27 de dezembro de 2021
26 de dezembro de 2021
A France de Dumont, a personagem do filme, é na verdade uma personificação da France, o país, que se auto-reinventa, “que vai ao fundo e volta ao cimo”, que se renova, renasce, para no fim se quedar pela resignação e pela esperança (ou fé) nos outros e na sua reabilitação (assim como na sua), ou simplesmente pela escolha do “mal menor”. Na verdade, France diz-nos que o mundo é negro e cíclico, pessimista (como tudo a que Dumont diz respeito o é) e um grande teatro. É precisamente essa falsidade do mundo que Dumont quer mostrar, a sua artificialidade (e talvez não seja por acaso, ou mera coincidência, France ser o filme mais artificial, mais digital e mais visualmente embelezado de Dumont), dos meios de comunicação, da televisão, a mediatização e a popularização disso tudo, a forma como tudo é criado, nutrido e desenvolvido para a conquista do estrelato, da popularidade, a falta de escrúpulos e de honestidade que reina no mundo da televisão.
France é uma viagem pela descoberta interior de quem tem tudo menos o mais importante, afecto e estabilidade familiar e emocional. Ali percorrem-se caminhos de auto-descoberta, enfrenta-se uma instabilidade emocional causada por um incidente quase insignificante (oposto do que ocorrerá lá perto do final) que a levará (à estrela jornalística) a questionar a vida e o trabalho… o sucesso profissional contrasta com o insucesso familiar, mergulhado numa distância abismal entre ela e o marido e até o filho… é na perda que se valoriza… a artificialidade e falsidade por si criada e mantida na sua profissão estende-se e abarca o seu seio familiar, a comunicação é parca e quando existe é fria, distante, o vazio chega e consigo traz uma espécie de depressão e na sua reabilitação dá-se mais uma desilusão, esta com o ser humano em si… Dumont é pessimista, já o sabemos, mas aqui ele vai mais longe e mais actual que nunca, aqui fala-nos do mundo que consumimos, fala-nos da caixinha mágica e daquilo que aparentemente é o real. Grande Dumont!
25 de dezembro de 2021
4 de novembro de 2021
30 de outubro de 2021
1996, Dangan ranna, Sabu
1965, Voyna i Mir, Sergey Bondarchuk
2020, The Father, Florian Zeller
1980, Permanent Vacation, Jim Jarmusch
1966, Ya rodom iz detstva, Viktor Turov
2018, Dogman, Matteo Garrone
1968, Retorna, Vencedor, Aloysio Raulino
1969, Ensino Vocacional, Aloysio Raulino
1970, Arrasta a Bandeira Colorida, Luna Alkalay e Aloysio Raulino
1970, Lacrimosa, Aloysio Raulino
1971, Jardim Nova Bahia, Aloysio Raulino
1974, Teremos Infância, Aloysio Raulino
1975, Tarumã, Mário Kuperman e Aloysio Raulino
1976, O Tigre e a Gazela, Aloysio Raulino
1978, O Porto de Santos, Aloysio Raulino
1982, Noites Paraguayas, Aloysio Raulino
2013, La jalousie, Philippe Garrel
2015, L’Ombre des Femmes, Philippe Garrel
2004, O Quinto Império: Ontem como Hoje, Manoel de Oliveira
2002, O Principio da Incerteza, Manoel de Oliveira
2000, Palavra e Utopia, Manoel de Oliveira
1975, Trollflöjten, Ingmar Bergman
2010, Ok-hui-ui yeonghwa, Hong Sang-soo
2006, Il caimano, Nanni Moretti
2009, Face aux fantômes, Jean-Louis Comolli
1985, Inventário da Rapina, Aloysio Raulino
1960, Subete ga kurutteru, Seijun Suzuki
2011, Book chon bang hyang, Hong Sang-soo
2012, Da-reun na-ra-e-seo, Hong Sang-soo
2015, Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da, Hong Sang-soo
2021, Annette, Leos Carax
2013, Night Moves, Kelly Reichardt
1997, Viagem ao Princípio do Mundo, Manoel de Oliveira
2005, Espelho Mágico, Manoel de Oliveira
2007, Cristóvão Colombo - O Enigma, Manoel de Oliveira
2002, 8 Femmes, François Ozon
2020, Quo Vadis, Aida?, Jasmila Zbanic
1972, Uma Abelha na Chuva, Fernando Lopes
1988, Wong gok ka moon, Wong Kar-Wai
1956, Nagareru, Mikio Naruse
1960, Onna ga kaidan wo agaru toki, Mikio Naruse
1964, Midareru, Mikio Naruse
2021, The Velvet Underground, Todd Haynes
2021, Cry Macho, Clint Eastwood
revisões:
1941, Citizen Kane, Orson Welles
1955, The Seven Year Itch, Billy Wilder
2017, L’amant d’un jour, Philippe Garrel
1999, A Carta, Manoel de Oliveira
1951, The River, Jean Renoir
1956, Nuit et Brouillard, Alain Resnais
2016, Ma Loute, Bruno Dumont
2014, Leviafan, Andrey Zvyagintsev
2008, Wendy & Lucy, Kelly Reichardt
2010, Meek’s Cutoff, Kelly Reichardt
1995, O Convento, Manoel de Oliveira
1966, Mudar de Vida, Paulo Rocha
1999, Eyes Wide Shut, Stanley Kubrick
1967, Belle de Jour, Luis Buñuel
2006, Belle Toujours, Manoel de Oliveira
1967, Midaregumo, Mikio Naruse
1980, Heaven’s Gate, Michael Cimino
11 de outubro de 2021
6 de setembro de 2021
VIAGEM AO PRINCÍPIO DO MUNDO: O LASTRO DO CORAÇÃO
Quanto mais poético, mais verdadeiro.
Novalis
A história de um velho realizador ciente da aproximação do seu fim, de visita aos lugares marcantes
do seu passado, confrontado e embevecido com uma jovem e bela actriz, revela-se com toda a melancolia na traição do seu corpo envelhecido face à
memória longínqua do desejo. Ao considerar a longevidade uma bênção divina refere que o “preço” é
a ausência de todos a quem pudesse abraçar. Uma
história que se cruza com a de um homem, filho
de um emigrante que morreu precocemente num
acidente, em França, que vai à procura de uma
tia guardiã das suas raízes, na Aldeia do Lugar do
Teso. Uma possibilidade de libertação? Um desejo
de transcendência da própria vida?
Filma-se o cruzamento entre um caminho até ao
fim e um caminho de regresso às origens, através
da filmagem em vórtice duma estrada percorrida
e doutra a percorrer, momento pontuado pelo
personagem Duarte: “Um tempo que separa outro
tempo, que com o tempo se torna agora presente”.
O primeiro instante poético do encontro destas duas
histórias dá-se dentro do automóvel, cenário central
deste filme “on the road”, quando Mastroianni num
silêncio eloquente reage como um deus à injustiça
social da história que acabara de ouvir. No segundo
instante poético deste filme, o grupo das quatro personagens desta viagem chega às ruínas do Grande
Hotel do Pezo, onde o fulgor do passado não passa
de pura consternação; Mastroianni abeira-se de uma
velha árvore, uma araucária, tentando chegar à flor
cor-de-rosa que a sua mão já não consegue alcançar,
murmurando: “Quem quando doente não se lembrará do tempo em que tinha saúde…”
Chegados à razão inicial desta viagem, depois de diversos caminhos cruzados aonde os temas da morte
e da vida atravessam todos e cada um, o grande
encontro com a genial actriz Isabel de Castro, a velha tia. Não me lembro de tamanha interpretação no
cinema português; tanta humanidade, tanta sageza,
tanta ternura… a grande aliança de talento e trabalho, de uma actriz e a sua personagem. Chegados ao “princípio do mundo” resta-me referir o terceiro
instante poético deste belíssimo autorretrato de
Manoel de Oliveira, o meu amigo, que vi aos oitenta
e nove anos nadar às 7h30 da manhã, na piscina
de um hotel de Caminha, durante a rodagem deste
filme, a ida ao cemitério consubstanciada no plano
mais belo do filme feito de mãos, flores e pão.
Diogo Dória
31 de outubro de 2015.
Esta história começou num dia de verão de 1987, em
Braga, durante as filmagens de O Desejado (1987) de
Paulo Rocha. Conto eu ou conta Manoel de Oliveira?
O melhor é contar Manoel de Oliveira, que passo
a copiar e a traduzir do livro Voyage au début du
monde, Ed. Alpha Bleue, Paris, Abril de 1997.
“A história que me inspirou o ‘découpage’ do filme
Viagem ao Princípio do Mundo, foi-me contada por
João Bénard da Costa. Trata-se de um episódio que
se passou por ocasião da rodagem de uma co-produção luso-francesa, no norte de Portugal. Havia
um actor francês que entrou nessa co-produção.
Chamava-se Afonso e era filho de um pai português
e de uma mãe francesa. Quando chegou a Portugal,
o actor lembrou-se de tudo o que o pai lhe contara,
em França, sobre a aldeia em que nascera, sobre a
família, sobre uma tia ainda viva. O actor só pensava
numa coisa: conhecer tudo isso. Exprimiu esse
grande desejo a dois dos seus colegas portugueses:
Duarte de Almeida (pseudónimo de João Bénard da
Costa) e Manuela de Freitas. Explicou-lhes que o pai
emigrara aos 14 anos, em busca de uma vida melhor
e que atravessara a Espanha, à época da guerra
civil, antes de se fixar em França. Cerca de dez anos
depois, Afonso, segundo e último filho dele, nasceu
em Toulouse. Aprendeu todo este passado com o
próprio pai, que muitas vezes lhe falou das coisas
que tinha vivido. Mas o pai não o ensinou a falar a
língua dele. Afonso não sabia uma palavra de português. Os dois colegas ofereceram-se para ajudar
o actor a realizar o seu desejo de voltar aos lugares
donde o pai partira e, num dia de folga, meteram-se
a caminho”.
