Pela forma como foi montado, "Maidan" parece recusar interpretações do que aconteceu entre Dezembro e Fevereiro em Kiev. Era sua intenção manter esse distanciamento?
Tudo o que faço quando construo os meus filmes é intencional. Não pode haver "acidentes" no cinema. Fi-lo porque quis dar aos espectadores a hipótese de experienciarem a atmosfera dos eventos e tirarem as suas próprias conclusões.
Porque decidiu fazer este filme?
Foi quando cheguei a Kiev a 14 de Dezembro. Não pude ir mais cedo, porque estava a terminar uma curta documental, mas assim que dei por mim na Maidan, percebi que tinha de fazer um filme. A atmosfera era incrível, fez-me lembrar um carnaval medieval. Conseguia ver o rosto da nação ali, um que nunca tinha visto antes - havia genuína solidariedade, camaradagem e um desejo de mudança. Tornou-se óbvio para mim que o regime de Yanukovitch estava condenado. Conseguia ver a nação a acordar, senti que a História estava a ser escrita na Maidan.
O que o levou a focar-se na massa, na multidão, e não em personagens específicas como líderes dos protestos?
Os protagonistas da Maidan são o povo ucraniano. O povo que fez a revolução. Não queria concentrar-me em nenhum indivíduo em particular porque o meu herói é a minha nação, a massa, a sociedade civil. Queria observar o que se estava a passar na sua inteireza. Queria ver uma nação a nascer, observar a nação a alterar o seu próprio destino.
A cena inicial mostra-nos os manifestantes a cantar o hino nacional e o filme termina com milhares a cantar uma música igualmente patriótica. Parecem ser as únicas cenas do documentário que são, de certa forma, interpretativas. Sentiu ser fulcral definir o início e o fim dessa forma?
A canção da cena final é uma canção folclórica, cujo protagonista contempla a sua morte longe da sua pátria e da sua mãe, que foi cantada durante o funeral dos heróis da Maidan. Fiquei maravilhado com a explosão de criatividade e de cultura folclórica durante os eventos na praça, havia poetas e cantores todos juntos, a cantar e a recitar. Vi uma manifestação em que as pessoas entraram em contacto com as suas raízes e celebraram a sua identidade. É absolutamente natural que uma revolução desta natureza liberte uma quantidade enorme de sentimentos patrióticos. Na realidade, é impossível para uma nação construir-se sem este tipo de patriotismo "não-violento", uma coisa de que Isaiah Berlin fala num ensaio sobre nacionalismo e o seu papel na criação das sociedades modernas.
Há várias notícias sobre extremistas-naiconalista e grupos fascistas a actuarem em Kiev e noutras partes do país. Como relaciona isso com esse patriotismo que depôs Yanukovitch?
O regime de Yanukovitch não foi deposto pelos sentimentos patrióticos da nação, mas sim pelo desdém com que tratou as pessoas e a sua forma indecente e corrupta de "governação". As pessoas simplesmente não conseguiam tolerar mais isso. Não podemos esquecer-nos que a Ucrânia foi uma colónia da Rússia e uma província do império russo durante séculos, pelo que não é surpreendente que as pessoas tenham reagido fortemente quando perceberam que as acções de Yanukovitch estavam, novamente, a reduzir o país a um papel de estado-satélite da Rússia. Se alguém entrar na tua casa e disser que é sua, tu também irás resistir e querer identificar-te como dono da casa através de todos os meios possíveis, incluindo vestindo um traje nacional.
Reparou em movimentações desses grupos nazis ou de extrema-direita na Maidan durante a feitura do filme?
A maioria dessas coisas que ouvimos nas notícias são produto da propaganda estatal russa, que infelizmente é muitas vezes traduzida e disseminada pelos media ocidentais. Durante as eleições de Maio de 2014, os candidatos da extrema-direita receberam uma minúscula parte dos votos, cerca de 1,5% do total, menos do que os candidatos que representavam a comunidade judaica ucraniana. Isto diz tudo o que uma pessoa precisa de saber sobre a existência de "fascistas" na Ucrânia.
Li que, durante o Festival de Cinema de Cannes, se recusou a falar com jornalistas russos sobre o filme. Foi por causa dessa propaganda?
É verdade que recusei e que foi por causa disso. Não queria e não quero falar com pessoas que trabalham para os media russos, porque os media russos perderam a sua função de fornecer informação. Tornaram-se uma arma de propaganda na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Uma arma letal. Não desejo estar envolvido nessa guerra.
