28 de setembro de 2025

 

Pursued (Raoul Walsh, 1947) 


“Toda a vida é um mistério. O passado e o futuro, o arco-íris e
o luar. Quem sabe para onde vão as nuvens, que desaparecem
no céu sem deixar rasto? O universo inteiro talvez
não seja senão uma miragem, uma nuvem de areia que passa e que
desaparece.”

RAOUL WALSH
(diálogo de Pretty Boy em A Cólera dos Justos, 1972)



No prefácio do catálogo que a Cinemateca Francesa dedicou, em 2001, a Raoul Walsh (“A drink to the next take”) Peter von Bagh compara, imaginativa e inteligentemente, Uncertain Glory, filme de 1944, três anos anteriores a este, com um quadro cubista. “Qualquer que seja o ângulo de onde o vimos, não é nem evidente nem unidimensional”.

Como muitos estarão lembrados, em 2001 também a Cinemateca Portuguesa dedicou uma integral a Raoul Walsh. Das coisas que então mais me surpreenderam (numa visão sequencial dos filmes) foi exactamente essa multiplicidade de dimensões, essa suspensão das evidências, permitindo sempre ver nas formas, nos personagens e nas histórias, outro sentido (ou um sentido muito diferente) do que, à primeira vista, parecem significar. Nunca tinha reparado bem nisso e só então se me tornou evidente que Walsh, nesse aspecto, é o oposto do que Rivette achou que Hawks era: “um cineasta da evidência”.

Se puxei esta conversa, é porque se tem dito que Pursued, eventualmente o mais belo dos Walsh (por mim, continuo a pensá-lo) é um filme pouco walshiano, aventurando-se em terrenos (a psicanálise, o sentido grego de destino, o óbvio tema do incesto) que se afastam do mundo directo e telúrico de Walsh, pouco dado a tais meandros e a tais complexidades argumentativas. Não falta quem sustente que o verdadeiro autor do filme é o escritor Niven Busch, estabelecendo paralelos inegáveis com outras obras baseadas nele, nomeadamente o célebre Duel in the Sun, realizado por King Vidor no mesmo ano e que se estreou pouco depois de Pursued. Duel in the Sun e Pursued, devido à capital colaboração de Busch – tem-se dito – seriam os primeiros “westerns psicológicos”, antecipando exemplos célebres da década seguinte, como Rancho Notorious (Fritz Lang), Johnny Guitar (Nicholas Ray) ou os westerns de Aldrich (Apache ou Vera Cruz) ou de Fuller (Run of the Arrow, Forty Guns). E comparou-se, inevitavelmente, a relação de amor-ódio entre Robert Mitchum e Teresa Wright com a relação de amor-ódio entre Jennifer Jones e Gregory Peck em Duel in the Sun, com a mulher a tentar matar (Pursued) ou a matar (Duel in the Sun) o homem que ama. Além disso, os dois são filmes de irmãos e em que a relação entre irmãos tem uma função trágica aproximável. 

O próprio cast, dominado por dois actores que Walsh apenas dirigiu neste filme, teria a marca Busch. Teresa Wright era, à época (1942-1952), mulher de Busch e foi ele quem a impôs. Robert Mitchum, que emergira do anonimato em 1945 com a sua nomeação para o “oscar” de melhor secundário em The Story of G.I.Joe (William Wellman), tivera o seu primeiro grande papel de protagonista em Till the End of Time (Edward Dmytryk) de 1946, baseado no romance de Busch They Dream at Home. Foi Busch quem convenceu a Warner a dar-lhe o papel, substituindo o previsto John Garfield.

