Pursued (Raoul Walsh, 1947)
“Toda a vida é um mistério. O passado e o futuro, o arco-íris e
o luar. Quem sabe para onde vão as nuvens, que desaparecem
no céu sem deixar rasto? O universo inteiro talvez
não seja
senão uma miragem, uma nuvem de areia que passa e que
desaparece.”
RAOUL WALSH
(diálogo de Pretty Boy em A Cólera dos Justos, 1972)
No prefácio do catálogo que a Cinemateca Francesa dedicou, em 2001, a Raoul Walsh (“A drink to
the next take”) Peter von Bagh compara, imaginativa e inteligentemente, Uncertain Glory, filme
de 1944, três anos anteriores a este, com um quadro cubista. “Qualquer que seja o ângulo de
onde o vimos, não é nem evidente nem unidimensional”.
Como muitos estarão lembrados, em 2001 também a Cinemateca Portuguesa dedicou uma integral
a Raoul Walsh. Das coisas que então mais me surpreenderam (numa visão sequencial dos filmes)
foi exactamente essa multiplicidade de dimensões, essa suspensão das evidências, permitindo
sempre ver nas formas, nos personagens e nas histórias, outro sentido (ou um sentido muito
diferente) do que, à primeira vista, parecem significar. Nunca tinha reparado bem nisso e só então
se me tornou evidente que Walsh, nesse aspecto, é o oposto do que Rivette achou que Hawks
era: “um cineasta da evidência”.
Se puxei esta conversa, é porque se tem dito que Pursued, eventualmente o mais belo dos Walsh
(por mim, continuo a pensá-lo) é um filme pouco walshiano, aventurando-se em terrenos (a
psicanálise, o sentido grego de destino, o óbvio tema do incesto) que se afastam do mundo
directo e telúrico de Walsh, pouco dado a tais meandros e a tais complexidades argumentativas.
Não falta quem sustente que o verdadeiro autor do filme é o escritor Niven Busch, estabelecendo
paralelos inegáveis com outras obras baseadas nele, nomeadamente o célebre Duel in the Sun,
realizado por King Vidor no mesmo ano e que se estreou pouco depois de Pursued. Duel in the
Sun e Pursued, devido à capital colaboração de Busch – tem-se dito – seriam os primeiros
“westerns psicológicos”, antecipando exemplos célebres da década seguinte, como Rancho
Notorious (Fritz Lang), Johnny Guitar (Nicholas Ray) ou os westerns de Aldrich (Apache ou
Vera Cruz) ou de Fuller (Run of the Arrow, Forty Guns). E comparou-se, inevitavelmente, a
relação de amor-ódio entre Robert Mitchum e Teresa Wright com a relação de amor-ódio entre
Jennifer Jones e Gregory Peck em Duel in the Sun, com a mulher a tentar matar (Pursued) ou a
matar (Duel in the Sun) o homem que ama. Além disso, os dois são filmes de irmãos e em que a
relação entre irmãos tem uma função trágica aproximável.
O próprio cast, dominado por dois actores que Walsh apenas dirigiu neste filme, teria a marca
Busch. Teresa Wright era, à época (1942-1952), mulher de Busch e foi ele quem a impôs. Robert
Mitchum, que emergira do anonimato em 1945 com a sua nomeação para o “oscar” de melhor
secundário em The Story of G.I.Joe (William Wellman), tivera o seu primeiro grande papel de
protagonista em Till the End of Time (Edward Dmytryk) de 1946, baseado no romance de Busch
They Dream at Home. Foi Busch quem convenceu a Warner a dar-lhe o papel, substituindo o
previsto John Garfield.
Niven Busch, aliás, não deixou os seus créditos por Walsh alheio. Em 1986, em entrevista a David
Thomson, afirmou: “Tive um controle absoluto sobre este filme. E fiquei muito, muito feliz com o
resultado. Tive actores maravilhosos, uma equipa técnica formidável e o melhor director de
fotografia do mundo (James Wong Howe). Tenho muito orgulho nessa história e no seu lado
grego – o sentimento do incesto e tudo isso, de que o Oeste está muito próximo. A Grécia antiga
devia assemelhar-se imenso ao Oeste. As paixões dominavam e as armas seguiam-nas”.