Alguns críticos dizem que o seu filme falha ao não transmitir de forma abrangente o que se está a passar desde Novembro. O que pensa disso?
Que não sou um jornalista nem uma agência de notícias, cujo trabalho é passar essa imagem abrangente. O que faço é cinema, que tem funções diferentes.
Sente que "Maidan" é um prelúdio cinematográfico para a crise que se instalou no país entretanto?
O que estamos a atravessar não é uma crise, é uma agressão de um país que atacou o seu vizinho quando estava num momento de maior fraqueza e anexou parte do território do vizinho. A história da Maidan acabou quando Yanukovitch fugiu para a Rússia. O que se está a passar na Ucrânia agora é uma história diferente. Claro que tem origem nos eventos da Maidan, mas deve ser vista e entendida num contexto diferente.
Voltando à questão da interpretação, mas do ponto de vista de cidadão e não de realizador: como vê o que se está a passar agora no país?
Essa pergunta requer uma entrevista à parte, uma discussão ou até uma palestra... Resumindo, penso que há três revoluções diferentes a acontecer e que começaram no último inverno: uma anticorrupção, uma anti-soviética e uma anticolonial. Apesar de o país ser oficialmente "independente" desde a queda da URSS, só depois dos eventos do passado inverno é que o povo ucraniano tentou realmente separar-se do passado soviético e começar a construir um estado democrático. Agora o país está sob ataque militar da Rússia e parte do seu território - a Crimeia e certas regiões do Leste - estão sob ocupação russa. O futuro próximo irá mostrar se o povo ucraniano será capaz de aguentar a pressão e resistir à agressão russa. Acredito que o futuro do país é com a Europa, mas também acredito que esta passagem para uma democracia vai ser extremamente traiçoeira.
Acredita que as eleições antecipadas vão ser um primeiro passo?
Acredito que não haveria rebeldes no Leste da Ucrânia se as tropas russas e cidadãos militantes não tivessem invadido o território ucraniano. Achas que aquelas centenas de tanques e unidades de artilharia pesada e milhares de mísseis que estão a ser usados ali foram comprados em lojas de conveniência da Ucrânia? Se o lado russo decidir parar a agressão, a guerra vai acabar. Se a Rússia decidir continuar, a guerra também continuará. A guerra pode afectar as eleições de 26 de Outubro, mas as eleições não podem afectar a guerra.
Tudo o que faço quando construo os meus filmes é intencional. Não pode haver "acidentes" no cinema. Fi-lo porque quis dar aos espectadores a hipótese de experienciarem a atmosfera dos eventos e tirarem as suas próprias conclusões.
Porque decidiu fazer este filme?
Foi quando cheguei a Kiev a 14 de Dezembro. Não pude ir mais cedo, porque estava a terminar uma curta documental, mas assim que dei por mim na Maidan, percebi que tinha de fazer um filme. A atmosfera era incrível, fez-me lembrar um carnaval medieval. Conseguia ver o rosto da nação ali, um que nunca tinha visto antes - havia genuína solidariedade, camaradagem e um desejo de mudança. Tornou-se óbvio para mim que o regime de Yanukovitch estava condenado. Conseguia ver a nação a acordar, senti que a História estava a ser escrita na Maidan.
O que o levou a focar-se na massa, na multidão, e não em personagens específicas como líderes dos protestos?
Os protagonistas da Maidan são o povo ucraniano. O povo que fez a revolução. Não queria concentrar-me em nenhum indivíduo em particular porque o meu herói é a minha nação, a massa, a sociedade civil. Queria observar o que se estava a passar na sua inteireza. Queria ver uma nação a nascer, observar a nação a alterar o seu próprio destino.
A cena inicial mostra-nos os manifestantes a cantar o hino nacional e o filme termina com milhares a cantar uma música igualmente patriótica. Parecem ser as únicas cenas do documentário que são, de certa forma, interpretativas. Sentiu ser fulcral definir o início e o fim dessa forma?
A canção da cena final é uma canção folclórica, cujo protagonista contempla a sua morte longe da sua pátria e da sua mãe, que foi cantada durante o funeral dos heróis da Maidan. Fiquei maravilhado com a explosão de criatividade e de cultura folclórica durante os eventos na praça, havia poetas e cantores todos juntos, a cantar e a recitar. Vi uma manifestação em que as pessoas entraram em contacto com as suas raízes e celebraram a sua identidade. É absolutamente natural que uma revolução desta natureza liberte uma quantidade enorme de sentimentos patrióticos. Na realidade, é impossível para uma nação construir-se sem este tipo de patriotismo "não-violento", uma coisa de que Isaiah Berlin fala num ensaio sobre nacionalismo e o seu papel na criação das sociedades modernas.
