou facilitismos narrativos e tão próximo dum Dumont sagrado. Dos melhores de 2010 que vi.
21 de fevereiro de 2011
Der Letzte Mann (1924)
Friedrich Wilhelm Murnau
Friedrich Wilhelm Murnau
A Murnau muito se deve no cinema (e se Rohmer dizia que o alemão era o maior de todos os tempos por alguma coisa era e não andava muito longe da verdade). Curiosamente é o seu Nosferatu (não o menor mas muito menos o maior dos seus filmes) o mais reconhecido de todos. De Murnau jamais esquecerei o seu Sunrise e o arrebatador efeito que teve em mim ainda em tenra idade. Coisa rara no cinema, lírica tão lírica e bela tão bela só possível aos grandes, coisa que Der Letzte Mann alcançou igualmente em mim logo instantaneamente. Murnau sabia bem como ir ao fundo do fundo da compaixão humana, ir ao fundo da alma e trazer o que de mais belo o ser humano pode ter, confrontar isso e outras coisas com os temores e os fantasmas do ser humano, com a insensibilidade ou a austeridade da vida, com a sua inevitabilidade. Sim, Murnau sabia bem como ir lá dentro desse fundo, fazer-se sentir em toda a sua forma e grandeza. Mas (como grande expressionista) sabia moldar o ser humano à rigidez do mundo, trazer toda a negrura do mundo e do ser humano. E mais do que toda a obscuridade Murnau sabia como filmar as trevas, como trazê-las ao mundo para atingir o homem e para o tombar no seu declínio físico e psicológico. Qualquer coisa de tão aterradora e tão violenta como o desabar do mundo inteiro em cima do homem, a queda do orgulho ou da dignidade num só segundo. É nisso que Murnau foi mestre, é isso que acontece em Der Letzte Mann e no Sunrise. E todo e qualquer filme do mundo deve sempre qualquer coisa a Murnau.
20 de fevereiro de 2011
I Compagni (1963)
Mario Monicelli
Mario Monicelli
Primeiro Monicelli cá da casa. Tudo e nada mais daquilo que me interessa em cinema, tudo mas mesmo tudo na voluptuosidade com que o procuro, tudo mas mesmo tudo no seu auge do neo-realismo italiano. I Compagni é filme de mestre, não sei se Monicelli o foi (volto a repetir, primeiro Monicelli que vejo) mas I Compagni traz consigo aquele fervor, a veemência, o ímpeto, sei lá… aquela intensidade dum De Sica ou dum Visconti. Brada a tragédia por todos os poros desde o seu princípio laboral até ao seu lirismo final, essa tragédia que é parte integrante daquela realidade, ou seja, uma não vive sem a outra.
Comecemos pelo quotidiano, pelos planos dos trajectos percorridos pelo proletariado em direcção à fábrica, pelos planos (e I Compagni é filme de planos, de enquadramentos, de espaços, de sombras) dos ritos arriscados do proletariado na fábrica, pelo vapor das máquinas, pelo nevoeiro que ludibria a visão dos homens. Comecemos pelo início, pelo despoletar da insurreição contra a desmesurada exploração da mão-de-obra, pela origem da concepção do grito de revolta naquele agregado de operários, pela audácia destes na conquista da coragem para assim enfrentar o poder patronal. Comecemos por isso pelo mais importante, pela maquinaria, pela mecanização do ser humano, pela labuta diária em que o trabalhador encara o perigo e a exaustão do excessivo horário laboral. É aí que Monicelli começa, no princípio da ideia de sublevação do proletariado. Tudo tão belo e tão fervorosamente abismal. A paixão (ou o amor ou o que quer que se lhe assemelhe) pelos ideais, pela justiça laboral e pelos direitos quer laborais quer humanos irrompe com a aparição de Mastroianni, o professor foragido que é o símbolo extremado da luta do proletariado pela justiça laboral. Daí à greve é um passo, uma decisão necessária para protestar contra a opressão e a exploração. A realidade, essa, passa pelos miúdos e graúdos a irem trabalhar na fábrica, passa por esses mesmos miúdos a sustentarem uma casa, a tomarem conta de irmãos mais novos como se de pais se tratassem, passa pela prostituta que acima de tudo não esqueceu donde veio, que possui a compaixão necessária para ajudar quem o precisa. A tomada de consciência na infância, a dureza e a crueldade dessa realidade social, a podridão de certas classes sociais e de certos seres humanos. Negro como as sombras da noite. Monicelli vai ao fundo dessa podridão, às acções mais desprezíveis das entidades patronais e o seu capitalismo, tudo tão inflamado e tão vivo na conspurcação do ser humano. E onde Monicelli desarma o ser humano capaz de tais actos desprezíveis oferece ao oprimido uma dignidade e uma humanidade só possível aos dessa estirpe. Visão negra e realista do ser humano acima de qualquer coisa.