Niven Busch, aliás, não deixou os seus créditos por Walsh alheio. Em 1986, em entrevista a David Thomson, afirmou: “Tive um controle absoluto sobre este filme. E fiquei muito, muito feliz com o resultado. Tive actores maravilhosos, uma equipa técnica formidável e o melhor director de fotografia do mundo (James Wong Howe). Tenho muito orgulho nessa história e no seu lado grego – o sentimento do incesto e tudo isso, de que o Oeste está muito próximo. A Grécia antiga devia assemelhar-se imenso ao Oeste. As paixões dominavam e as armas seguiam-nas”

Mas, se é indiscutível a marca de Busch em Pursued, é-me evidente, hoje, que esses temas e essas obsessões em nada são estranhos ao mundo de Walsh (Busch e Walsh voltaram a colaborar, aliás, no soberbo Distant Drums, de 1951, remake elíptico de Objective Burma! e último filme da fase Warner de Walsh). E não tenho dúvidas que a Walsh se deve que o lado “literário” do argumento, com referências salientes a clássicos do novecentismo anglo-americano como Master of Ballantrae de Robert Louis Stevenson ou Wuthering Heights de Emily Brontë, fique, sempre, numa espécie de surdina envolvente, que reforça a matriz mítica sem jamais a evidenciar. Duas curtas declarações de Walsh (sempre muito parco em palavras) vão mais ao cerne do filme do que as afirmações de Busch. A primeira foi feita aos “Cahiers du Cinéma”, em 1964: “Gosto muito deste filme. É um western muito insólito, estranhíssimo. Há uma atmosfera fantástica ao longo de todo o filme. É quase uma história de fantasmas”. A segunda, consta das memórias (Each Man in His Time), publicadas em 1974: “Em Pursued, um western “psicológico”, diferente de todos os outros filmes que realizei, dirigi Robert Mitchum, um dos melhores ‘actores naturais’ que jamais conheci. O filme foi ajudado pelas fortíssimas interpretações de Judith Anderson, cuja infidelidade foi a causa do pecado do pai, e de Teresa Wright, a tão sensível filha dela. Fizemos um grande ‘wide-angle shot’, com Mitchum a ser seguido, a grande distância, pelo filho de Judith (John Rodney), mostrando-o muito pequenino mas inexorável, agachando-se no alto de um monte, esperando que o outro estivesse no ponto de mira da sua espingarda para disparar. O climax é certeiramente violento”

Pursued, mais do que um western psicológico ou psicanalítico, é um filme de fantasmas (nunca Robert Mitchum foi tão fantomático), mais do que um filme sobre o incesto, é um filme sobre a relação mãe-filha (com Teresa Wright recusando-se a repetir, circularmente, a história da mãe) e, mais do que um filme de digressões, é um filme violento e envolvente, dominado pelo colossal aproveitamento das fortalezas rochosas de Monument Valley e do Novo México, verdadeira “paisagem mental”, como bem notou Michael Henry Wilson.

Aliás, quem aproximou Pursued e Duel in the Sun, não terá reparado que a estrutura operática deste último filme (mais do que um “western psicológico” um “western-ópera”) é o oposto da “música de câmara” de Pursued e que o equivalente mais poderoso da morte dos amantes do filme de Vidor não está em Pursued (onde os amantes não morrem) mas, a procurá-lo em Walsh, estará em Colorado Territory, nas mortes fabulosas de Joel McCrea e Virginia Mayo. E foi a propósito de Colorado Territory que Walsh disse aos “Cahiers”, no número citado de 1964, algo que se aplica também, e com total inteireza, a Pursued: “sempre quis que se notasse nos meus filmes que existe uma ameaça oculta, como se algo fosse explodir, uma espécie de “surpresa”. Como se qualquer coisa de indeterminado, de desconhecido, de ameaçador, estivesse para acontecer (…) Quando introduzo uma cena ‘fantástica’ num dos meus filmes, a minha intenção é simplicíssima: o que pretendo é afastar o espectador da história por alguns momentos, fazê-lo esquecê-la, para melhor o meter nela depois”