Foi exactamente assim que se passou, nesse Verão
de 1987, em Braga. Só uma pequena mudança, que
talvez não seja tão pequena assim, como lá para
diante explicarei. Afonso não é o nome do actor,
mas o apelido. Chama-se Yves Afonso, como consta
da legenda final e, entre muitos papéis (de Godard
a Stévenin) fez um dia de chauffeur de João (Luís
Miguel Cintra) no de Paulo Rocha. No filme,
Yves é o irmão de Afonso, esse irmão que a tia tanto
pede, no final, para conhecer. Ou seja, a personagem
do filme chamar-se-á Afonso Afonso, duas vezes
Afonso, oriundo de uma terra de tantos Afonsos,
como a certa altura no filme se observa.
E Yves Afonso, Manuela de Freitas e eu pusemo-nos
a caminho em 1987, à procura do Lugar do Teso, nos
arredores de Castro Laboreiro, onde nascera o pai
de Yves e onde ainda vivia uma tia dele, a tia que ele
queria conhecer. O que se vê no filme corresponde
aproximadamente ao que vivemos – os três – na casa
da nora da velha Maria Afonso (só que a rapariga
não era francesa mas bem portuguesa), na casa de
Maria Afonso, pessoa tão impressionante como Isabel
de Castro o é no filme, e no cemitério. Foi uma das
experiências mais extraordinárias e mais radicais
da minha vida. Quando voltávamos, com a emoção
que Oliveira transpôs para esta obra-prima, a certa
altura, para amenizar, começámos a falar das cenas
de O Desejado previstas para o dia seguinte. E foi
então que Yves Afonso teve o desabafo que no filme
também se conservou, na boca de Jean-Yves Gautier:
“Histórias, histórias! Inventam tantas, mas ninguém
filma uma como esta que hoje vivemos e que não
foi inventada por ninguém!” Enganou-se. Manoel de
Oliveira, cerca de dez anos depois, filmou-a.
Contei-a a muita gente, a Manuela de Freitas contou-a
a muitas outras, imagino que Yves Afonso (que nunca
mais vi) a terá contado a muitas mais. Mas ninguém
a ouviu com mais atenção do que Manoel de Oliveira,
quando lha contei, no Outono de 1994, durante a rodagem de outro filme: O Convento (1995). E mal a concluí,
Oliveira disse-me que queria filmar aquela história.
Dou-lhe outra vez a palavra: “Esta história simples
causou-me enorme impressão porque a vi como uma
ligação com o que se passava nos conflitos do leste,
na Checoslováquia, na Hungria, na Tchetchenia, uma
espécie de regresso às raízes, que se adivinhava nesse
movimento [...] Parece-me que subsiste o que chamaria uma ‘ordem’ atávica, em que etnias, que nunca se extinguiram, permanecem obscuramente, como que
adormecidas, no fundo do nosso ser.
Percebi que a circulação dessa ‘ordem’ se faz por via
subterrânea e se transmite, através do sangue e da
memória, alimentando um enorme cordão umbilical
que, nas suas ramificações, nos liga às origens da
humanidade. Acaso serão elas que, ao longo dos
tempos, nos conduzem a conceitos tão sólidos
como os conceitos de tradição e de evolução, que a
natureza tornou nossos ‘compagnons de route’? Por
isso, a história que João Bénard da Costa me contou
me pareceu de grande actualidade, direi mesmo de
permanência e portanto tão propícia à evocação
de recordações e atavismos. Mais ainda: o Lugar do
Teso, a aldeia donde o pai saíra um dia, tornou-se,
para mim, um símbolo. Deixei de a ver como uma
simples aldeia, para ver nela Portugal e até a representação do mundo – a casa da humanidade”.
Não posso citar o texto todo, mas Oliveira explica a
seguir como é que a história das memórias de Afonso
(daqui para diante, chamar-lhe-ei como no filme se
chama) invocou as memórias dele, numa viagem que
o levou obrigatoriamente (o advérbio é de Oliveira)
a passar por lugares que faziam parte da vida dele,
“momentos da sua (ou da minha) juventude”.
A partir daqui, convém prestar alguma atenção aos
cinco ocupantes daquela carrinha, às cinco personagens que vão viajar até ao princípio do mundo.
Primeiro os três actores: Yves Afonso deu lugar
a Afonso (ou Afonso Afonso, como já disse) interpretado por Jean-Yves Gautier, também um actor
francês, numa “co-produção luso-francesa, no norte
de Portugal”. De Duarte de Almeida, Oliveira conservou o nome de Duarte, para o papel de Diogo Dória,
sobretudo um contador de histórias ou, ainda mais
precisamente, um cicerone didáctico. E é ele quem
faz a aproximação entre a Judite do filme e a Judite
bíblica, numa versão soft da história de Holofernes,
e é ele quem introduz o tema da monarquia (casamento de D. Duarte Pio, mas o Duarte que ele é
nada tem que ver com a família real) e é ele quem
diz – e repete – “un temps qui sépare un autre temps
qui, avec le temps, devient maintenant présent”,
recebendo um bravo irónico de Mastroianni.
De Manuela de Freitas a Leonor Silveira o percurso (a “circulação”, nos termos de Oliveira) é
mais secreto. Mas o nome e o acto de Judite as
podem unir e esse nome é tudo menos inocente.
Decepadoras de homens. E Judite se chamou
Manuela de Freitas no filme de João César
Monteiro, A Comédia de Deus (1995), em que expulsa o protagonista do Paraíso, para além de outras
sevícias várias. Nada a ver? É bem possível. Tudo é
possível. Fiquemos pois com uma Judite, a que viaja naquele carro e, no início da viagem, se entrega,
com evidente prazer, a um cruel jogo de massacre
com o seu “realizador bem-amado”. Perversíssima
nas primeiras memórias (ou nas primeiras saudades) quase se eclipsa em Lugar do Teso, para
aparecer, no fim, vestida à minhota, no film in the
film que nunca saberemos qual é.
Muito mais importantes são os outros dois. Neste
caso, ao contrário do caso “real”, o realizador
acompanha os seus actores. E o realizador – último papel de Mastroianni, único papel de Mastroianni
num filme de Oliveira – chama-se Manoel, com o
e tudo, e é evidentemente o alter ego de Oliveira.
As memórias dele não são as memórias de
Mastroianni, mas as memórias de Oliveira, evocando o pai, o irmão Casimiro, as amantes do irmão,
a sua experiência de internato nos jesuítas em La
Guardia, etc. Mastroianni é Oliveira, até com o chapéu de Oliveira na cabeça? Sim, mas... Mas, atenção
ao condutor. E o condutor, presença discretíssima
- tão discreta que alguns nem repararam nele, aparentemente fora daquele filme ou daqueles filmes,
sem voz activa nos diálogos e uma só vez falando
(quando, em Castro Laboreiro, pergunta o caminho
para o Lugar do Teso) – é interpretado pelo próprio
Oliveira, com um chapéu igual ao do realizador. Não
faz nada? Esse pouco, que é conduzir uma viagem,
missão de Caronte. E – no que é para mim o plano
mais perturbante deste filme tão perturbante – é
ele quem vai buscar o binóculo, quando o grupo
pára em Caminha, diante do Colégio de La Guardia.
E o binóculo tanto permite o zoom subjectivo sobre
o Colégio, aproximando-nos dele, quanto permite
o grande plano do rosto de Judite, de quem tanto
se pode dizer que está vestida (fato de maruja)
à Anna Karina, como à Jean Vigo, como o Diabo
vestido de mulher apareceu ao Estilita no Simón
del desierto (Simão no Deserto, 1965) de Buñuel. É
pouco depois que Manoel lhe chama perversa (“ta
question est non seulement indiscrète, mais elle
est perverse”) e maligna (“c’est ta question qui est
pleine de malignité”) no diálogo mais explicitamente sexual (e erótico) do filme.
E vale a pena reparar com atenção (vejam o filme
várias vezes) no fabuloso plano sequência do
Grande Hotel do Pezo (ou das ruínas do Grande
Hotel do Pezo) nas posições do condutor. Ora se separa do grupo, ora fica, humilde e observador, muito
atrás dele, ora – por duas vezes – ocupa o plano
(plano geral) com Mastroianni. Depois, depois de
atravessarem a ponte que os leva ao Lugar do Teso,
desaparece de vez e não surge nunca mais, nem ao
de leve, nas memórias de Afonso.
Várias vezes no filme se procede ao contraste entre
o passado burguês do realizador e o passado proletário do pai de Afonso. Não se podem comparar as
experiências nem as vidas de um homem que, desde
a mais tenra infância, teve automóveis, quando automóveis quase não os havia e nunca passou frio, fome
ou sede, com as de um homem cuja meninice e adolescência foram marcadas por tão fera miséria, que
um dia fugiu, entre lobos e penhascos, para comer (ou
não comer) o pão que o diabo amassou. Não se podem? Eu não diria tanto, pois que um passado a outro
levou e o sofrimento do cineasta se não conheceu as
mesmas formas, conheceu outras.
E quando tudo se reúne é na sequência do Pedro
Macau, outro dos cumes da arte de Oliveira. Pedro
Macau é memória de Manoel que conta como o viu
em criança. Mas é para Afonso que a cantilena dele
(recitada pela aldeã) é dita, traduzida, repetida e
retraduzida. E é Afonso quem a decora, não Manoel.
Quem é que às costas tem um pau mais pesado?
Quem é que pede que o tirem deste degredo? E perto
do fim do filme, perto do fim da viagem, Pedro Macau
é visto de costas e só um repara nele.
“Tornar-se senhor do caos que se é” é a epígrafe
do filme, citação de Nietzche. Tê-lo-á conseguido o
actor, que, no fim, vestem de campino, ou seja lá do
que for, e recita, uma vez mais, o poema de Pedro
Macau? Soube, pelo sangue, vencer a constante pergunta da tia (inadjectivável Isabel de Castro) quando
arregaçou a manga e lhe disse (ou lhe mostrou)
que o sangue, e não a fala, é a casa do ser (“por
que é que não fala a nossa fala?”)? Soube olhar-se
ao espelho e olhar nele Isabel Ruth, chamada para
Circe final, noutra obscuríssima recitação? Tornou-se senhor do caos que anda à volta dele?