Comecemos pelo quotidiano, pelos planos dos trajectos percorridos pelo proletariado em direcção à fábrica, pelos planos (e I Compagni é filme de planos, de enquadramentos, de espaços, de sombras) dos ritos arriscados do proletariado na fábrica, pelo vapor das máquinas, pelo nevoeiro que ludibria a visão dos homens. Comecemos pelo início, pelo despoletar da insurreição contra a desmesurada exploração da mão-de-obra, pela origem da concepção do grito de revolta naquele agregado de operários, pela audácia destes na conquista da coragem para assim enfrentar o poder patronal. Comecemos por isso pelo mais importante, pela maquinaria, pela mecanização do ser humano, pela labuta diária em que o trabalhador encara o perigo e a exaustão do excessivo horário laboral. É aí que Monicelli começa, no princípio da ideia de sublevação do proletariado. Tudo tão belo e tão fervorosamente abismal. A paixão (ou o amor ou o que quer que se lhe assemelhe) pelos ideais, pela justiça laboral e pelos direitos quer laborais quer humanos irrompe com a aparição de Mastroianni, o professor foragido que é o símbolo extremado da luta do proletariado pela justiça laboral. Daí à greve é um passo, uma decisão necessária para protestar contra a opressão e a exploração. A realidade, essa, passa pelos miúdos e graúdos a irem trabalhar na fábrica, passa por esses mesmos miúdos a sustentarem uma casa, a tomarem conta de irmãos mais novos como se de pais se tratassem, passa pela prostituta que acima de tudo não esqueceu donde veio, que possui a compaixão necessária para ajudar quem o precisa. A tomada de consciência na infância, a dureza e a crueldade dessa realidade social, a podridão de certas classes sociais e de certos seres humanos. Negro como as sombras da noite. Monicelli vai ao fundo dessa podridão, às acções mais desprezíveis das entidades patronais e o seu capitalismo, tudo tão inflamado e tão vivo na conspurcação do ser humano. E onde Monicelli desarma o ser humano capaz de tais actos desprezíveis oferece ao oprimido uma dignidade e uma humanidade só possível aos dessa estirpe. Visão negra e realista do ser humano acima de qualquer coisa.
19 de fevereiro de 2011
As reminiscências de Marienbad face às de Hiroshima
Apetecia-me falar da tristeza ou da revolta interior pelas atrocidades cometidas, falar dessa nefasta acção humana que outrora trucidou milhares de seres humanos. Sei lá, falar dos responsáveis ou dos causadores de tal coisa, falar da aparência que esconde a verdadeira forma do ser. Sim, apetecia-me mas já não me apetece (coisas da vida), porque chego à conclusão que mais vale falar nas memórias, porque penso que era o que Resnais queria transmitir acima de tudo em Hiroshima Mon Amour. Talvez, e talvez é dizer com toda a certeza que mais do que talvez L'année dernière à Marienbad seja a captação mais bela, mais enigmática e mais complexa de qualquer ideia que seja sobre a forma ou sobre a procura dessa forma das memórias (e com isso não digo que Hiroshima lhe fique muito atrás). Talvez (e volta o talvez da certeza) tudo se invoque pela erupção trágica ou mais do que qualquer coisa fugaz nessa erupção trágica que encarne qualquer pensamento ou conjectura individual sobre a definição ou a própria ideia da definição das memórias. Nada de talvezes ou coisas prováveis. Aquilo que Marienbad irrompe no cinema é qualquer coisa de fugaz que se perpetua no tempo mas que recusa essa mesma perpetuidade alegando o esquecimento. Fale-se das memórias como algo abstracto do passado, como algo agarrado ou aprisionado ao tempo, sim e as memórias é que trazem a perpetuidade, mas fale-se acima de tudo que esse algo abstracto ou incorpóreo surge primeiro no passado e só posteriormente