Ao cinema de Muratova atribua-se a capacidade de atingir o surrealismo embrenhado num certo tipo de grotesco ou bizarria, alicerçado num ambiente caótico e, frequentemente, num absurdismo específico e sarcástico, muito próprio e identitário da cineasta. Na verdade, todo o seu cinema está mergulhado num sentido de alienação e de desolação, principalmente Astenicheskiy sindrom (The Asthenic Syndrome) e as obras pós-sovéticas, talvez sinal dum acentuar da perda de identidade nacional que se estende ao individuo, e por isso as suas personagens parecem andar sempre à deriva. É, portanto, um cinema caracterizado pelo insólito - quer narrativa quer visualmente -, pelo seu humor negro e pelo surrealismo, sendo raro vermos no cinema de Muratova alguma coisa linear. De facto, as grandes influências em Muratova parecem ser Chaplin e Buster Keaton, e sobretudo em Vechnoe vozvrashchenie (Eternal Homecoming) e em Dva v odnom (Two in One) é onde a influência da pantomina dos dois mestres é mais realçada; Parajanov, principalmente o seu ascetismo, um certo tipo de rudimentarização e/ou primitivismo; e a nouvelle vague, com a sua descontinuidade temporal e narrativa (sobretudo Godard e Resnais), principalmente em filmes como Korotkie vstrechi (Breves Encontros) e Poznavaya belyy svet (Getting to Know the Big Wide World), onde existe uma presença existencialista mais expressa, mas também onde a convencionalidade cinematográfica mais está presente.
A primeira impressão que um filme de Muratova nos deixa é a de que estamos perante algo difícil de ver e de compreender, mas sobretudo, algo estranho e peculiar que nos atrai (a quem procura algo mais que entretenimento) e não nos deixa indiferente (inclusivamente Uvlecheniya [Petty Passions] onde a acção revolve em torno da afeição por cavalos e nos discursos filosóficos de alguns personagens). Assim, quase todo o cinema de Muratova adquire uma conotação simbólica nas suas abordagens visuais e narrativas, com a desolação, o surrealismo e o absurdismo revelando uma alusão ao comunismo e ao seu fim (ou àquilo que lhe sobreviveu). Astenicheskiy sindrom, Chekhovskie motivy [Chekhov's Motifs], Tri istorii [Three Stories], Vechnoe vozvrashchenie e Dva v odnom são filmes onde as rupturas narrativas e temporais existem para dar essa ambiência e metáfora social e política dum país órfão de sua cultura e tradições que se vê imerso no caos identitário. É como se Muratova tentasse apresentar a Rússia e a Ucrânia pós-soviéticas numa visão etnológica ou num etnocentrismo muito próprio e particular, com uma linguagem tão peculiar e singular que nenhum outro cineasta alcançou.
Magnífica!
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