Tê-lo-á conseguido, o realizador? Já disse que
foi o último papel de Mastroianni, muito doente e
sabendo que o estava. Como se desdobrou ele nas
memórias de outro, nas ruínas de outro, apoiado a
uma muleta e pedindo tanto a piedade alheia como
a recusando? Estou a confundir personagem e actor? Como não os confundir aqui, quando quem se
despede da vida é um e não outro? Como não fixar
que o último plano de Marcello Mastroianni (dos últimos) no-lo mostra num cemitério, coxeando entre
as campas ou presidindo à fabulosa genuflexão de
Maria Afonso e do sobrinho Afonso? Mas ninguém
pode pensar, um minuto que seja, em crueldade,
ou em crueldade idêntica à de Judite para com ele.
Porque quem o olhava – quem o conduzia – era um
homem que quase podia ser pai dele e a quem nada
do que se passava com ele podia ser alheio. É um
assombroso acto de coragem dupla. Mais do que
todos, ambos sabem do degredo e dos pategos que
passam, como nós todos espectadores somos, ou
como sobretudo eu, que impudicamente me meto
no meio disto, mais do que todos sou.
Por isso, a minha única pergunta face a este filme
magistral, é a pergunta que pergunta pelo título.
Viagem ao Princípio do Mundo? Ou Viagem ao Fim
do Mundo? Ao princípio, ainda não vimos ninguém, a
câmara avança com o carro num imparável traveling
para a frente. Mas, à medida que vamos sabendo
mais dos passageiros dele, os travelings não nos
empurram para a frente, mas para trás. É o contra-plano do plano o que sobretudo é mostrado. Oliveira
costuma ter horror aos planos que não são planos de
ninguém. Desta vez, não se contradisse, como apressadamente se pode concluir. Essa visão é a visão do
retrovisor, é a visão só possível ao condutor. Depois
da paragem em Caminha (lembram-se de eu lhes ter
falado dos binóculos?), sobretudo depois da paragem
do Peso, a visão dominante (até Castro Laboreiro) é a
visão do que ficou para trás, visão que só um – um só
– podia ter naquela barca. E se barca lhe chamo, não é
só por metáfora, mas porque ninguém, como Oliveira,
filmou os passageiros de um automóvel assim, como
se fossem passageiros de um barco, como se do
interior de um barco se tratasse.
Depois, lembramo-nos que ao corpo se chamou caixa
(há um filme de Oliveira com esse nome) que algures se disse “comme la route s’éloigne de nous”, que o
barco de Caronte foi mesmo figurado (barco negro, no
rio Minho), que Pedro Macau está de joelho em terra,
como de joelhos ficará Afonso (“e foi a primeira vez
que me ajoelhei”), que Manoel faz caretas ao lobo embalsamado da casa de Cristina, que “vivre longtemps
est un don de Dieu, mais il a son prix”, que Judite
(sequência do Peso) se abraça à árvore como que
segurando um enorme falo. Volto a repetir: Viagem ao
Princípio do Mundo ou Viagem ao Fim do Mundo?
Três actores e um realizador, conduzidos por um
fantasma. Mas quem vê é o fantasma. Ou o realizador. Os outros só se vêem uns aos outros. Ou, como
Maria Afonso, não vêem nem ouvem ninguém, até
que a carne e o sangue lhes digam o que nunca
lhes pôde dizer a “nossa fala”.
Imago mundis. Com ela, sim, a única que nunca
olhou para trás. Talvez por isso (mas será?) ela é a
única que é senhora do caos que se é.
Cada vez que vejo este filme, mais inesgotável ele
me parece. Por isso – desta vez – me atrevi, com
muito impudor e o jeito de cicerone que herdei de
Duarte (ou que Duarte herdou de mim) tocar nalgumas chaves para os seus quartos mais secretos.
Diante de mim, as ruínas do hotel. E meço o tamanho da árvore, com a memória de Vertigo (A Mulher
que Viveu Duas Vezes, 1958). Mas, como o filme me
ensinou, ninguém é alguém, todos são outros. “Tu
n’est déjà plus toi. Tu es un autre”.
E termino com Oliveira, que me autorizou a intromissão. “Este filme, importa sublinhá-lo, é uma ficção,
uma ficção sobre presenças, saudades e atavismos.
Os sítios são os sítios autênticos. Não é o caso dos
personagens, que são todos representados por outras pessoas e não por eles próprios. Assim, Marcello
Mastroianni faz o papel do realizador. Diogo Dória
o de João Bénard da Costa. Leonor Silveira o de
Manuela de Freitas (sob o nome de Judite) e Manoel
de Oliveira o de chauffeur”.
Todos, outros. Todos, nós. Mas um só é eu. Ele,
Manoel de Oliveira.
João Bénard da Costa
(in Folhas da Cinemateca, 27 de dezembro de 2007).
22 de julho de 2021
PALAVRA E CINEMA
Persiste ainda hoje um preconceito que vem da pré-história do cinema. Comecemos pelo princípio. A família Lumière ocupava-se da fotografia e as suas oficinas fabricavam os materiais necessários à tiragem e reprodução de fotografias. Paralelamente, aí pelo final do século XVIII, vinham aparecendo vários modos de animar figuras desenhadas ou pintadas, com precários movimentos. Aos Lumière, emi-
nentes fotógrafos, ocorreu então esta ideia de sonho – imprimir movimento ao que era parado nas chapas fotográficas. O sonho tornou-se realidade e em Dezembro de 1895, com o seu invento Cinématographe, faziam a primeira projecção pública. Tinha nascido o cinema. O efeito foi surpreendente, não obstante, os próprios Lumière consideraram-no, na ocasião, como coisa efémera. Não suspeitaram que daí viria a base para esse todo complicado e sofisticado complexo, não só do ponto de vista cinematográfico como de todo o audiovisual, que domina hoje o mercado, e que tanto afecta a pureza do Cinématographe. O certo é que o cinema nasceu mudo, como muda é a fotografia, muda pela sua própria natureza de instantâneo.
Persiste ainda hoje um preconceito que vem da pré-história do cinema. Comecemos pelo princípio. A família Lumière ocupava-se da fotografia e as suas oficinas fabricavam os materiais necessários à tiragem e reprodução de fotografias. Paralelamente, aí pelo final do século XVIII, vinham aparecendo vários modos de animar figuras desenhadas ou pintadas, com precários movimentos. Aos Lumière, emi-
nentes fotógrafos, ocorreu então esta ideia de sonho – imprimir movimento ao que era parado nas chapas fotográficas. O sonho tornou-se realidade e em Dezembro de 1895, com o seu invento Cinématographe, faziam a primeira projecção pública. Tinha nascido o cinema. O efeito foi surpreendente, não obstante, os próprios Lumière consideraram-no, na ocasião, como coisa efémera. Não suspeitaram que daí viria a base para esse todo complicado e sofisticado complexo, não só do ponto de vista cinematográfico como de todo o audiovisual, que domina hoje o mercado, e que tanto afecta a pureza do Cinématographe. O certo é que o cinema nasceu mudo, como muda é a fotografia, muda pela sua própria natureza de instantâneo.
O Cinématographe, dando movimento à fotografia
através duma ritmada sucessão de instantâneos, criou uma realidade
de fundo onírico, única, que acrescenta à fotografia o movimento,
o que daí levou a que os americanos viessem a denominar o cinema por
Movies. O cinema, porém, cresceu e começou a falar e a
dar-nos a ouvir, nos mais variados tons dos sons, desde ruídos à
música, e a ver as mais va-riadas tonalidades das cores do
arco-íris; fez-se grande, deu autonomia às suas componentes, imagem, som e cor, a cobrir uma independência simultaneamente
dependente da vida, da literatura e das belas-artes, enfim, de todas estas
partes que compõem um todo complexo, e não só da imagem que lhe deu origem, e
que hoje tanto importa que se mova ou não. Mais conta fará no cinema hoje a
estrutura e a montagem do que as imagens, as cores, os movimentos, os sons, as
palavras, a música, como simples mostra.
Assim o equívoco que se gera hoje no
conceito de cinema provém, quanto a mim, da pré-história. Pré-história a que
se referiu, certa vez, a eminente escritora Agustina Bessa-Luís, acerca da
genética, ou melhor das reminiscências escondidas, acumuladas no psico da
mentalidade e da memória, no ser de cada um dos seres que compõem a humanidade,
e que eu transponho agora para a questão do Cinématographe, isto é, como uma
procura das eventuais razões que iludem o conceito que hoje se forma, na generalidade, acerca do cinema.
Vem isto a propósito do conceito muito generalizado,
repito, que insiste em confinar o cinema a imagens em movimento, quando a
evolução do cinema durante mais de um século, e mais de meio século depois de
ter ganho o som e a cor, depois de ter adoptado estes fundamentais elementos, de
os ter adquirido com plena legitimidade, depois de terem ganho uma autonomia
própria e de serem eles o que mais aproxima o cinema duma realidade concreta, em
que o som é, justamente, o elemento que verdadeiramente reclama movimento, pois,
sem este, o som não existe, enquanto a presença da imagem não de- pende do
movimento, uma vez que é dela apenas um complemento extra, e não depende do mo-vimento para que possa existir, como o prova à exaustão, por exemplo, a pintura.
Não deixará de ser oportuno apresentar um caso recente onde praticamente a
imagem figurada é substituída por uma imagem fixada em fundo cinzento-escuro,
não na totalidade do filme, mas quase (e sabe-se que isso aconteceu já em
anteriores filmes, cuja palavra, som ou música, tinham o suporte em imagem de
fundo negro ou neutro, embora em mais ou menos reduzidas parcelas). Estou a
referir-me ao filme Branca de Neve (2000), de João César Monteiro, que tanta
polémica levantou e que é um exemplo flagrante onde o Kino ou o Ciné é dado pela
palavra e onde as poucas imagens, figuradas umas, neutras outras, são ora
expressão, ora suporte neutro.
Com efeito, a Palavra consubstancia já, em si,
imagem, movimento e acção. Evidentemente que não vamos ao extremo de suprimir
a imagem ao cinema, mas também não se deseja que se extremem outros pontos,
que compõem hoje a essência do cinema, pois que o seu conceito correcto abrange
um sentido mais complexo e envolvente que não exclui as duas fortes colunas de
que actualmente se compõe: a) Imagem, a preto e branco e/ou a cor; b) Som,
palavra, música e ruídos. Sendo, também, em certos casos, a ausência de qualquer
delas, desde que projectadas no ecrã.