nas memórias, o que resume qualquer reflexão ou conjectura ou instigação a uma conjectura da essência das memórias. Sendo assim, nada mas mesmo nada de talvezes ou merdas dessas, o que interessa é a certeza de que tudo ali são memórias instigadas por um passado incerto no qual o esquecimento se intromete. Ora, dentro da imaterialidade do passado surge então a imaterialidade das memórias em conflito interior com a imaterialidade do esquecimento, ou seja, abstracto mais abstracto não há. Aquilo que acontece em Hiroshima Mon Amour não é mais do que a perpetuação da perpetuidade da inalcançável imaterialidade que já acontecera em Marienbad. Isto lá no fundo bem no fundo do âmago, coisa que não implica a variação do esquecimento como resultado dum conflito interior do ser. E é aqui que tudo se distingue de Marienbad. Isto porque em Hiroshima Resnais traz uma certeza ou uma justificação ou fundamentação para esse conflito interior ou para o aparecimento do esquecimento originado por esse conflito interior, o que em Marienbad não acontece, já que aí Resnais se preocupa somente em explorar o momento desse conflito interior que insistentemente resiste a qualquer avivar ou reviver dessas memórias. Nesse sentido Hiroshima é mais filme (ou ficção) e menos experimentação do que Marienbad, já que este tudo faz (quem faz é Resnais claro) para confundir o espectador com a introdução da dúvida do que seja ou não verdade. Ah, a dúvida, por momentos esqueci-me da dúvida, coisa tão importante em Marienbad. E nada disso (de dúvidas ou incertezas) ocorre em Hiroshima. A dúvida do passado, das memórias, do próprio esquecimento, aliás, Marienbad é acima de qualquer coisa, acima de qualquer memória fugaz ou de qualquer aprisionamento das memórias no esquecimento, um filme de dúvida. Nada é certo (ao contrário do que acontece em Hiroshima), tudo é fugaz do mais fugaz que pode haver dentro da incerteza do passado e das suas reminiscências que afectam o presente. Tudo em Marienbad é a exploração da imaterialidade do passado e da dúvida do esquecimento das suas memórias. Não vou negar que Marienbad me agrada mais como cinema, como exploração duma certa experimentação ou ensaio desse conflito interior ou mental do auto-esquecimento que resulta dum trauma qualquer (ou de algo marcante). Esse trauma, que em Marienbad nem se preocupa em o esmiuçar, é em Hiroshima a causa de todo o conflito de que falo, um certo colapso mental que recorre ao esquecimento para continuar a vida. Ora, se em Hiroshima temos uma certeza das reminiscências do passado que resulta na conduta humana no presente, já em Marienbad essas reminiscências do passado são constantemente postas em causa pela dúvida da sua veracidade. O que pode também emergir como similitude nas duas obras (e por força de todo o objecto de estudo, as memórias) é o tempo, a força e a veemência do tempo como utensílio feroz da implacabilidade do esquecimento e consequente ideia de morte (ou mais um adormecimento perpetuo) das memórias inerentes ao trauma (que em Marienbad se especula já que de traumas somos nós que o supomos). Portanto, e para finalizar, onde Hiroshima Mon Amour recorre à desmitificação da memória, ou seja, onde Hiroshima vai buscar toda a certeza do mundo para decifrar a conduta de Emmanuelle Riva e do ser humano (ao trauma e às memórias dele e ao consequente esquecimento dessas memórias do trauma, e por isso Resnais escolheu Hiroshima), L'année dernière à Marienbad recusa desmitificações ou resoluções do enigma e recorre à incerteza e ao sentido inóspito do esquecimento de quaisquer reminiscências como total recuperação dum suposto trauma ou simplesmente recorre à mais pura das imaginações do homem.
