8 de junho de 2021



    "NEWS FROM HOME, o filme de Chantal Akerman que antecedeu LES RENDEZ-VOUS D'ANNA, é um filme de longos planos-sequência de Nova Iorque, cidade em que foi inteiramente rodado e que é dada a ver como a sua verdadeira personagem - a outra, a de uma rapariga que por lá estará a habitar o espaço filmado sem protagonistas, permanece fora de campo, evocada pela leitura em off das cartas da mãe que lhe chegam da Europa. Pode dizer-se que, como JEANNE DIELMAN, 23, QUAI DU COMMERCE, 1080, BRUXELLES (de 1975, antecedente de NEWS FROM HOME e a obra pela qual Chantal foi reconhecida como uma grande autora do cinema moderno), é um filme rigorosamente centrado na ideia da duração. LES RENDEZ-VOUS D'ANNA representa, de certo modo, uma inflexão já que, voltando à Europa (é rodado na Alemanha, na Bélgica e em França), Akerman o estrutura a partir da ideia da travessia do espaço, centrando-se narrativamente numa personagem (Anna) e numa actriz (Aurore Clément, a quem Akerman chamava Sunrise). "Aurore Clément em LES RENDEZ-VOUS D'ANNA", dita o genérico. 
    Os planos que acompanham Anna, quase nunca se prolongando para lá da sua presença neles, seguem, assim, o ritmo da personagem. sem que evidentemente isso dispense o rigor, normalmente fixo ou vagarosamente panorâmico, sem grandes movimentações de câmara, dos planos de Akerman. LES RENDEZ-VOUS D'ANNA é mesmo um filme de extremo rigor, construído em cenas ou sequências definidas como "blocos" narrativos, formalmente lapidadas, enquadradas com um sentido geométrico e uma simetria extrema. Há nele uma austeridade de que irradia uma estranheza comum à caracterização e aos gestos da personagem de Anna. Na altura, Akerman manifestou reticências relativamente à "estética do filme", um ritmo de planos (mesmo que estes sejam longos e lentos, saltam de uns para os outros assim que a personagem sai de campo) que até aí não usara.
    A própria Akerman referia este filme como aquele que marcou a sua descoberta dos actores (da representação) e com ela a da noção de alguma coisa que escapa ao controlo do realizador a favor do filme. Reivindicando o carácter activo (por oposição a reactivo) da sua direcção de actores, que terá sido particularmente evidente na colaboração com Delphine Seyrig em JEANNE DIELMAN, Akerman trabalhou de uma forma diferente com Aurore Clément, descobrindo com ela a personagem de Anna, jovem realizadora que viaja de país em país, de estação de comboios em estação de comboios, de quarto de hotel em quarto de hotel, na Europa de finais dos anos setenta acompanhando as apresentações de um filme. O que se passa, como por norma se passa nos filmes de Akerman, é que o lugar é dado ao que normalmente não tem lugar nos filmes, isto é, a momentos por norma invisíveis. Não vemos nada do filme que Anna acompanha, nada das sessões públicas, nada de Anna em trabalho. Vemos o que se passa "entretanto", quando se chega e quando se parte, muitos silêncios e, pontuando-os como acção dramática, os "encontros" de Anna. E como neste filme existe latente um discurso sobre a Europa, essas personagens, como os actores que as representam vindas de cantos diferentes, com percursos diferentes, sotaques diferentes, transportam consigo uma carga também ela latente, sejam eles o alemão (Helmut Grien), o francês (Jean-Pierre Cassel), a estrangeira na Bélgica, sua mãe (Léa Massari).
    Anna é a viajante. Uma mulher elegante que atravessa espaços incaracterísticos, sempre (quase) com a mesma roupa, os mesmos sapatos castanhos e nos mesmos tons pastel, uma aparência ao mesmo tempo imperturbável e enigmática. O que dela se conhece é progressivo, "cresce" até à sequência final quando, finalmente num décor que lhe pertence (o seu apartamento em Paris), ouve estendida na cama as mensagens gravadas no atendedor de chamadas. A cena, um longo plano fixo comum a outros finais de Akerman (JEANNE DIELMAN, outra vez), condensa em si mesma todo o filme, mas nesse momento já houve tempo e espaço para "decifrar" a personagem que é mais de silêncios que de diálogos e que vemos mais a escutar os monólogos de outros do que a dialogar com eles. À excepção do encontro com a mãe, perto da Gare du Midi em Bruxelas, a quem conta a sua história com a rapariga italiana por cujo telefonema passa o tempo a esperar enquanto pernoita nos hotéis por onde vai passando, nos outros encontros Anna ouve aquilo que a sua presença suscita no discurso dos outros. Provavelmente a condição de "passageira", a errância e o desprendimento mas também a disponibilidade a eles associada, suscitam uma maior liberdade afectiva na aproximação dos que com ela se cruzam.
    Este filme partiu da vontade de filmar um argumento centrado num encontro entre uma mãe e uma filha. Akerman pensou depois em encontrar uma "mulher hitchcockiana" a quem entregasse a personagem de Anna, alguém em cujo rosto nada estivesse inscrito à partida, mas decidiu-se por Aurore Clément, uma indicação de Delphine Seyrig. O filme evoluiu à medida da progressão da personagem de Anna e do grande entendimento que sobre ela terá existido entre a realizadora e a actriz. Descobriram juntas a maneira de Anna habitar os espaços que atravessa, ou muito concretamente a sua maneira ao mesmo tempo natural e rígida de caminhar em cima dos sapatos de tacão alto. O funambulismo de Anna. Se o filme corresponde à viagem de uma nómada que nada possuiu no espaço que atravessa, como Akerman o referiu, é a sua presença que aciona nos conhecidos e desconhecidos com quem se cruza a torrente de confidências que transporta "a sombra dos grandes acontecimentos colectivos, a história da Europa ao longo dos últimos cinquenta anos".
    Note-se que este foi o primeiro filme que Chantal Akerman realizou com meios de produção "profissionais" (um orçamento não luxuoso, mas conforme às exigências do argumento; uma equipa não excessivamente grande, mas em que cada um ocupava o seu lugar), o que se não lhe valeu uma sensação de grande diferença durante a rodagem, mereceu-lhe vários comentários sobre a importância de ter filmado muito jovem, sem compromissos nem máquina de produção que tolhessem a liberdade de escolhas e de movimentos que até NEWS FROM HOME considerou, por felicidade, ter conseguido: "os primeiros filmes são sempre mais pessoais." Mas pessoal, profundamente pessoal, é LES RENDEZ-VOUS D'ANNA, em que se reconhecem reflexos biográficos de Akerman, desde logo no nome da protagonista, realizadora de cinema chamada Anna, como Chantal Anne (Anna, um nome judeu, era o nome a que Chantal respondia em criança).
    Sobre LES RENDEZ-VOUS D'ANNA paira uma muito concreta reflexão sobre a condição europeia, e nela sobre a Alemanha que está "cheia de alemães", mas este é também o filme em Akerman atinge outras coisas. Por exemplo, filmar o que muitas canções passam a vida a dizer sobre as pessoas. O que é engraçado é que aconteça lembrarmo-nos disso antes do final do filme, antes de Anna cantar La Chambre à louer. Não é garantido que funcione para todos os espectadores, mas aos que acontecer tem graça." 

Maria João Madeira in "AS FOLHAS DA CINEMATECA, CHANTAL AKERMAN"

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