Sim, porque o cinema, resumindo dum modo
concreto, é a projecção num ecrã ao fundo duma sala e diante duma plateia, tendo
por trás desta uma cabine com máquinas de projecção, o que faz do cinema um acto
social e não solitário como, por exemplo, a televisão.
Se desejarmos um
conceito de cinema assim alargado, como acabamos de expor, estamos a eleger
como cinematográficos todos os elementos que o compõem. A identidade
cinematográfica fica enriquecida e, quanto a mim, ajustada. Poderá tal conceito
embaraçar o espectador menos atento, e até, eu sei lá, certa crítica, embora
isto me pareça contraditório. Contudo, admito que haja quem tenha dificuldade em
aceitar este ponto de vista, que me parece justificado em oposição à antiga
concepção, a meu ver preconceituosa, de que o cinema se reduz a imagens em
movimento.
Não deixa esta circunstância, para um realizador que neste ponto
esteja livre de preconceitos, de poder tornar-se dolorosa, pois que nada pode
doer mais ao realizador consciente do que a incompreensão do seu trabalho,
tomando conceitos por preconceitos, ou deturpando os intentos dum filme com
desvios do sentido mais profundo da sua expressão.
Referindo-me a Palavra e
Utopia, noto em algumas interpretações uma certa confusão entre três coi-sas: a
forma, o texto e o contexto. Condenando ou elevando um ou outro ponto, mas em
prejuízo da unidade do trabalho. É frequente verem em Palavra e Utopia um Vieira
à Manoel de Oliveira. Quem conheça bem o que foram os acontecimentos, os sermões
e as cartas do Pe. António Vieira poderá ver um filme de Manoel de Oliveira, mas
não um Vieira à Manoel de Oliveira. Neste filme não há palavra ou acontecimento
que não seja tirado dos sermões, ou das cartas, ou duma base histórica fundada e
reconhecida. Nem nenhuma minha, nem nenhuma do historiador, Pe. João Marques que
me acompanhou e forneceu os elementos para elaborar a minha planificação. Só pus
da minha lavra as palavras: “Chegou agora”, quando entrego a carta ao Pe.
Bonucci. Só não digo que é um filme histórico, porque eu não estava presente há
trezentos anos para ver com toda a justeza como se passaram as coisas. Mas nos
púlpitos, nos que havia, e eram quase todos, os actores pregaram partes do que
Vieira pregou nesses mesmos púlpitos, logo nessas mesmas igrejas.
Há quem diga
que os três actores não casam bem entre si e entre os três Vieiras. Esquecem o
próprio Vieira que, já velho, em sermão dito pelo actor Lima Duarte, nos fala
das quatro vigílias, e as transpõe para as quatro idades do homem: a do menino,
a do mancebo, a do adulto e a do velho. E faz, para cada um deles, um retrato
diferente, uma entidade diferente, um comportamento diferente. Como havia eu,
depois de conhecer este sermão de Vieira, fazer os três semelhantes?
Procurei no
filme ser tão correcto quanto me foi possível, dentro do que, como décor,
encontrei como era ao tempo. Porém foi pouco, mesmo muito pouco, para não dizer
que quase nada existia que não tivesse sido alterado. E isso obrigou a
submeter-me à escassez do que havia há trezentos anos antes. E não pretendendo
o impossível, à maneira americana como é hábito fazerem nos filmes congéneres,
reconstruindo ficções que se afastam da realidade histórica em favor do grande
espectáculo, condicionei e limitei-me ao que havia. Desta circunstância,
resultou um filme sóbrio, sólido e modesto nos aparatos, mas historicamente
certo. Perante a figura do Pe. António Vieira, ao contrário do realizador se
fazer so- bressair, foi ele a esforçar-se por fazer sobressair Vieira na pele
dos actores que o representaram em cada uma das suas três vigílias, sendo a
última a privilegiada, pois nela se descarregava toda a dramática luta por que
pelejou nas anteriores vigílias desde o primeiro sermão pregado antes da sua
ordenação.
Gostava de tocar ainda numa outra questão, aliás dupla – a religiosa
e a ateia. É que isto parece influenciar a visão crítica de certas pessoas. O
facto dos temas e/ou dos realizadores que os tratam serem de carácter religioso
ou ateu parece ter influência nos critérios, segundo a formação do espectador,
e/ou até quando este, ao ver o filme, toma o filme pela postura do realizador,
quantas vezes oposta ao que mostra. Teremos que fazer aqui um parêntesis.
É
evidente que todos nós somos um acumulado de influências e de opções. Isto,
porém, não impede uma imparcialidade, digamos uma objectividade, aquela mesma
que nos leva a respeitar a opinião do outro, aceitando ou contrapondo a sua. Mas
quando olhamos o mar, vemos o mar, do mesmo modo que vemos uma igreja, ou uma
escola, ou o céu, ou o chão, conforme olharmos para cima ou para baixo. A isto
chamaremos objectividade. É nessa atitude de objectividade que o realizador
deverá colocar-se perante o assunto que vai realizar, analisando-o de fora das
suas convicções, tanto quanto lhe seja possível. A vida é o que é e a arte
também não pode fugir àquilo que é. Mas não é defesa, nem ataque, nem
propaganda. Se fala dum santo, verdadeiramente santo, não está a fazer a
propaganda da santidade. Está a interpretar um facto, a dar uma biografia fiel
aos acontecimentos, ou a expressar um sentimento, ou etc., etc. O mesmo poderia
dizer dum assassino nato. No caso de Palavra e Utopia não se está a fazer a
apologia do Pe. António Vieira, mas a repor o que historicamente é dele
conhecido. O que o realizador possa dar como juízos de valor não está em causa
no filme, porque nele não há posição crítica, mas apenas exposição que deixa ao
espectador a liberdade de tomar ele a sua posição.
Não influenciou,
consequentemente, o realizador, porque este se limitou aos factos e não fez
juízos. Exemplo: o Quinto Império. A Inquisição repudiou o Quinto Império. No
filme, o realizador limitou-se a relatar os acontecimentos conforme vêm
descritos. Mas há quem aceite a ideia de um Quinto Império, mesmo sendo ateu.
Eu, pessoalmente e, fora do filme, penso até que a ideia corresponde a um
desejo antigo e mesmo a acções desenvolvidas através da história universal que
nos demonstram essa vontade exemplificada. Mesmo hoje, olhando para a ideia da
União Europeia e para a da globalização não é difícil chegar a induzir o mesmo.
Se com razão ou sem ela digo isto, digo-o com a mesma ironia com que olho a
Clavis Prophetarum. Por isso se acrescentou à PALAVRA esta outra palavra:
UTOPIA.
Se um escritor descrever um crime não pode ser tomado como um criminoso.
De resto, essa questão se pôs quanto ao romance Crime e Castigo de
Dostoiévski. Como poderia um escritor descrever com tanta precisão e detalhe um
crime sem haver jamais cometido algum? Pela simples razão de que o instinto do
crime está latente em cada homem, mais submerso nuns, mais à superfície noutros
e à tona no criminoso nato. O mesmo poderíamos dizer de muitos outros instintos
e sentimentos. Não há ateus convertidos? E crentes que perderam a fé? Vá daí
julgar-se que por se tratar dum filme sobre um cristão e padre jesuíta, como é o
caso de Palavra e Utopia, o realizador, mesmo sendo objectivo tanto quanto em
arte possa ser-se, enquanto religioso dessa religião ou doutra, agnóstico ou
ateu, passará aos olhos de quem critica, de modo superficial, como cúmplice do
facto que é mostrado, comprometendo assim todos os seus julgamentos sobre
valores e factos. E não será isto, por sua vez, levar a crítica ao desvio
grave de olhar para o realizador como se fora ele um Vieira, tomando um pelo
outro?
Ver num filme o realizador a sobrepor-se à realização, isto é, ao
contexto é extremamente grave para que o faça, mas se a culpa não vier do
realizador, mas duma deturpada visão de quem critica, então é duplamente grave.
A realização dum filme é, acabará por ser, ou redundará num impulso do
realizador, onde o que importa para um verdadeiro artista é o resultado e
nunca uma demonstração de habilidades pessoais. Assim tanto melhor é um filme
quanto mais sobressair o contexto e mais esquecido e apagado fique o realizador.
Quando num filme, como em Palavra e Utopia, se trata do Pe. Vieira, fazendo-o
historicamente correcto, é Vieira que estamos a ver e não o realizador, que é,
neste caso, mero instrumento, interpretativo sim, mas instrumento, como instrumentos são, e de primeira ordem, os actores das personagens que cabe a cada
um representar. Podemos alterar as ficções, mas não podemos alterar os factos.
Podemos simular a realidade, mas não podemos modificar os acontecimentos
históricos, como é habitual ver-se na maior parte dos filmes de ficção
histórica.
O cinema é uma expressão artística e, como tal, deve ser aceite com
autenticidade e largueza de vistas, muito embora, sendo uma arte que envolve
todas as outras artes sem excepção, tenha, obviamente as suas regras, regras
que fazem das artes um jogo, jogo no melhor sentido, e não pode haver jogo sem
regra, tal como não pode haver ciência sem respeito pelas leis da natureza. Mas
leis até ao limite do possível, porque se forem ultrapassadas corre-se o risco
de perder o conceito de ser coisa e causa. Fala-se muito do abuso da palavra no
cinema, mas disto já falámos anteriormente, dizendo que em certas
circunstâncias será uma das inumeráveis formas ou fórmulas cinematográficas.
Mas há abusos excessivos e injustificados e frequentes de movimentos da câmara
em filmes, e disto nunca vi que se falasse, quando em boa verdade tais movimentos de câmara não são justificáveis porque, na maior parte, não respeitam a
autenticidade das formas do cinema, antes exibem acrobacias de uma câmara
acrobata que as técnicas mais sofisticadas sofisticam, e fazem do cinema coisa
de circo.
Porto, 12 de Janeiro de 2001.