18 de fevereiro de 2011
No cinema de Angelopoulos há tanto de belo como de político, uma força estrondosamente violenta que emerge e que explode ali nos nossos olhos, uma força tão crua e tão directa desse sentido político ao que se junta a procura (sempre a procura) duma viagem pela história quer política quer cultural da Grécia. Angelopoulos é acima de tudo um patriótico, orgulhoso da sua pátria, da sua Grécia, mas esse patriotismo é melancólico, é sempre transposto para o ecrã como um lamento ao seu povo. Por isso Angelopoulos é cineasta da melancolia acima de qualquer outra coisa. Tudo no grego transporta essa melancolia do passado, da história da sua Grécia. Tudo é sempre uma viagem melancólica à procura de explorar ou retractar ou dissertar sobre a história, sobre os episódios negros da história da Grécia. E esse orgulho da nação, essa quase que vaidade por ser grego, pela herança dos seus antepassados, isso tudo vem à tona do seu cinema quando (principalmente a partir do Megaleksandros) começa a trazer um sentido mitológico e alegórico para o seu cinema. Sim, há ali sempre o olhar político, sempre o olhar reaccionário (uma aproximação quase que directa ao marxismo, sobretudo na sua primeira trilogia), de lamento e melancolia mas de revolta pelos massacres e pelas guerras, de insurreição pelo sofrimento que o seu povo comportou, sim há sempre isso tudo em Angelopoulos, mas o sentido mitológico vem trazer um grito silencioso como que a individualizar ou engrandecer o povo, como que a imortalizá-lo e a pedir uma urgente libertação dessa condição opressiva. Tudo tão lírico, tão épico e tão belo, tudo tão forçosamente destruidor na sua génese, na sua beleza e no seu lirismo. Sempre a apontar o dedo ao capitalismo, ao fascismo, à corrupção, sempre nesse olhar político e sublevado, desgastado pela amargura numa melancolia e numa falsa quietude das imagens que emerge lá do fundo para irromper dissimuladamente, para ocultamente bradar ao mundo que basta de opressão e de dor. Qualquer coisa tão lírica e tão sensível naquela lentidão dos longos e distantes planos-sequência, na forma esplendorosa e deslumbrante como filma, qualquer coisa tão bela e tão desoladora na imensidão das imagens, na contemplação não só da natureza como da humanidade, dos movimentos do ser humano, dos olhares e das palavras, dos ideais, das formas. Tudo tão próximo de Tarkovsky e de Bresson, influências primárias no seu cinema. E isso está lá sempre em qualquer filme do grego, e por isso Angelopoulos é um dos maiores cineastas de todos os tempos.
17 de fevereiro de 2011
All Quiet on the Western Front (1930)
Lewis Milestone
Lewis Milestone
Coisa tão descrente na pátria é rara, tão ilógica e tão céptica ou desprovida de qualquer ideia de patriotismo ou de orgulho em morrer pela nação. All Quiet on the Western Front é a rejeição total de tal ideia, é o desbravamento súbito do ser humano, a mais pura mensagem anti-guerra e anti-patriótica que um filme já transmitiu, a desmitificação dos heróis da guerra, a exacerbada desumanização do ser humano e da guerra. Milestone filmou (e filmou como um dos grandes, com closes ups audazes para a época, com enquadramentos e movimentos de câmara e planos brilhantes e com uma qualidade de som brutal quando este era ainda coisa recente) acima de qualquer ideia de crítica à guerra ou à sua futilidade uma mesma desmitificação ou dispersão de valores éticos e morais inerentes à pátria e aos deveres do indivíduo para com esta e ultrapassou qualquer farsa ou ilusão sobre orgulhos ou honras do ser humano ou do soldado. Tudo tão intenso a remeter para o valor da vida ou para a sobrevivência, tudo tão contra as legitimidades da/para a guerra, tudo tão negro no conceito do ser humano e na sua relação com esta, tudo tão trágico não só resultante da presença da morte e da guerra como também da ideia da irracionalidade do ser. Porque nada nem ninguém tem legitimidade para criar a guerra, para disseminar essa destruição e devastação pelo mundo. Tudo é inútil, tudo é irracional. E morrer pela pátria é só uma perfeita estupidez.