Mas, se é indiscutível a marca de Busch em Pursued, é-me evidente, hoje, que esses temas e
essas obsessões em nada são estranhos ao mundo de Walsh (Busch e Walsh voltaram a colaborar,
aliás, no soberbo Distant Drums, de 1951, remake elíptico de Objective Burma! e último filme
da fase Warner de Walsh). E não tenho dúvidas que a Walsh se deve que o lado “literário” do
argumento, com referências salientes a clássicos do novecentismo anglo-americano como Master
of Ballantrae de Robert Louis Stevenson ou Wuthering Heights de Emily Brontë, fique,
sempre, numa espécie de surdina envolvente, que reforça a matriz mítica sem jamais a evidenciar.
Duas curtas declarações de Walsh (sempre muito parco em palavras) vão mais ao cerne do filme
do que as afirmações de Busch. A primeira foi feita aos “Cahiers du Cinéma”, em 1964: “Gosto
muito deste filme. É um western muito insólito, estranhíssimo. Há uma atmosfera fantástica ao
longo de todo o filme. É quase uma história de fantasmas”. A segunda, consta das memórias
(Each Man in His Time), publicadas em 1974: “Em Pursued, um western “psicológico”,
diferente de todos os outros filmes que realizei, dirigi Robert Mitchum, um dos melhores ‘actores
naturais’ que jamais conheci. O filme foi ajudado pelas fortíssimas interpretações de Judith
Anderson, cuja infidelidade foi a causa do pecado do pai, e de Teresa Wright, a tão sensível filha
dela. Fizemos um grande ‘wide-angle shot’, com Mitchum a ser seguido, a grande distância, pelo
filho de Judith (John Rodney), mostrando-o muito pequenino mas inexorável, agachando-se no
alto de um monte, esperando que o outro estivesse no ponto de mira da sua espingarda para
disparar. O climax é certeiramente violento”.
Pursued, mais do que um western psicológico ou psicanalítico, é um filme de fantasmas (nunca
Robert Mitchum foi tão fantomático), mais do que um filme sobre o incesto, é um filme sobre a
relação mãe-filha (com Teresa Wright recusando-se a repetir, circularmente, a história da mãe) e,
mais do que um filme de digressões, é um filme violento e envolvente, dominado pelo colossal
aproveitamento das fortalezas rochosas de Monument Valley e do Novo México, verdadeira
“paisagem mental”, como bem notou Michael Henry Wilson.
Aliás, quem aproximou Pursued e Duel in the Sun, não terá reparado que a estrutura operática
deste último filme (mais do que um “western psicológico” um “western-ópera”) é o oposto da
“música de câmara” de Pursued e que o equivalente mais poderoso da morte dos amantes do
filme de Vidor não está em Pursued (onde os amantes não morrem) mas, a procurá-lo em Walsh,
estará em Colorado Territory, nas mortes fabulosas de Joel McCrea e Virginia Mayo. E foi a
propósito de Colorado Territory que Walsh disse aos “Cahiers”, no número citado de 1964, algo
que se aplica também, e com total inteireza, a Pursued: “sempre quis que se notasse nos meus
filmes que existe uma ameaça oculta, como se algo fosse explodir, uma espécie de “surpresa”.
Como se qualquer coisa de indeterminado, de desconhecido, de ameaçador, estivesse para
acontecer (…) Quando introduzo uma cena ‘fantástica’ num dos meus filmes, a minha intenção é
simplicíssima: o que pretendo é afastar o espectador da história por alguns momentos, fazê-lo
esquecê-la, para melhor o meter nela depois”.
Pense-se na prodigiosa abertura deste filme: aquele vastíssimo plano de conjunto sobre a
paisagem e as rochas ciclópicas, onde um cavalo galopa velocissimamente. Quem é o cavaleiro?