Pense-se na prodigiosa abertura deste filme: aquele vastíssimo plano de conjunto sobre a paisagem e as rochas ciclópicas, onde um cavalo galopa velocissimamente. Quem é o cavaleiro? Só ao fim de alguns momentos, quando a câmara se aproxima, descobrimos que não é cavaleiro, mas cavaleira e que quem desfila à rédea solta é Teresa Wright. Muito mais tarde, saberemos que é o dia seguinte ao da noite de núpcias dela e que “voa” para se encontrar com o marido, ameaçado de morte, nas ruínas da casa que foi da sua família e onde foram enterrados os seus mortos. Vem para um último adeus, mas das razões de tudo isso, ainda de nada sabemos. O que sentimos é essa ameaça, essa ameaça oculta, é essa maldição que pesa sobre os protagonistas, de cujos laços tudo ignoramos. Pouco depois, surge o primeiro plano fantástico. Mitchum “vê” o homem de negro (Dean Jagger) mas esse homem não está lá. Impossível não pensar no Tabu de Murnau e na aparição do velho à rapariga (a comparação também foi feita por Patrice Rollet, no excelente artigo – Dans un miroir, obscurement – publicado no nº 28 da Trafic, em 1998). E, logo a seguir, surge (primeiro flash-back) a imagem recorrente e mais inesquecível desta obra: as esporas, em grande plano do assassino, vistas pelo olhar aterrorizado de um miúdo louro, escondido debaixo da cama, única imagem que Mitchum guardou da cena de horror que presenciou aos quatro anos e de que recalcou tudo o resto. O que se passou nesse dia longínquo é o que sempre quererá saber e lhe será oculto quase até ao fim.

Segue-se o flash-back que praticamente constitui todo o filme e que é um dos mais insólitos exemplos de flash-back de que me consigo lembrar. A quem narra Robert Mitchum toda a história, desde o dia em que lhe mataram os pais (ou o pai, suprema ambiguidade que a narração não esclarece, pois que a existência ou inexistência de uma mãe, nessa altura, não é nada displicenda) até ao dia do clímax final? Narra-a a Teresa Wright, que é suposto conhecer a história tão bem (ou tão mal) quanto ele. Inclusive todo o romance de amor entre eles cabe nesse flash-back, como se ela o ignorasse. Mas como, de facto, e dramaticamente, a narração se destina ao espectador (que ficou tão suspenso do que se passou naquele dia longínquo como o protagonista) nunca nos damos conta disso e o processo funciona como se fosse dramaturgicamente verosímil.

Como funcionam as muitas obscuridades dessa narração. Exemplifico: quais as razões porque Callum (e raras vezes um personagem terá sido tão reduzido e ampliado na sua dimensão de silhueta, como o prodigioso Dean Jagger neste filme) retarda tanto tempo a vingança sobre o filho do seu rival? É verdade que, logo no início, diz à não menos prodigiosa Judith Anderson (Medora) que não vai matar a criança, porque quer saber o que ele será em adulto. Mas Mitchum é adulto há muito, quando Callum se decide a matá-lo e só se decide a isso quando ele casou com Teresa Wright. Porquê? Tentou-o, antes, por interposta pessoa (o noivo de Thor) mas é só durante a noite de núpcias que enfrenta Mitchum. Porquê, repito? Quais as razões porque jamais se vinga da infidelidade da sua ex-mulher, como mandariam os códigos de honra então vigentes? Quais as razões porque Medora parece desejar que o castigo se abata sobre Mitchum? Outras tantas perguntas, para que jamais há resposta e que constituem o outro “oculto” deste filme, como a real possibilidade de Mitchum e Teresa Wright serem de facto irmãos (o que determinou a proibição do filme em Portugal, em 1948) pois que nunca sabemos quanto tempo demorou a relação adúltera entre Medora e o pai Rand.