16 de fevereiro de 2011
Loong Boonmee raleuk chat (2010)
Apichatpong Weerasethakul
Apichatpong Weerasethakul
Weerasethakul, para quem conhece, já se percebeu que é cineasta de alegorias, de fantasmas e crenças budistas. Cineasta de mitos e de memórias. E por isso, nada mas mesmo nada em Loong Boonmee raleuk chat é novo, nada é novidade para quem conhece o cinema deste peculiar cineasta tailandês. Tudo é alegórico, tudo é uma constante procura de materializar essa crença ou esses fantasmas do tailandês, tudo são memórias que ele quer explorar. Tudo tão próximo de um Angelopoulos ou de um Tarr (longos planos-sequência, morosos e distantes) ou de um Tarkovsky (o naturalismo acima de tudo). Enigmático? Sim. Estranho? Sim, muito estranho. Mas belo, fascinante (relativamente claro). Cinema fantástico? Talvez, a fantasia reina ali, a metáfora e a crença (ou descrença?) da reincarnação. Mas não será, porventura, uma fantasia qualquer, ou melhor, não é nada vulgar ou daquele cinema fantástico de Hollywood o que ali vemos. O que é então Loong Boonmee raleuk chat? Como o resto das obras de Weerasethakul, Loong Boonmee raleuk chat é uma procura de dissertar ou explorar a morte e a sua mistificação budista da reincarnação. Mas isto da reincarnação já foi explorado no Sud Pralad e no Sang Sattawat. Volto a dizê-lo, nada de novo. O que acontece aqui, mais do que em qualquer outro filme dele, é a indubitável presença da morte e da fragilidade humana, a condição humana sobretudo. Por isso temos a procura constante em mostrar os tratamentos médicos. Loong Boonmee raleuk chat é sobretudo uma fábula mágica ou sobrenatural da reincarnação, de resto só o título (Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives em inglês) indica tudo. E como disse em cima, o tailandês serve-se de alegorias e de mitos para explorar a reincarnação, mas cria-as sem nos dar respostas (ou pelo menos evitando-as). O búfalo no início do filme e a princesa depressiva devido à falta de beleza física que entra na água e tem relações com um peixe (qual foi Boonmee, a princesa ou o peixe?) são metáforas ou espectros de vidas passadas de Boonmee. Quase no final, Boonme e a cunhada e o sobrinho exploram uma gruta que é dita por ele como uma tumba e como o local onde terá nascido pela primeira vez. Além disso, Weerasethakul traz a mulher de Boonmee (ou o seu espírito) falecida há 14 anos e o filho desaparecido há outros tantos (este como um macaco fantasma) para um jantar de família. Aquilo que consigo perceber destas “aparições” é que se trata das inquietações, ou como diz a princesa quando vê um rosto belo no reflexo da água, de ilusões ou delírios psicológicos de Boonmee (causa da proximidade da morte). E faz sentido, por isso depois vemos ele agarrar-se ao espírito da mulher a lhe perguntar como a encontrará depois de morrer. Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives é uma fábula duma beleza indescritível sobre a reincarnação, sobre a mistificação desta e sobre a morte.