Manoel de Oliveira
in Cahiers du
Cinéma, n.º 555, março de 2001, p. 42-45).
É com alguma comoção que me vêem aqui.
“O que eu andei para aqui chegar”, cantaria o
vosso Zé Mário.
Também eu sei: foram filmes desde Le Soulier de
satin (O Sapato de Cetim, 1985), até ao fim. Pelo
menos até a uma despedida afinal recente, de uma
amizade imensa e de uma imensa admiração.
E é também com alguma emoção que me vêem aqui
em Serralves, finalmente na Casa Manoel de Oliveira,
de que desde sempre ouvi falar como desejo seu,
no Porto, sua cidade, que num dia inesquecível, ele
me fez visitar no seu carro com ele ao volante, mostrando-me de passagem como conduzia bem e lhe
conhecia de cor as ruas, com um entusiasmo quase
infantil, mostrando-me a janela onde Teresa morreu
quando Simão Botelho partiu na nau pelo rio fora
e na Foz do Douro entrou no mar, esse grande mar,
tantas vezes filmado, no seu eterno movimento como
imagem do Espírito Universal, e acabando na casa da
Vilarinha, a casa das Memórias e Recordações que
pediu que abrissem para me contar muito mais como
a tinha querido construir do que a história triste de
como a perdera. Sem uma palavra de ressentimento,
com aquela elegância com que tratava tanto os assuntos graves, como fazer um nó de gravata. Sim, até
isso ele me ensinou.
Não há vez que passe na avenida dos Aliados que eu
não me regozije que seja a sua opinião que aqui prevaleceu sobre a do arquitecto Siza Vieira e que fosse o
mesmo Siza quem, com a sua concordância, viria a desenhar o sítio em que agora nos encontramos como a
Casa do Cinema Manoel de Oliveira. O mesmo a quem
noutra questão se opunha. Gente bem formada, podia
ele dizer. E divertido me disse (ipsis verbis) “Então não
dizem que ele agora quer pôr o cavalo de cu para o rio
e virado para a Câmara Municipal?”.
Comoção também por irmos ver um filme seu numa
sala de projecção, na relação com os espectadores
(sim, facilmente se zangaria se alguém lhe falasse
no público, já que para ele cada espectador era uma
pessoa, e muitas pessoas eram uma cidade: sim,
tinha uma noção do cinema e da arte em geral com
uma função política como a do teatro grego: pôr a
cidade em diálogo sobre os temas que a todos dizem
respeito, em público, isso sim). Para ele a arte era
uma intervenção política. E nunca um passatempo.
Um divertimento, sim, pois claro, para os que têm
prazer no convívio, na troca de ideias com os outros.
Comoção por poder ser eu aqui chamado, e ser
legítimo que se lembrassem de me dar esse prazer,
pelo tanto que gastei da minha vida a perceber o
seu trabalho e a conhecer o seu pensamento, e por
isso poder aqui vir dizer, no Porto, o quanto ele foi
meu mestre de vida, em muitos aspectos e até num
terreno particularmente delicado, o da religião. O
seu Acto da Primavera (1963), se não me baptizou,
ficou responsável por uma visão cristã da vida a que
permaneci fiel e que passei a ler em todos os seus
filmes. Subscreveria (quase) tudo o que ele pensava
sobre a função da arte e a condição de artista. Como
escrevi no texto que o João Fernandes me pediu para
figurar no catálogo da exposição que Serralves lhe
dedicou no seu centenário, comissariada pelo próprio
João Fernandes, por quem, ao ver como nessa altura
procedeu, ganhei também grande amizade, vejo o
início desse filme como uma espécie de arte poética
de toda a sua obra quando começa com as palavras
do evangelho de João: “No princípio era o Verbo e
o Verbo estava em Deus.” Quantas vezes me disse
que a vida era um mistério? E que era como mistério
que ele, ao filmá-la, a tentava entender. Eu subscreveria (quase) tudo o que julgo que pensava sobre
a condição de artista, a sua convicção de que cada
filme corresponde a uma tomada de posição política.
Julgo, como ele, que o artista tem de entender e
ter a coragem de assumir a responsabilidade de ser
membro da sociedade em que se insere, correndo
os riscos que isso lhe pode trazer, sem medo, porque
não há erros na partilha do pensamento, e a nossa
missão, a missão da arte, é comunicar com os outros,
fazer avançar o mundo. Já contei isto mil vezes, mas
tudo se tornou claro quando, já depois de eu ter feito
quase sempre a olhar para a câmara horas de rodagem de todo o Soulier de satin (e lembrem-se que a
primeira coisa que se ensina a quem quer ser actor
de cinema é que é isso mesmo que não se deve fazer), um dia disse-me assim: “Sabe porque é que eu o
mando olhar para a câmara? Para que as pessoas que
depois estiverem na sala a olhar para o ecrã sintam
que está a falar para eles. O olho da câmara é o olhar
dos espectadores.” Até aí eu tomava-o pelo olhar do
realizador. Coisas diferentes naquilo que mais vezes
uma pessoa tem de fazer: escolher o ponto de vista
que importa assumir.
E comove-me ainda (isto é que aprendi mesmo
muito pouco tempo depois de ele mo dizer): “Não
chore! Se você chorar, o público... já não chora”; mas,
continuando, comove-me estar a dizer estas coisas
neste museu que traz outra memória para mim
inesquecível, quando ele já com os seus 100 anos se
deslocou de propósito a esta casa de Serralves para
me mostrar pessoalmente a exposição e me contar
algumas coisas que gostava que eu soubesse, por
exemplo, que nos seus primeiros filmes, tinha ele,
Oliveira, antecipado muita coisa que se pensou que
eram invenções dos primeiros grandes cineastas
russos Dziga Vertov, Eisenstein, etc., e não influência
deles sobre o Manoel. E diante do lindíssimo quadro
do Júlio que sempre vi em sua casa e que estava na
exposição, me explicava como para pôr o marinheiro
do quadro a dançar, tinha conseguido fazê-lo com
a câmara a dançar e não a figura do quadro. E isto
ninguém tinha feito antes.
Mas, mais que tudo, Serralves é para mim o sítio em
que, em nome de todos aqueles que tinham trabalhado com ele, incumbido por outro em quem Oliveira
depôs toda a sua confiança, o João Bénard, e que, por
acaso ou não, também tantas vezes foi actor, fiz o nosso discurso de parabéns em que lhe recordava como
com a sua obra tinha criado mais vida. Perguntava-lhe
eu, enfaticamente, como nos textos de Vieira: “Já
pensou, Manoel, em toda a vida que o senhor gerou
entre as pessoas que têm participado nos seus filmes?” Basta olhar para os créditos no princípio ou no
fim. Tanta gente, tantas pessoas! Talvez muitos dos
que trabalharam com ele não tivessem entendido o que estavam a fazer... Não faz mal, fizeram-no e por o
terem feito muita coisa mudou.
E se é de facto verdade o que eu entendi das nossas
últimas conversas, das poucas conversas que tive-
mos, porque, no fundo, muito convivemos ao longo
da minha vida, mas desde sempre pouco falávamos
sobre profundidades... Mas nesse dia falámos, falámos
sobre a morte, falávamos... Se ele acreditava na ressurreição... E se é verdade o que ele me disse ao fim
de mais de 100 anos de vida sua a querer perceber se
era assim, se o que acontece quando morremos é que
a personalidade, que é o corpo de cada um, morre,
mas no momento do último suspiro o espírito deixa o
corpo e mistura-se com o Espírito Universal. Se isso
é verdade, aqui temos também connosco e como
anfitriões nesta projecção, não só o próprio Manoel,
como o próprio Vieira, dissolvidos na memória do
Mundo, e esta projecção seria uma espécie de novo
Pentecostes, com o Espírito Santo a descer sobre nós.
Por pudor não diria tanto, mas não sei se não nos
vai acontecer o mesmo... Se tudo isto pudesse ser
brincadeira, e brincadeira seja porque o que de facto
aconteceu, verdade verdadinha, é que nem eu nem
o António Preto ficámos mais longe da memória do
mundo depois de termos visto este filme.
Eu pelo-me por afectividades, mas parece-me
que já chega...
Estou contente por estar aqui, e depois de ter representado em tantos dos seus filmes e de me ter
tornado tão seu amigo, de tanto ter aprendido tanta
coisa com o seu convívio, coisas que adoptei como
se passassem a ser minhas. E se me sinto tanto em
casa de Manoel de Oliveira, também na Casa Manoel
de Oliveira não posso deixar de me sentir em casa.
Ainda por cima depois de se ter retardado durante
uns anitos o início da nossa colaboração.
Foi tudo sempre um longo caminho. “O que eu
andei para aqui chegar!”
É verdade, são outras das suas grandes virtudes, a
paciência e a teimosia. Para quem não souber, recu-
sei o papel do rapaz da Benilde, depois interpretado
pelo Jorge Rolla, porque julgava prioritário em 1974
trabalhar para a revolução portuguesa no espaço
que o 25 de Abril tinha aberto. Um filme católico
naquele momento parecia-me que não podia passar
à frente. Pois hoje aqui declaro que me arrependi,
mas que muito aprendi por ter tido a coragem de
cometer tão evidente erro. Muito mais generosa era
a proposta do que a minha leviana recusa. E muito
mais paciente e teimoso o proponente. Mas que são
paciência e teimosia, senão armas de luta contra o
tempo. Poucos anos depois, e depois de outra nega
minha, estava a convidar-me para um desafio ainda
mais difícil, o Rodrigue de Le Soulier de satin, horas
de versos difíceis em francês.
Aprendi a mesma lição muito mais tarde, aquando
da visita que o Papa Bento XVI fez a Portugal e se
inventou um encontro dos intelectuais com o Papa no
Centro Cultural de Belém. Estando convidados tanto
o Manoel como eu, eu decidi não ir. Mas depois de ver
o acontecimento transmitido pela televisão, escrevi
uma carta ao Manoel a contar-lhe as razões da minha
ausência. E reparei depois como a mise en scène era
igual à da audiência do Papa ao Vieira, no Palavra e
Utopia (2000). Era a repetição exacta com outros
actores, a começar pelo Papa Bento substituído pelo
papa João Bénard da Costa e o próprio Manoel no
lugar do Vieira e no lugar do religioso que acompanhava o papa, o hoje Cardeal Tolentino de Mendonça.
