29 de outubro de 2022


 

1953, Koibumi (Carta de amor), Kinuyo Tanaka


“aquele que nunca pecou
que atire a primeira pedra”
João, 8:1-11


Perto do final desta assombrosa e feérica obra-prima, filme de estreia duma das grandes actrizes do cinema clássico japonês, Kinuyo Tanaka, já em pleno “momento-redenção” de Reikichi, Yamaji diz-lhe (a Reikichi), “aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra”, resumindo numa citação bíblica aquilo de que no fundo trata Koibumi, o perdão. Desse momento até ao final pouco mais nos será mostrado, apenas todo o arrependimento do mundo num homem assombrado pelo orgulho e pela mágoa ao levar as mãos à cara.

Koibumi é filme de quem aprendeu bem com os mestres com quem trabalhou (de Mizoguchi a Ozu, de Naruse a Kinoshita…), é filme de quem percebeu a intensidade e o rigor do momento de aproximar a câmara ou o seu posicionamento. Tanaka filma magistralmente uma história do pós-guerra com o mesmo lirismo e o mesmo vigor de Naruse ou de Mizoguchi, lança-nos num neo-realismo “viscontiano” e “naruseano”, onde o conflito interior expia as feridas abertas do passado e gera a neblina sobre o futuro… na verdade, a redenção é mútua, a salvação é desejada por aquelas duas almas trucidadas pela guerra e suas vicissitudes.

Koibumi, ainda que imerja num realismo ambientado pelo contexto social dum pós-guerra ainda recente, ainda sob ocupação e ainda com as feridas por sarar, é na sua complexidade um melodrama psicológico. Reikichi é um homem amargurado, espelho da nação, vive isolado e sustentado pelo irmão mais novo, o tal que compra livros baratos e os revende muito mais caros, o tal que lhe diz que sair lhe faria bem… e é numa saída que encontra um camarada de guerra que lhe arranja essa estranha forma de ganhar dinheiro que é escrever cartas de amor (sobretudo de mulheres para os soldados ingleses). É aí que voltará a encontrar Michiko (sublime interpretação de Yoshiko Kuga) e a esperança do amor se reacende… mas é também aí que fica a conhecer o seu passado…

Portanto, é naquele final tão mesto quanto ledo, tão sacro quanto feérico, tão melancólico quanto redentor, que o maravilhamento eclode e nos arrebata, é naquele final que o todo se une e que a grandiosidade do filme de Tanaka se nos declara. Monumental!

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