Há várias notícias sobre extremistas-naiconalista e grupos fascistas a actuarem em Kiev e noutras partes do país. Como relaciona isso com esse patriotismo que depôs Yanukovitch?
O regime de Yanukovitch não foi deposto pelos sentimentos patrióticos da nação, mas sim pelo desdém com que tratou as pessoas e a sua forma indecente e corrupta de "governação". As pessoas simplesmente não conseguiam tolerar mais isso. Não podemos esquecer-nos que a Ucrânia foi uma colónia da Rússia e uma província do império russo durante séculos, pelo que não é surpreendente que as pessoas tenham reagido fortemente quando perceberam que as acções de Yanukovitch estavam, novamente, a reduzir o país a um papel de estado-satélite da Rússia. Se alguém entrar na tua casa e disser que é sua, tu também irás resistir e querer identificar-te como dono da casa através de todos os meios possíveis, incluindo vestindo um traje nacional.
Reparou em movimentações desses grupos nazis ou de extrema-direita na Maidan durante a feitura do filme?
A maioria dessas coisas que ouvimos nas notícias são produto da propaganda estatal russa, que infelizmente é muitas vezes traduzida e disseminada pelos media ocidentais. Durante as eleições de Maio de 2014, os candidatos da extrema-direita receberam uma minúscula parte dos votos, cerca de 1,5% do total, menos do que os candidatos que representavam a comunidade judaica ucraniana. Isto diz tudo o que uma pessoa precisa de saber sobre a existência de "fascistas" na Ucrânia.
Li que, durante o Festival de Cinema de Cannes, se recusou a falar com jornalistas russos sobre o filme. Foi por causa dessa propaganda?
É verdade que recusei e que foi por causa disso. Não queria e não quero falar com pessoas que trabalham para os media russos, porque os media russos perderam a sua função de fornecer informação. Tornaram-se uma arma de propaganda na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Uma arma letal. Não desejo estar envolvido nessa guerra.
Alguns críticos dizem que o seu filme falha ao não transmitir de forma abrangente o que se está a passar desde Novembro. O que pensa disso?
Que não sou um jornalista nem uma agência de notícias, cujo trabalho é passar essa imagem abrangente. O que faço é cinema, que tem funções diferentes.
Sente que "Maidan" é um prelúdio cinematográfico para a crise que se instalou no país entretanto?
O que estamos a atravessar não é uma crise, é uma agressão de um país que atacou o seu vizinho quando estava num momento de maior fraqueza e anexou parte do território do vizinho. A história da Maidan acabou quando Yanukovitch fugiu para a Rússia. O que se está a passar na Ucrânia agora é uma história diferente. Claro que tem origem nos eventos da Maidan, mas deve ser vista e entendida num contexto diferente.
Voltando à questão da interpretação, mas do ponto de vista de cidadão e não de realizador: como vê o que se está a passar agora no país?
Essa pergunta requer uma entrevista à parte, uma discussão ou até uma palestra... Resumindo, penso que há três revoluções diferentes a acontecer e que começaram no último inverno: uma anticorrupção, uma anti-soviética e uma anticolonial. Apesar de o país ser oficialmente "independente" desde a queda da URSS, só depois dos eventos do passado inverno é que o povo ucraniano tentou realmente separar-se do passado soviético e começar a construir um estado democrático. Agora o país está sob ataque militar da Rússia e parte do seu território - a Crimeia e certas regiões do Leste - estão sob ocupação russa. O futuro próximo irá mostrar se o povo ucraniano será capaz de aguentar a pressão e resistir à agressão russa. Acredito que o futuro do país é com a Europa, mas também acredito que esta passagem para uma democracia vai ser extremamente traiçoeira.
Acredita que as eleições antecipadas vão ser um primeiro passo?
Acredito que não haveria rebeldes no Leste da Ucrânia se as tropas russas e cidadãos militantes não tivessem invadido o território ucraniano. Achas que aquelas centenas de tanques e unidades de artilharia pesada e milhares de mísseis que estão a ser usados ali foram comprados em lojas de conveniência da Ucrânia? Se o lado russo decidir parar a agressão, a guerra vai acabar. Se a Rússia decidir continuar, a guerra também continuará. A guerra pode afectar as eleições de 26 de Outubro, mas as eleições não podem afectar a guerra.
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