A sua resposta à minha carta foi mais ou menos
isto: “Não tenha pena de não ter ido... nada se perde
tudo se aproveita. Eu com isso recebi uma lindíssima
carta que guardarei.”
Hoje eu já teria aceite o convite, e subscreveria, se
fosse capaz, cada uma das palavras do grande Papa
Francisco, tal como acabo por concordar com quase
tudo o que o Manoel foi pensando, com cada novo
tema que se propôs, para cada novo filme e acabou
sempre por ficar expresso como convite a uma
tomada de posição dos outros, uma provocação, um
desafio a uma reflexão sobre o assunto, por acaso
ou não, quase como o papa Francisco tem vindo a
fazer por todo o mundo com as suas intervenções.
O que aprendi com Manoel de Oliveira, aliás, tem tudo
a ver com uma responsabilidade pública. Engraçado
como no filme que hoje vai aqui ser projectado, numa
sala de projecção e não em vídeo, se volta tanto ao
processo de pôr os actores a falar para a câmara que
tanto pratiquei obedientemente no Soulier de satin.
Mandar os actores falar para a câmara, devia-se,
segundo Oliveira, à vontade de ver os espectadores a
sentir que os actores do filme estavam a dirigir-lhes
a palavra. E nunca, como no Palavra e Utopia, foi tão
claro como Manoel de Oliveira levou a sério a sua
paixão pela arte cinematográfica como forma de ser
político e, no entanto, a preservou sempre maravilhosamente lúdica, ou não se tratasse de arte. Levou a
sério como quem, num gesto que a sua personalidade
tem o condão de conseguir, juntar dois contrários, a
vontade de intervir no seu tempo politicamente com
os filmes que fez tantas vezes em contra-corrente, ou
explicitamente, e de ao mesmo tempo expor a luta
consigo próprio, mostrar as suas dúvidas e contradições, mostrar exemplarmente que só quem quiser
ter a intenção de trabalhar, de permanecer tão fiel a
si próprio e leal para com os outros, que para ele ser
artista é gostar de expor perante os outros as diferentes formas que com seu cinema criou para abordar
de muitas maneiras o conhecimento do ser humano.
Desde o princípio do Acto da Primavera até ao seu
último filme, tudo é uma investigação sobre aquilo
que devíamos poder ver e talvez a câmara veja.
Tudo isto a propósito do filme Palavra e Utopia, filme
para o qual me preparei com cuidado, sacrificando um
mês de férias para estudar e aprender de cor todos
os textos do Padre Vieira que digo no filme, mesmo os
que digo em voz off. O Manoel assim mo tinha pedido,
porque, dizia ele – e tinha razão –, eu quando digo um
texto memorizado não o digo da mesma maneira que
se o estiver a ler. Tinha-me dito o produtor: “Desta
vez é um filme para ti. (Como se Manoel de Oliveira
fizesse filmes por razões tão privadas...) não há quase
figuras femininas e tu tens o papel de protagonista
absoluto.” Não foi isso que veio a acontecer, e é natural – não foi para me mostrar que eu quis ser actor –,mas bastante pena tive de não fazer todo o papel do
Vieira e não entendia a razão da mudança. Só que, ou
o quis o acaso, ou o cozinhou o próprio produtor, mas
foi com uma justificação interessante que a alteração
me passou a ser apresentada. O Manoel tinha tido
a ideia de que o papel fosse dividido por 3 actores
diferentes, como se a vida de Vieira se pudesse vir a
dividir em 3 partes, ou 3 atitudes, e correspondesse
cada uma delas a um actor diferente. Tive e tenho
ainda inveja do meu colega brasileiro. Daria tudo para
ter representado a morte do Vieira. E, para mim, as
palavras do Vieira aprendi-as como se fossem de
facto palavras sagradas, ou como um documento,
mas com o conteúdo que lhe é intrínseco. E o problema para o Lima Duarte não se punha. Interessava-lhe
pouco o assunto dos textos porque “Pregador é pregador, não tem muito mais.” Mas ultrapassei as várias
provas que me foram pedidas. A primeira: acreditar
que teria sido uma ideia do Manoel que tinha mudado
a ideia inicial, enriquecendo-a com a divisão do papel
em 3 e não uma forma de conseguir mais facilmente
dinheiro brasileiro na produção. Ultrapassei a dificuldade, distanciando-me do veneno que o dinheiro
sempre arrasta consigo, como por norma tento fazer,
e acreditando que a mim o que me interessava era
que reconhecia na distribuição um enriquecimento
para o filme. E reprimi com a alegria de um mártir a
minha ofendida vaidade, quando, no fim da estreia
do filme em Portugal, que tinha acabado de ver pela
primeira vez, sentado no Tivoli ao lado do Senhor
Presidente da Câmara de Lisboa, o Dr. João Soares,
ele me dirigiu esta singular felicitação: “Eh pá, o
brasileiro é porreiro”.
Mas em contrapartida, outro incidente com a presença no elenco do actor brasileiro me veio submeter
a nova prova. Alguém se lembrou (o próprio padre
João Marques, amigo do Manoel e de José Régio,
conselheiro literário do filme?) que o Português falado
em Lisboa no século XVII estaria, em termos fonéticos, mais próximo do brasileiro que do português
moderno, e que a presença de um actor brasileiro iria
enriquecer também o filme. O Manoel pediu a Lima
Duarte que nos ajudasse, ao Ricardo e a mim, e que
tentássemos ter a mesma maneira de pronunciar o
português de Vieira. Foi de facto a custo que vi o meu
colega e excelente actor dedicar-se um mínimo a,
generosamente, nos ajudar. Mas de tudo Manoel faz filme porque a sua atitude como criador sempre foi
modelar, foi da mais feroz austeridade e intransigência
a qualquer razão menos nobre para filmar, nada interessa a não ser uma busca da verdade na fotografia
do real. Mas verdade, verdade, só Deus, como disse
Santo Agostinho, e é verdade. Verdade? Verdade
ou é tudo ou nada, porque só Deus diz: ego sum qui
sum. Ele, Manoel, filmará o que tem à sua frente e é
na luta para o compreender que se desenvolvem os
seus filmes, na confiança ao que se julga como mera
aparência: a verdade da criação de Deus. E, eis senão
quando, até a artificialíssima transformação da cara
do Ricardo na minha e a minha na do Lima Duarte,
contribuem para que fique claro que o filme não
pretende ser uma reconstituição histórica da vida do
Padre António Vieira, mas um objecto artístico, uma
obra, um monumento e não um documento.
É dos mais áridos e radicais filmes de Oliveira. O contrário do que fez Rossellini com La Prise de pouvoir
par Louis XIV (A Tomada do Poder por Luís XIV, 1966),
um filme que uma opinião apressada diria parecido
com este de Oliveira e, ainda por cima, sobre a mesma
época. Mas como é interessante que perante a História
os dois realizadores, ambos católicos, se coloquem
em campos opostos! Rossellini, em princípio, coloca-se
de fora, ou quer fazê-lo como se fizesse reportagem,
enfim, um pouco mais do que isso, claro. Rossellini chegou a convencer-nos que na Viaggio in Italia (Viagem
em Itália, 1954) tinha filmado um milagre, enquanto
Oliveira precisou de toda a sua longa vida para que a
sua alma o deixasse repousar na paz. Sempre adoptando a dúvida como maneira de viver. E teve, graças a
Deus, mais vida do que a que o seu inimigo lhe previa.
Depois de ganhar décadas na luta contra o Tempo,
conseguiu ainda estar a lutar com a morte um bom
bocado, agarrado à culpa profunda do ser humano
como tábua de salvação, acabando por assumir a
culpa de cabeça levantada, tornando-se obreiro da
verdade, mais que em testemunha. Oliveira subjectiva
todo o filme. Mas o Vieira também não é ele. E como
se ainda não tivéssemos percebido, chega no fim do
filme a tempo de ver o que nunca ninguém verá de si
próprio, a imagem da palavra sem o Espírito, o corpo
morto de outro português, que sabia falar. Imagem em
que orgulhosamente se ousou mostrar e em que ele
próprio se inclui, como naqueles quadros antigos se incluía o patrocinador e a mulher. Aqui, disfarçadamente,
o autor retratou-se no grupo que estava presente, mas
mais como no “Julgamento Final” que Miguel Ângelo
fez no tecto da Sistina: no meio da humanidade se
reconhece a pele do artista. Manoel de Oliveira vem
de fora, ainda da vida, assistir para sua instrução, à
imagem ainda em movimento da morte de todos, nela
imaginando-se também participar. O recado que trazia
é que não imaginou que ainda fosse lido.
Oliveira não expõe, como Rossellini, do alto de uma
autoridade de autor que não encontra em si próprio,
porque não lhe interessa, acusa a humanidade de
ser má. Até ao fim me foi dizendo: “O Luís já sei que
não concorda, mas eu acho que o Homem descende
de Caim.” Acabando por assumir, o que primeiro se
aprende: o Pai Nosso, a Oração que Deus nos ensinou: Pai nosso, que estais no céu... livrai-nos do mal.