Só ao fim de alguns momentos, quando a câmara se aproxima, descobrimos que não é cavaleiro,
mas cavaleira e que quem desfila à rédea solta é Teresa Wright. Muito mais tarde, saberemos que
é o dia seguinte ao da noite de núpcias dela e que “voa” para se encontrar com o marido,
ameaçado de morte, nas ruínas da casa que foi da sua família e onde foram enterrados os seus
mortos. Vem para um último adeus, mas das razões de tudo isso, ainda de nada sabemos. O que
sentimos é essa ameaça, essa ameaça oculta, é essa maldição que pesa sobre os protagonistas,
de cujos laços tudo ignoramos. Pouco depois, surge o primeiro plano fantástico. Mitchum “vê” o
homem de negro (Dean Jagger) mas esse homem não está lá. Impossível não pensar no Tabu de
Murnau e na aparição do velho à rapariga (a comparação também foi feita por Patrice Rollet, no
excelente artigo – Dans un miroir, obscurement – publicado no nº 28 da Trafic, em 1998). E,
logo a seguir, surge (primeiro flash-back) a imagem recorrente e mais inesquecível desta obra: as
esporas, em grande plano do assassino, vistas pelo olhar aterrorizado de um miúdo louro,
escondido debaixo da cama, única imagem que Mitchum guardou da cena de horror que
presenciou aos quatro anos e de que recalcou tudo o resto. O que se passou nesse dia longínquo
é o que sempre quererá saber e lhe será oculto quase até ao fim.
Segue-se o flash-back que praticamente constitui todo o filme e que é um dos mais insólitos
exemplos de flash-back de que me consigo lembrar. A quem narra Robert Mitchum toda a história,
desde o dia em que lhe mataram os pais (ou o pai, suprema ambiguidade que a narração não
esclarece, pois que a existência ou inexistência de uma mãe, nessa altura, não é nada displicenda)
até ao dia do clímax final? Narra-a a Teresa Wright, que é suposto conhecer a história tão bem (ou
tão mal) quanto ele. Inclusive todo o romance de amor entre eles cabe nesse flash-back, como se
ela o ignorasse. Mas como, de facto, e dramaticamente, a narração se destina ao espectador (que
ficou tão suspenso do que se passou naquele dia longínquo como o protagonista) nunca nos
damos conta disso e o processo funciona como se fosse dramaturgicamente verosímil.
Como funcionam as muitas obscuridades dessa narração. Exemplifico: quais as razões porque
Callum (e raras vezes um personagem terá sido tão reduzido e ampliado na sua dimensão de
silhueta, como o prodigioso Dean Jagger neste filme) retarda tanto tempo a vingança sobre o filho
do seu rival? É verdade que, logo no início, diz à não menos prodigiosa Judith Anderson (Medora)
que não vai matar a criança, porque quer saber o que ele será em adulto. Mas Mitchum é adulto
há muito, quando Callum se decide a matá-lo e só se decide a isso quando ele casou com Teresa
Wright. Porquê? Tentou-o, antes, por interposta pessoa (o noivo de Thor) mas é só durante a
noite de núpcias que enfrenta Mitchum. Porquê, repito? Quais as razões porque jamais se vinga da
infidelidade da sua ex-mulher, como mandariam os códigos de honra então vigentes? Quais as
razões porque Medora parece desejar que o castigo se abata sobre Mitchum? Outras tantas
perguntas, para que jamais há resposta e que constituem o outro “oculto” deste filme, como a real
possibilidade de Mitchum e Teresa Wright serem de facto irmãos (o que determinou a proibição do
filme em Portugal, em 1948) pois que nunca sabemos quanto tempo demorou a relação adúltera
entre Medora e o pai Rand.