13 de fevereiro de 2011
Fuller, cineasta maldito e incompreendido, tantas vezes injustiçado e difamado sem razão aparente, cineasta antagónico de Capra ou de Ford. Nada de patriotismos ou de lirismos daquele american way of life dos acima citados, não… nada disso, nada de subtilezas ou integridades, nada comparado a Sirk ou a Stahl. Não, nada disso. Fuller, o tal que um dia disse “Film is a battleground. Love, hate, violence, action, death...In a word, emotion”, cineasta do melodrama mundano, explorador das sombras da corrupção do noir, da loucura e da podridão do mundo, da violência e da estupidez da guerra. Cineasta moral na sua lucidez da realidade, rejeita qualquer utopia ou esperança de felicidades ou mundos cor-de-rosa, cineasta da amoralidade, anti-guerra e anti-racista, cineasta da dignidade que se encontra na amoralidade. Todos os seus personagens são indivíduos marginais, à margem da sociedade. E o que Fuller faz é inseri-los no colectivo, dar-lhes a sua dignidade, a sua bondade e a sua capacidade para sobreviver no meio da podridão, da corrupção e da marginalidade. Todos os seus personagens são ora prostitutas, ora ladrões, criminosos ou policias ou soldados racistas que recusam quaisquer integridades. Tudo no caminho do limiar da corrupção, da perversidade e do negrume da vida. Não há hoje em dia cineastas assim em Hollywood (mil Aronofskys, mil Nolans ou mil Scotts e nem assim lhe chegavam aos calcanhares), homens que dentro do sistema o rejeitem (ao sistema), não há. Cineasta da forma e da negrura do mundo e do ser humano, cineasta explosivo, poeta da injustiça e da violência do mundo, homem do submundo. Falo do rebelde, do cinema subversivo que explode, que rejeita qualquer ligeireza ou facilitismo técnico. Nada como Peckinpah (que foi outro dos grandes doutra forma), nada dessa violência física e desmedida, gratuita. Não, tudo como Ray, tudo como um todo classicista alheio a qualquer patriotismo ou qualquer romantismo que se possa querer ou esperar. Sim, tudo isso no negrume do classicismo e do film noir (nada de Tourneur ou de Welles ou de Wilder, tudo tão parecido ao noir de Preminger), coisa visceral na iminência de explodir, na iminência da violência psicológica que anda por ali, tudo á volta da pequenez do ser humano, negro de tão negro que assusta o homem, o homem que nada pode para fugir à sua condição, verme rastejante que luta pela sobrevivência, que se encontra no meio, naquele meio do submundo. É isso que Fuller procura, a perversidade do ser humano, a igualdade do ser, das classes, a universalidade do indivíduo, a sua igualdade inclusive o seu estatuto, a sordidez do mundo, do ser humano, das classes, o submundo, a guerra. E quando falo de guerra falo de toda a guerra, da guerra de Fixed Bayonets!, The Steel Helmet ou desse monumento que é The Big Red One até à guerra interior que todos os seus personagens atravessam tanto em Pickup On South Street como em Forty Guns ou no Shock Corridor ou nos The Steel Helmet e Fixed Bayonets!. Tudo, tudo em Fuller procura esse conflito interior no ser humano. Falo das emoções, falo da forma, falo das sombras. Em Fuller tudo é horroroso, tudo é amoral para acabar na moral, tudo se serve da amoralidade para acabar na moralidade. E isso não só aparece no noir ou na guerra ou no western como no melodrama, no Naked Kiss que tudo faz para nos contar uma estória de redenção duma puta para acabar na condenação da pedofilia, ou no Shock Corridor que tudo aponta para a estória de loucura mas que esconde o anti-racismo (ao contrário do White Dog que o mostra como tema central) e a rejeição da guerra, ou no Pickup On South Street que mostra o combate ao comunismo mas que esconde os princípios do ser humano. Sim, são filmes de princípios, porque de princípios é feito o homem. São coisas inerentes ao ser humano, coisas que só o animal é alheio (e da animalidade vive o homem vil, da falta de dignidade ou de honra). Tudo é possível no homem, toda a escuridão, a negrura, tudo isso é para mostrar o mundo como ele é, não se trata de pessimismo ou coisa semelhante. Nada disso, trata-se de mostrar o ser humano, a forma do ser humano, as acções e os sentimentos deste, o amor. O porquê das coisas, das acções do ser humano, a frieza da marginalidade e do submundo no noir, dos fora-da-lei nos westerns, a implacabilidade do ser humano, do submundo, a dureza, os trajectos, as escolhas e as indecisões do homem. Tudo tão destrutivo, tão devastador, tudo tão implacável na sua forma e na forma de fazer cinema. Tudo tão perto da explosão emocional daqueles personagens, o espaço que comprime naquele tempo aquela veracidade, aquela dureza e emoção dos personagens, o mundo todo ali naqueles personagens. Sei lá, a frieza do olhar, um qualquer lirismo presente ali, por mais fundo que lá esteja ou escondido naquela dureza do olhar, das acções, dos caminhos e dos movimentos, dos raccords, dos planos e contra-planos, dos enquadramentos, da cor ou do preto e branco, das sombras e da escuridão, uma melancolia qualquer presente naquela gente, naquele mundo, uma irracionalidade inerente ao homem, uma resignação ou aceitação da condição humana ou acima disso, da condição social de todo o ser humano. Nada tão belo como isso, nada tão devastador quanto Fuller.