Palavra e Utopia é muito mais do que uma biografia do
Padre António Vieira. É a tentativa de devolver o Verbo
a Deus, o seu a seu dono, para encontrar a paz quando
chegasse ao mar. Esse mar sempre em movimento, e
escuro, que antes de morrer usou como paráfrase do
Espírito Universal, imagem que então tornou metáfora
para me explicar que talvez fosse esse o Milagre principal, o da Redenção: o Guadiana, o Tejo , o Mondego e
o Douro, tão diferentes, todos se fundindo ao desaguar
no mar, participando indistintamente e sem Tempo
na força do Movimento. Que vem substituir a pureza
da pomba branca, já imagem por ele desmontada do
Espírito Santo, quando põe a hipótese experimentada
na sua Divina Comédia (1991), de a pombinha branca
lançar um cocó na testa do Anti-Cristo, mas nunca no
vestido da Maria João Pires... É que tão forte personalidade não deixou de pensar até que o Tempo o desse
por vencido e oxalá no céu se ouvisse o coro das almas
a cantar o “délivrance aux âmes captives” do fim do
Soulier. Ainda me confundiu quando, antes de filmar-mos aquela última curta metragem tão terrível como a
Morte, me perguntou: “O que é que você acha: ponho
os ‘enforcados’?” Eu não entendi. Só mais tarde quando folheava o Amor de Perdição para estudar a leitura
das cartas de Simão e Teresa reconheci os enforcados
quando Camilo diz que os via no caminho para a Cadeia
da Relação. Palavra e Utopia é um filme em que, usando
fragmentos de textos do príncipe da língua portuguesa,
mais uma vez filma para perceber se esses sons do português participam ou não do Verbo que, no Evangelho
de João, se fez carne. Distribui pelo filme algumas
datas e acontecimentos da vida do pregador, mas não
é Vieira o tema. Os ambientes são escuros, como nas
pinturas filmadas na sacristia de S. Roque, cada décor é
filmado quase como se fosse uma gravura numa folha
de papel, os 3 Vieiras, até por causa dos púlpitos, são
bustos, não passam de manipansos, e quando os põe
em grande plano por algum segredo que não entendo,
talvez porque as cabeças ocupam pouco do espaço
que o enquadramento lhes permitia, que importa que
seja a minha ou a do Lima Duarte com aquela grotesca
expressividade que a prática da TV lhe ensinou, ou a do
jovem Ricardo Trêpa, neto do Manoel?
O filme chama-se Palavra e Utopia. O que o Manoel
quer filmar é o que não se vê, é a palavra em si, a sua
incapacidade de se fazer ouvir na nossa pátria; quem
ele interroga é a História de Portugal, de que as suas
sequências no filme são, não como registos documentais, mas sim desencantados e obscuros fragmentos
de sermões, reacções e fragmentos de um eu-sujeito
que pode transitar de corpo em corpo, mas é a voz de
Portugal, a nossa terra, condenada à mediocridade.
Tudo resiste a uma empatia do espectador com o
que vê. E o título é Palavra e Utopia. Hoje é na zona
da utopia que penso que Oliveira se coloca, porque
a julga intrínseca à posição de artista. Seja o Quinto
Império, ou seja outra a forma que tiver, o que se
expõe é a eterna tentativa da oposição da sociedade
à inteligência do Espírito, é deixarmos sempre que
a falta de fé sempre deixe dissolver-se em sonho
o que começou por ser desejo, por ser “utopia”, e
nunca deixar à esperança um lugar.
Noutros tempos como nos nossos dias. Porque há o
Tempo que tudo transforma. A recorrência em todos
os últimos filmes da imagem escura do mar e a coincidência da imagem com o lugar de fusão de todos
os espíritos arrasta consigo aquilo que até ao último
momento me afirmou estar em desacordo comigo:
para mim todos somos filhos de Adão. Para ele somos
todos filhos de Caim. Mas, seja como for, Manoel, há o
Espírito Santo, que nunca lutou com o Tempo. Nem tem
a violenta melancolia do som das suas imagens de Mar.
Luís Miguel Cintra
Apresentação de Palavra e Utopia, de Manoel de
Oliveira,
na Casa do Cinema Manoel de Oliveira,
Fundação de Serralves, no dia 16 de fevereiro de 2020.
21 de julho de 2021
O ESPELHO DO TEMPO
Com O Quinto Império: Ontem como Hoje, o arco traçado, na obra de Manoel de Oliveira, entre NON ou a Vã Glória de Mandar (1990) e Palavra e Utopia (2000) ganha um vértice inesperado, dando forma a uma nova zona capitular onde está em jogo a História de Portugal, algumas das suas principais figuras e alguns dos seus mais trágicos momentos. Tendo por base a peça de José Régio – El-Rei D. Sebastião –, O Quinto Império tem por centro dramático os dias que antecederam a resolução de D. Sebastião em empreender a jornada de AlcácerQuibir. E se é certo que o filme nos dá muito sobre o conjunto de condições mentais, históricas e dramáticas que empurraram Rei e Reino para a perdição, a verdade é que o programa de Manoel de Oliveira é bem mais vasto, configurando uma reflexão profunda sobre as cicatrizes que a história deixa num País, através do Tempo, seu único e poderoso agente.
Ontem como hoje; assim diz o subtítulo de O Quinto Império e di-lo bem. Porque a grande operação conceptual do filme passa por esse esforço em colocar a figura de D. Sebastião na cena em que, com toda a probabilidade, ela própria se pensou, isto é, fora das circunstâncias efectivas da história, da conjuntura palaciana e do pragmatismo do governo. Ontem, porque é do tempo passado que o Rei se alimenta (a peregrinação pelos túmulos dos grandes reis com que o filme abre; a manipulação fetichista do espadão de Afonso Henriques); hoje, porque é neste aqui e neste agora que Oliveira filma, porque é em nome deste hoje que o filme se faz. E que dizer, a este respeito, da utilização de Ricardo Trepa – actor que é neto de Manoel de Oliveira – , na personagem de D. Sebastião, assumindo-se como verdadeiro alter-ego – auto-retrato – do próprio realizador, lembrando por vezes mais o Manoel de Oliveira que vimos em A Canção de Lisboa (1933) do que o próprio Rei, cujo retrato Oliveira filma, propositadamente, para nos fazer lembrar menos as semelhanças do que as diferenças? Em certo sentido, O Quinto Império pode até ser considerado um “filme sebastianista” (como o foram os sermões de Vieira ou a poesia de Pessoa), pela simples razão de nos tornar tangível o incompreensível, de nos fazer entender a razão fora das razões, de nos fazer perceber porque, apesar desse tudo que é imenso, D. Sebastião nos é uma figura sumamente admirável, talvez por ter personificado, como ninguém, a Utopia e por ter dado a um país desgraçado um modo de se pensar como coisa maior do que si próprio (bigger than life, literalmente).
Já se terá percebido quão retorcidos são os caminhos deste O Quinto Império, como tão certeiramente acompanham as voltas e reviravoltas das escadarias maneiristas do Convento de Cristo e a grelha crepuscular da janela da sala do trono, em torno da qual quase todo o filme se passa. Porque em O Quinto Império há o respeito escrupuloso pela palavra e personagens da peça de José Régio, mas há sobre esse respeito “teatral” – que o filme assume – um trabalho essencial da luz, da penumbra e da planificação, a agitação desequilibrante do cinema, que põe toda essa matéria a fervilhar no “hoje” que o título designa e que é para onde o filme transporta o mito, tornando-o, através do cinema e da perenidade dos seus materiais, coisa realmente fantasmática e terrivelmente Imortal.
João Mário Grilo
(in Visão, 3 de fevereiro de 2005).
Escrito há já dez anos, este texto e o filme que ele, humildemente, convoca enfrentam hoje, solidariamente, a (sempre dura) prova do tempo. E nesse desiderato, há-de dizer-se que não só o Tempo – e a parte da nossa história que dele depende – tem sido Documento de trabalho do filme O Quinto Império: Ontem como Hoje (2004), depositado na Casa do Cinema Manoel de Oliveira — Fundação de Serralves. especialmente benéfico para o cinema de Oliveira, como este filme, particular e “acentuado” como poucos mais, tão bem mostra como, olhando aparentemente “para trás”, os filmes de Manoel de Oliveira são tão extraordinárias maneiras/máquinas de nos pôr a olhar – profeticamente – “para a frente”. Filme sobre o poder e os seus por vezes “delirantes” imaginários, O Quinto Império: Ontem como Hoje devia ser (hoje e sempre) um filme de visão obrigatória. Por ele – pelo seu Rei e pelo modo como no seu rosto e na sua inquietação se espelham o – também nosso – porvir – perpassa quase tudo o que é preciso saber sobre as andanças deste país: como ele foi, como ele é, como não pode (fatalmente, tragicamente) vir a ser. Ontem como hoje, hoje como amanhã. E o cinema – mas também o teatro e a poesia – (quase) sempre.