Patrice Rollet, no artigo citado, fala de um “destino funesto que pesa sobre os ombros do herói,
destino tão funesto que o leva a matar, sem saber quem mata, numa explosão de “hybris”, o
“irmão” e, depois, em “legítima defesa”, o noivo da “irmã”, nesta Tebaida do Oeste, em que o
pecado de Medora/Jocasta com o pai dele conduz, inelutavelmente, ao confronto entre os filhos de
Édipo. Confronto entre Jeb/Eteoclo e Adam/Polinice, em que está reservado a Thor, moderna
Antígona, o papel de enterrar os mortos. Sobre Jeb (Mitchum) abate-se, do exterior, o pecado do
pai e a maldição, de que desconhece a causa.
Mas Thor assume conscientemente o seu papel tumular, quando prepara a vingança, matando-o
na noite de núpcias e realizando assim – humor de Walsh – o seu desejo de rapariguinha de ser
seduzida como uma mulher. Fecha-se na solidão de um segredo que não pode confiar a ninguém,
nem mesmo à mãe”.
Interpretação demasiado erudita? É possível. Mas o que vemos, desde o dia em que Jeb, criança,
é deitado na cama ao lado dela, em posição inversa à do irmão, é uma atracção entre aqueles dois
seres que evoca, em filigrana, a de Heathcliff e Cathy no Monte dos Vendavais. Como Cathy e
Heathcliff se dirão: “You and I are much alike”.
Só que todo o “namoro” parece ser “normal” até ao regresso de Jeb da guerra, para se
transmudar em ódio, quando Jeb é aceite como “filho” pela mãe e a rivalidade latente com Adam
explode no conflito mortal.
As três sequências mais prodigiosas deste filme (para além da própria morte de Adam, de que
Walsh tanto se orgulhou) situam-se no quadro desse ódio:
a) a sequência do baile, quando Jeb, expulso do paraíso depois da morte de Adam, regressa para
dançar com Thor (já noiva de Prentice) obrigando-a a dançar contra e a favor do desejo dela;
b) a sequência do enterro de Prentice, com a luz transformando todas as aparências, todos os
pretos e todos os brancos, preparando a metamorfose da noiva de luto na noiva de branco;
c) a sequência do casamento, terrível na sua brevidade e com a luz a assumir papel dramático
inverso ao do enterro, pois que é nela que a luz da morte mais fantasmagoriza a protagonista.
Essas três sequências inadjectiváveis preparam a da noite de núpcias. Teresa Wright quer matar o
marido, mas oferece-se-lhe em demorada toilette (o abrir do decote, o perfume) até que o próprio
Mitchum lhe entrega, com os bolos e os copos, a pistola para ela o matar. “Because I hate you so
much, my hands shaked”. “Your hands shaked, but not because you hate me”. É nessa noite que
Teresa Wright (tão misteriosa como só o fora em Shadow of a Doubt de Hitchcock) se descobre
“irmã de um só irmão”, mesmo que essa fraternidade seja bifronte.
E ainda não falei daquele plano genial em que ela entra, com enorme lentidão e num enorme
vazio, na casa e no escuro, em que, entre velas, espelhos e o cão, se prepara para a morte e para
matar. Desse vagar, desse ritual, dessa magia, irrompe, na madrugada seguinte, depois de Jeb ser
cercado pelos homens de Callum, a velocidade alucinante que vimos no início. E é nessa
madrugada que Mitchum recorda tudo e a mulher que nunca lhe quis contar nada lhe salva a vida
matando o homem das esporas.
Na luz dessa madrugada os fantasmas dissipam-se com o gesto vingador de Medora e a morte de
Grant. Mas será menos fantomático o abraço final de Mitchum e Teresa Wright?
“Qualquer que seja o ângulo de onde o virmos... “ Não vou repetir a citação de Peter von Bagh.
Vou só pedir que voltem a pensar na luz do casamento, no espelho do quarto nupcial, através do
qual Thor vê Jeb entrar. Vou só pedir que voltem a ouvir a caixa de música e o ganir do cão.
Talvez tudo mesmo seja uma miragem. Mas, se o for, nenhuma mais bela do que a história de Jeb
Rand e de Thor Callum, filhos malditos de malditos progenitores, em 1947 vista e contada por
Raoul Walsh.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
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