O ESPELHO DO TEMPO
Com O Quinto Império: Ontem como Hoje, o arco traçado, na obra de Manoel de Oliveira, entre NON ou a Vã Glória de Mandar (1990) e Palavra e Utopia (2000) ganha um vértice inesperado, dando forma a uma nova zona capitular onde está em jogo a História de Portugal, algumas das suas principais figuras e alguns dos seus mais trágicos momentos. Tendo por base a peça de José Régio – El-Rei D. Sebastião –, O Quinto Império tem por centro dramático os dias que antecederam a resolução de D. Sebastião em empreender a jornada de AlcácerQuibir. E se é certo que o filme nos dá muito sobre o conjunto de condições mentais, históricas e dramáticas que empurraram Rei e Reino para a perdição, a verdade é que o programa de Manoel de Oliveira é bem mais vasto, configurando uma reflexão profunda sobre as cicatrizes que a história deixa num País, através do Tempo, seu único e poderoso agente.
Ontem como hoje; assim diz o subtítulo de O Quinto Império e di-lo bem. Porque a grande operação conceptual do filme passa por esse esforço em colocar a figura de D. Sebastião na cena em que, com toda a probabilidade, ela própria se pensou, isto é, fora das circunstâncias efectivas da história, da conjuntura palaciana e do pragmatismo do governo. Ontem, porque é do tempo passado que o Rei se alimenta (a peregrinação pelos túmulos dos grandes reis com que o filme abre; a manipulação fetichista do espadão de Afonso Henriques); hoje, porque é neste aqui e neste agora que Oliveira filma, porque é em nome deste hoje que o filme se faz. E que dizer, a este respeito, da utilização de Ricardo Trepa – actor que é neto de Manoel de Oliveira – , na personagem de D. Sebastião, assumindo-se como verdadeiro alter-ego – auto-retrato – do próprio realizador, lembrando por vezes mais o Manoel de Oliveira que vimos em A Canção de Lisboa (1933) do que o próprio Rei, cujo retrato Oliveira filma, propositadamente, para nos fazer lembrar menos as semelhanças do que as diferenças? Em certo sentido, O Quinto Império pode até ser considerado um “filme sebastianista” (como o foram os sermões de Vieira ou a poesia de Pessoa), pela simples razão de nos tornar tangível o incompreensível, de nos fazer entender a razão fora das razões, de nos fazer perceber porque, apesar desse tudo que é imenso, D. Sebastião nos é uma figura sumamente admirável, talvez por ter personificado, como ninguém, a Utopia e por ter dado a um país desgraçado um modo de se pensar como coisa maior do que si próprio (bigger than life, literalmente).
Já se terá percebido quão retorcidos são os caminhos deste O Quinto Império, como tão certeiramente acompanham as voltas e reviravoltas das escadarias maneiristas do Convento de Cristo e a grelha crepuscular da janela da sala do trono, em torno da qual quase todo o filme se passa. Porque em O Quinto Império há o respeito escrupuloso pela palavra e personagens da peça de José Régio, mas há sobre esse respeito “teatral” – que o filme assume – um trabalho essencial da luz, da penumbra e da planificação, a agitação desequilibrante do cinema, que põe toda essa matéria a fervilhar no “hoje” que o título designa e que é para onde o filme transporta o mito, tornando-o, através do cinema e da perenidade dos seus materiais, coisa realmente fantasmática e terrivelmente Imortal.
João Mário Grilo
(in Visão, 3 de fevereiro de 2005).
Escrito há já dez anos, este texto e o filme que ele, humildemente, convoca enfrentam hoje, solidariamente, a (sempre dura) prova do tempo. E nesse desiderato, há-de dizer-se que não só o Tempo – e a parte da nossa história que dele depende – tem sido Documento de trabalho do filme O Quinto Império: Ontem como Hoje (2004), depositado na Casa do Cinema Manoel de Oliveira — Fundação de Serralves. especialmente benéfico para o cinema de Oliveira, como este filme, particular e “acentuado” como poucos mais, tão bem mostra como, olhando aparentemente “para trás”, os filmes de Manoel de Oliveira são tão extraordinárias maneiras/máquinas de nos pôr a olhar – profeticamente – “para a frente”. Filme sobre o poder e os seus por vezes “delirantes” imaginários, O Quinto Império: Ontem como Hoje devia ser (hoje e sempre) um filme de visão obrigatória. Por ele – pelo seu Rei e pelo modo como no seu rosto e na sua inquietação se espelham o – também nosso – porvir – perpassa quase tudo o que é preciso saber sobre as andanças deste país: como ele foi, como ele é, como não pode (fatalmente, tragicamente) vir a ser. Ontem como hoje, hoje como amanhã. E o cinema – mas também o teatro e a poesia – (quase) sempre.
João Mário Grilo
Dezembro de 2015
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