4 de fevereiro de 2011
1 de fevereiro de 2011
Spellbound (1945)
Alfred Hitchcock
Alfred Hitchcock
(…) Essa história dos filmes que não eram para a minha idade, durou até acharem que devia acabar. Julgo que até aos 15-16 anos. Lembro-me de alguns requintes. Levarem-me ao ginásio para ver um documentário sobre o Palácio Pitti e fazerem-me sair da cadeira vinte minutos depois do «filme grande» começar, porque iam também começar as coisas que não eram para a minha idade. O requinte não estava na visão do documentário (de museus sempre gostei tanto como de filmes) mas em me interromperem o prazer que estava a ter. E lembro-me de imensos filmes proibidos, com títulos portugueses mais do que sugestivos (Almas Perversas, Amar Foi a Minha Perdição, O Pecado de Cluny Brown) que eu imaginava – tanto quanto podiam chegar os meus conhecimentos – com imagens não muito diversas dos actuais Coxas Quentes, Orgias Escaldantes ou Bombeiros do Sexo. Desde essa altura, amei esses filmes tão antes de os conhecer, respectivamente, por Scarlet Street, Leave Her to Heaven e Cluny Brown e saber que eram de Fritz Lang, John M. Stahl e Ernst Lubitsch. Porque será que os pais nunca se enganam?
Talvez por isso, ir ao cinema – sobretudo quando ia sozinho, o que começou a acontecer cedo – teve sempre foros de coisa perigosa, ou até mesmo pecaminosa. Depois, tudo se fazia escuro e começava a magia. O spell do tal filme de Hitchcock, disparatadamente traduzido, mas certeiramente conduzido à «casa encantada». Que, no caso, era não só a casa do Dr. Edwards (clínica para doentes mentais e ninfomaníacas) mas o décor pintado por Dali para o primeiro sonho à Freud do cinema: era nesse sonho que se ficava a perceber – como muito, muito mais tarde percebi – que o doente mental não era o médico mau Leo G. Carrol, mas o médico bom Mikhail Chekhov (que, de resto, tinha a quem sair, pois era sobrinho de Tchekov), e a ninfomaníaca não era a rapariga má Rhonda Fleming, mas a rapariga boa Ingrid Bergman. Sem ofensa para ninguém, antes pelo contrário, pois doentes desses foram sempre os que me curaram melhor.
E deve ser essa a razão – uma das razões – para, logo que me falam em filmes da minha vida, me lembrar de Spellbound. E a música de Miklos Rozsa para esse filme ainda hoje é a que mais me diz a zonas sombrias. Por isso, comecei estas crónicas sob o signo desse Selznick-Hitchcock Film e deixei-me ir. (…)
Talvez por isso, ir ao cinema – sobretudo quando ia sozinho, o que começou a acontecer cedo – teve sempre foros de coisa perigosa, ou até mesmo pecaminosa. Depois, tudo se fazia escuro e começava a magia. O spell do tal filme de Hitchcock, disparatadamente traduzido, mas certeiramente conduzido à «casa encantada». Que, no caso, era não só a casa do Dr. Edwards (clínica para doentes mentais e ninfomaníacas) mas o décor pintado por Dali para o primeiro sonho à Freud do cinema: era nesse sonho que se ficava a perceber – como muito, muito mais tarde percebi – que o doente mental não era o médico mau Leo G. Carrol, mas o médico bom Mikhail Chekhov (que, de resto, tinha a quem sair, pois era sobrinho de Tchekov), e a ninfomaníaca não era a rapariga má Rhonda Fleming, mas a rapariga boa Ingrid Bergman. Sem ofensa para ninguém, antes pelo contrário, pois doentes desses foram sempre os que me curaram melhor.
E deve ser essa a razão – uma das razões – para, logo que me falam em filmes da minha vida, me lembrar de Spellbound. E a música de Miklos Rozsa para esse filme ainda hoje é a que mais me diz a zonas sombrias. Por isso, comecei estas crónicas sob o signo desse Selznick-Hitchcock Film e deixei-me ir. (…)
João Bénard da Costa
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