João Mário Grilo
Dezembro de 2015
22 de junho de 2021
a registar:
2017, 120 battements par minute, Robin Campillo
2020, Fireball: Visitors from Darker Worlds, Werner Herzog e Clive Oppenheimer
1951, Oyû-sama, Kenji Mizoguchi
2002, Deux, Werner Schroeter
1970, L’enfant sauvage, François Truffaut
1936, U Samogo Sinego Morya, Boris Barnet
2020, Nomadland, Chloé Zhao
1941, Man Hunt, Fritz Lang
1938, La femme du boulanger, Marcel Pagnol
1940, La fille du puisatier, Marcel Pagnol
2020, The Disciple, Chaitanya Tamhane
2019, Cães que Ladram aos Pássaros, Leonor Teles
2000, Su Zhou he, Lou Ye
2020, Sportin' Life, Abel Ferrara
1936, Mon père avait raison, Sacha Guitry
1951, La Poison, Sacha Guitry
2008, Tony Manero, Pablo Larraín
2010, Post Mortem, Pablo Larraín
2012, No, Pablo Larraín
2015, El Club, Pablo Larraín
2016, Neruda, Pablo Larraín
2012, Elena, Petra Costa
1923, The Ten Commandments, Cecil B. DeMille
1996, Daijiga Umule Pajinnal, Hong Sang-Soo
2006, Haebyeonui yeoin, Hong Sang-Soo
1986, Kong bu fen zi, Edward Yang
1994, Pred dozhdot, Milcho Manchevski
1934, 1860 I Mille di Garibaldi, Alessandro Blasetti
2013, Sacro GRA, Gianfranco Rosi
1978, Les Rendez-Vous d’Anna, Chantal Akerman
1982, Toute une nuit, Chantal Akerman
1971, Blaise Pascal, Roberto Rossellini
1972, Agostino d’Ippona, Roberto Rossellini
1948, L’Amore, Roberto Rossellini
1984, Kaos, Paolo e Vittorio Taviani
1914, Cabiria, Giovanni Pastrone
2000, La Captive, Chantal Akerman
2016, Lumière!, Thierry Frémaux
1930, Liliom, Frank Borzage
1965, Shenandoah, Andrew V. McLaglen
2004, Dare mo Shiranai, Hirokazu Koreeda
2008, Aruitemo aruitemo, Hirokazu Koreeda
1942, Mrs. Miniver, William Wyler
1943, Destination Tokyo, Delmer Daves
2002, Yadon ilaheyya, Elia Suleiman
revisões:
1983, The Outsiders, Francis F. Coppola
1939, Zangiku monogatari, Kenji Mizoguchi
1953, Ugetsu monogatari, Kenji Mizoguchi
1953, Gion Bayashi, Kenji Mizoguchi
1954, Chikamatsu monogatari, Kenji Mizoguchi
1990, Miller's Crossing, Joel Coen e Ethan Coen
1995, Kids, Larry Clark
1980, The Big Red One, Samuel Fuller
1970, M*A*S*H, Robert Altman
1983, Merry Christmas Mr. Lawrence, Nagisa Oshima
1987, The Last Emperor, Bernardo Bertolucci
2008, Gran Torino, Clint Eastwood
2008, Changeling, Clint Eastwood
2006, Flags of Our Fathers, Clint Eastwood
1969, The Wild Bunch, Sam Peckinpah
1973, Pat Garrett & Billy the Kid, Sam Peckinpah
1972, The Life and Times of Judge Roy Bean, John Huston
1979, Tess, Roman Polanski
1970, Socrate, Roberto Rossellini
1974, Cartesius, Roberto Rossellini
1994, Chungking Express, Wong Kar-Wai
1990, The Sheltering Sky, Bernardo Bertolucci
1970, Patton, Franklin J. Schaffner
1951, An American in Paris, Vicente Minnelli
1965, Major Dundee, Sam Peckinpah
1981, Victory, John Huston
1955, East of Eden, Elia Kazan
1963, Cleopatra, Joseph L. Mankiewicz
1970, Rio Lobo, Howard Hawks
8 de junho de 2021
"NEWS FROM HOME, o filme de Chantal Akerman que antecedeu LES RENDEZ-VOUS D'ANNA, é um filme de longos planos-sequência de Nova Iorque, cidade em que foi inteiramente rodado e que é dada a ver como a sua verdadeira personagem - a outra, a de uma rapariga que por lá estará a habitar o espaço filmado sem protagonistas, permanece fora de campo, evocada pela leitura em off das cartas da mãe que lhe chegam da Europa. Pode dizer-se que, como JEANNE DIELMAN, 23, QUAI DU COMMERCE, 1080, BRUXELLES (de 1975, antecedente de NEWS FROM HOME e a obra pela qual Chantal foi reconhecida como uma grande autora do cinema moderno), é um filme rigorosamente centrado na ideia da duração. LES RENDEZ-VOUS D'ANNA representa, de certo modo, uma inflexão já que, voltando à Europa (é rodado na Alemanha, na Bélgica e em França), Akerman o estrutura a partir da ideia da travessia do espaço, centrando-se narrativamente numa personagem (Anna) e numa actriz (Aurore Clément, a quem Akerman chamava Sunrise). "Aurore Clément em LES RENDEZ-VOUS D'ANNA", dita o genérico.
Os planos que acompanham Anna, quase nunca se prolongando para lá da sua presença neles, seguem, assim, o ritmo da personagem. sem que evidentemente isso dispense o rigor, normalmente fixo ou vagarosamente panorâmico, sem grandes movimentações de câmara, dos planos de Akerman. LES RENDEZ-VOUS D'ANNA é mesmo um filme de extremo rigor, construído em cenas ou sequências definidas como "blocos" narrativos, formalmente lapidadas, enquadradas com um sentido geométrico e uma simetria extrema. Há nele uma austeridade de que irradia uma estranheza comum à caracterização e aos gestos da personagem de Anna. Na altura, Akerman manifestou reticências relativamente à "estética do filme", um ritmo de planos (mesmo que estes sejam longos e lentos, saltam de uns para os outros assim que a personagem sai de campo) que até aí não usara.
A própria Akerman referia este filme como aquele que marcou a sua descoberta dos actores (da representação) e com ela a da noção de alguma coisa que escapa ao controlo do realizador a favor do filme. Reivindicando o carácter activo (por oposição a reactivo) da sua direcção de actores, que terá sido particularmente evidente na colaboração com Delphine Seyrig em JEANNE DIELMAN, Akerman trabalhou de uma forma diferente com Aurore Clément, descobrindo com ela a personagem de Anna, jovem realizadora que viaja de país em país, de estação de comboios em estação de comboios, de quarto de hotel em quarto de hotel, na Europa de finais dos anos setenta acompanhando as apresentações de um filme. O que se passa, como por norma se passa nos filmes de Akerman, é que o lugar é dado ao que normalmente não tem lugar nos filmes, isto é, a momentos por norma invisíveis. Não vemos nada do filme que Anna acompanha, nada das sessões públicas, nada de Anna em trabalho. Vemos o que se passa "entretanto", quando se chega e quando se parte, muitos silêncios e, pontuando-os como acção dramática, os "encontros" de Anna. E como neste filme existe latente um discurso sobre a Europa, essas personagens, como os actores que as representam vindas de cantos diferentes, com percursos diferentes, sotaques diferentes, transportam consigo uma carga também ela latente, sejam eles o alemão (Helmut Grien), o francês (Jean-Pierre Cassel), a estrangeira na Bélgica, sua mãe (Léa Massari).
Anna é a viajante. Uma mulher elegante que atravessa espaços incaracterísticos, sempre (quase) com a mesma roupa, os mesmos sapatos castanhos e nos mesmos tons pastel, uma aparência ao mesmo tempo imperturbável e enigmática. O que dela se conhece é progressivo, "cresce" até à sequência final quando, finalmente num décor que lhe pertence (o seu apartamento em Paris), ouve estendida na cama as mensagens gravadas no atendedor de chamadas. A cena, um longo plano fixo comum a outros finais de Akerman (JEANNE DIELMAN, outra vez), condensa em si mesma todo o filme, mas nesse momento já houve tempo e espaço para "decifrar" a personagem que é mais de silêncios que de diálogos e que vemos mais a escutar os monólogos de outros do que a dialogar com eles. À excepção do encontro com a mãe, perto da Gare du Midi em Bruxelas, a quem conta a sua história com a rapariga italiana por cujo telefonema passa o tempo a esperar enquanto pernoita nos hotéis por onde vai passando, nos outros encontros Anna ouve aquilo que a sua presença suscita no discurso dos outros. Provavelmente a condição de "passageira", a errância e o desprendimento mas também a disponibilidade a eles associada, suscitam uma maior liberdade afectiva na aproximação dos que com ela se cruzam.
Este filme partiu da vontade de filmar um argumento centrado num encontro entre uma mãe e uma filha. Akerman pensou depois em encontrar uma "mulher hitchcockiana" a quem entregasse a personagem de Anna, alguém em cujo rosto nada estivesse inscrito à partida, mas decidiu-se por Aurore Clément, uma indicação de Delphine Seyrig. O filme evoluiu à medida da progressão da personagem de Anna e do grande entendimento que sobre ela terá existido entre a realizadora e a actriz. Descobriram juntas a maneira de Anna habitar os espaços que atravessa, ou muito concretamente a sua maneira ao mesmo tempo natural e rígida de caminhar em cima dos sapatos de tacão alto. O funambulismo de Anna. Se o filme corresponde à viagem de uma nómada que nada possuiu no espaço que atravessa, como Akerman o referiu, é a sua presença que aciona nos conhecidos e desconhecidos com quem se cruza a torrente de confidências que transporta "a sombra dos grandes acontecimentos colectivos, a história da Europa ao longo dos últimos cinquenta anos".
Note-se que este foi o primeiro filme que Chantal Akerman realizou com meios de produção "profissionais" (um orçamento não luxuoso, mas conforme às exigências do argumento; uma equipa não excessivamente grande, mas em que cada um ocupava o seu lugar), o que se não lhe valeu uma sensação de grande diferença durante a rodagem, mereceu-lhe vários comentários sobre a importância de ter filmado muito jovem, sem compromissos nem máquina de produção que tolhessem a liberdade de escolhas e de movimentos que até NEWS FROM HOME considerou, por felicidade, ter conseguido: "os primeiros filmes são sempre mais pessoais." Mas pessoal, profundamente pessoal, é LES RENDEZ-VOUS D'ANNA, em que se reconhecem reflexos biográficos de Akerman, desde logo no nome da protagonista, realizadora de cinema chamada Anna, como Chantal Anne (Anna, um nome judeu, era o nome a que Chantal respondia em criança).
Sobre LES RENDEZ-VOUS D'ANNA paira uma muito concreta reflexão sobre a condição europeia, e nela sobre a Alemanha que está "cheia de alemães", mas este é também o filme em Akerman atinge outras coisas. Por exemplo, filmar o que muitas canções passam a vida a dizer sobre as pessoas. O que é engraçado é que aconteça lembrarmo-nos disso antes do final do filme, antes de Anna cantar La Chambre à louer. Não é garantido que funcione para todos os espectadores, mas aos que acontecer tem graça."
Maria João Madeira in "AS FOLHAS DA CINEMATECA, CHANTAL AKERMAN"
12 de maio de 2021
sobre o Walsh, vale a pena fazer umas visitas ao João...
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10 de maio de 2021
O que encontramos em The Disciple de Chaitanya Tamhane é uma beleza incomum nos dias de hoje no cinema. Somos levados por uma viagem interior que nos aguça os sentidos, quer musicalmente quer visualmente, numa constante procura de realização individual e pessoal com base nos modelos/ídolos da vida deste discípulo (ou aluno). Desde o pai ao guruji, a quem ele se dedica fervorosamente, às cassetes “ocultas” da mestra destes dois, Sharad trilha uma viagem imersa na dedicação, na obstinação e na obsessão, visitando a frustração e a inveja, e abraçando a resignação no final. Belo filme este que condensa em si influências Tarkovskyanas e Weerasethakulianas (as mais notórias), com uma maturidade cinematográfica surpreendente para um cineasta de 33 anos.
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Nunca antes um filme foi tão sublime, tão esplêndido. Magnífica obra-prima de Milos Forman que junta a melhor obra do realizador tal com...