Patrice Rollet, no artigo citado, fala de um “destino funesto que pesa sobre os ombros do herói, destino tão funesto que o leva a matar, sem saber quem mata, numa explosão de “hybris”, o “irmão” e, depois, em “legítima defesa”, o noivo da “irmã”, nesta Tebaida do Oeste, em que o pecado de Medora/Jocasta com o pai dele conduz, inelutavelmente, ao confronto entre os filhos de Édipo. Confronto entre Jeb/Eteoclo e Adam/Polinice, em que está reservado a Thor, moderna Antígona, o papel de enterrar os mortos. Sobre Jeb (Mitchum) abate-se, do exterior, o pecado do pai e a maldição, de que desconhece a causa. 

Mas Thor assume conscientemente o seu papel tumular, quando prepara a vingança, matando-o na noite de núpcias e realizando assim – humor de Walsh – o seu desejo de rapariguinha de ser seduzida como uma mulher. Fecha-se na solidão de um segredo que não pode confiar a ninguém, nem mesmo à mãe”. Interpretação demasiado erudita? É possível. Mas o que vemos, desde o dia em que Jeb, criança, é deitado na cama ao lado dela, em posição inversa à do irmão, é uma atracção entre aqueles dois seres que evoca, em filigrana, a de Heathcliff e Cathy no Monte dos Vendavais. Como Cathy e Heathcliff se dirão: “You and I are much alike”. 

Só que todo o “namoro” parece ser “normal” até ao regresso de Jeb da guerra, para se transmudar em ódio, quando Jeb é aceite como “filho” pela mãe e a rivalidade latente com Adam explode no conflito mortal. 

As três sequências mais prodigiosas deste filme (para além da própria morte de Adam, de que Walsh tanto se orgulhou) situam-se no quadro desse ódio: 

a) a sequência do baile, quando Jeb, expulso do paraíso depois da morte de Adam, regressa para dançar com Thor (já noiva de Prentice) obrigando-a a dançar contra e a favor do desejo dela; 

b) a sequência do enterro de Prentice, com a luz transformando todas as aparências, todos os pretos e todos os brancos, preparando a metamorfose da noiva de luto na noiva de branco; 

c) a sequência do casamento, terrível na sua brevidade e com a luz a assumir papel dramático inverso ao do enterro, pois que é nela que a luz da morte mais fantasmagoriza a protagonista.

Essas três sequências inadjectiváveis preparam a da noite de núpcias. Teresa Wright quer matar o marido, mas oferece-se-lhe em demorada toilette (o abrir do decote, o perfume) até que o próprio Mitchum lhe entrega, com os bolos e os copos, a pistola para ela o matar. “Because I hate you so much, my hands shaked”. “Your hands shaked, but not because you hate me”. É nessa noite que Teresa Wright (tão misteriosa como só o fora em Shadow of a Doubt de Hitchcock) se descobre “irmã de um só irmão”, mesmo que essa fraternidade seja bifronte. 

E ainda não falei daquele plano genial em que ela entra, com enorme lentidão e num enorme vazio, na casa e no escuro, em que, entre velas, espelhos e o cão, se prepara para a morte e para matar. Desse vagar, desse ritual, dessa magia, irrompe, na madrugada seguinte, depois de Jeb ser cercado pelos homens de Callum, a velocidade alucinante que vimos no início. E é nessa madrugada que Mitchum recorda tudo e a mulher que nunca lhe quis contar nada lhe salva a vida matando o homem das esporas.

Na luz dessa madrugada os fantasmas dissipam-se com o gesto vingador de Medora e a morte de Grant. Mas será menos fantomático o abraço final de Mitchum e Teresa Wright? 

“Qualquer que seja o ângulo de onde o virmos... “ Não vou repetir a citação de Peter von Bagh. Vou só pedir que voltem a pensar na luz do casamento, no espelho do quarto nupcial, através do qual Thor vê Jeb entrar. Vou só pedir que voltem a ouvir a caixa de música e o ganir do cão. Talvez tudo mesmo seja uma miragem. Mas, se o for, nenhuma mais bela do que a história de Jeb Rand e de Thor Callum, filhos malditos de malditos progenitores, em 1947 vista e contada por Raoul Walsh. 

JOÃO BÉNARD DA COSTA

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