EL SOL DEL MEMBRILLO
(O Sol do Marmeleiro)
(O Sol do Marmeleiro)
Victor Erice
El Sol del Membrillo foi realizado pelo espanhol Victor Erice (n. 1940) em 1992.
Erice, que começou a «carreira» em 1968
(bastante novinho) só realizou, até hoje, três longas-metragens: El Espiritu de la Colmena (1973), El Sur (1983) e o filme que hoje aqui me
traz. Quem lhe conheça um pouco de história da vida, pode legitimamente
lamentar-se destes tempos em que se come Almodóvar por Buñuel. Mas nem de
Cassandra nem de carpideira são os meus propósitos. Senão, não acabava quando
uma figura…
E a figura é a do pintor Antonio López
(n. 1936) que, numa tarde de Junho de 1993, descobri no Centro Reina Sofia, em
Madrid, ser o segundo espanhol deste século – depois de Picasso – a transformar
a história da pintura. No sentido oposto e como o anti-Picasso? Aparentemente
sim, se se achar – e pode achar-se – que ele está para a história da pintura
não-figurativa como a queda do Muro de Berlim está para a história do
comunismo. Mas a questão é muito mais complexa e eu prefiro dizer – como Victor
Erice – que a questão que a pintura de López coloca não é a do realismo mas a
do naturalismo.
Aconteceu que, no dia 29 de Setembro de
1990, Antonio López começou a pintar o marmeleiro do seu jardim, tentando captar
a luz tão bonita que o sol do outono dá aos marmelos. Tentando agarrar «el sol del membrillo» e não «el sol nel membrillo» - e tenho pena
que a palavra marmeleiro seja muito mais feia do que a palavra membrillo, embora prefira a rude
tradução literal à falsa poesia do título francês (Le Songe de la Lumière) que, num filme sobre a luz e que acaba com
um sonho, se presta, ainda por cima, a muitas outras confusões. Mas nada de
pressas e recomenda-se à caneta o vagar do pincel de López.
Uns meses antes desse dia, Victor Erice
entrou pela casa de Antonio López. Conheciam-se e admiravam-se mutuamente mas
nunca se tinham encontrado pessoalmente. Passearam muito, conversaram muito. E,
um dia, López disse a Erice que no tal 29 – um sábado – ia começar a pintar o marmeleiro.
«Queres vir ver? Queres vir filmar?» E foi assim que tudo começou, sem qualquer
plano, «sem nenhuma premeditação».
O tempo do filme é o tempo que vai de
29 de Setembro (dia em que López começou a pintar o quadro e Victor Erice
começou a filmar o filme) a 11 de Dezembro, dois dias depois de López acabar. É
um tempo seguido a par e passo, ao princípio dia-a-dia (29,30,1 e 2 de
Outubro), depois com maiores intervalos, embora sem regularidade (por exemplo,
o dia-a-dia volta entre 24 e 28 de Outubro e há saltos de uma semana). Mas
sempre uma legenda nos previne em que dia estamos, para que o tempo não seja
esquecido.
Diz-se que a pintura não é uma arte do
tempo mas neste filme ela é-o. Porque não é um filme sobre um quadro, mas sobre
o tempo que demorou a pintá-lo. E foi por questões de tempo (um outono especialmente chuvoso e em que não houve verão de
S. Martinho) que no dia 24 de Outubro (vinte e cinco dias depois de o ter
começado a pintar) Antonio López desistiu do quadro a óleo e desistiu de
procurar «el sol del membrillo», arrumou a tela inacabada e principiou a
desenhar o marmeleiro, novo trabalho que iniciou a 26 de Outubro. Alguém lhe
diz, nesse tempo, que talvez o próximo ano seja melhor e que ele poderá
recomeçar então o quadro interrompido. López responde que é impossível. No ano
seguinte, a árvore estará maior e a relação sol-árvore-frutos será inteiramente
diversa, não se podendo repetir – nunca mais – o que só teria sido possível em
Outubro de 1990. Má sorte ou, como ele próprio diz, «mierda de tempo».
Mas, como é evidente, essa «mierda de tempo» nunca podia ter sido
captada por nenhum quadro, nenhuma pintura. É uma história à volta da pintura,
narrável mas não figurável nela. Se, em El Sol
del Membrillo, a pintura se faz tempo é porque El Sol del Membrillo não é um quadro mas um filme e um filme sobre o tempo que um quadro e
um desenho demoraram a ser pintados ou desenhados. Como Victor Erice declarou,
o tempo «é o tempo do cinema e não o tempo da pintura. Creio que o filme
exprime uma certa impossibilidade do cinema em relação à pintura.»
Por isso mesmo, a instância do tempo é
tão forte neste filme. Não só as datas, as folhas do calendário a passar. São
as inúmeras conversas sobre outros tempos (particularmente os dois
planos-sequência admiráveis em que Antonio López conversa com o seu amigo,
também pintor, Enrique Gran), é o tempo que demoram as obras na casa (paralelas
ao trabalho do pintor), são os noticiários que López ouve no rádio (a guerra do
Golfo), é a transformação da árvore e dos frutos durante esse tempo. No princípio, uma e outros são radiosos; no
fim, as folhas da árvore estão caídas no jardim e os frutos engelhados ou
apodrecidos. É o outono e a passagem do outono ao inverno. Mas não apenas como
estações do tempo dito «natural». Insensivelmente, desse outono passa-se a
outro, quando Enrique Gran, mais velho sete anos do que López, e, portanto, à
data das filmagens com 61 anos, fala dos pintores velhos que pintam febrilmente
e diz compreendê-los, agora, porque, a partir de certa idade, se sabe que já
resta muito pouco tempo.
Essa obsessiva presença do tempo (neste
filme situado num só espaço) introduz, lentamente, a presença da decomposição e
da morte, tema que une El Sol del
Membrillo aos filmes anteriores de Erice. El Sol del Membrillo acompanha o movimento do tempo que dá a morte
(ou traz a morte) e, como disse o realizador: «O cinema é formidável para
exprimir o nascimento e a decadência das coisas (…) Apresenta-se sempre o
cinema como algo de muito jovem, de apolíneo, mas eu acho que o cinema é a
língua que exprime as coisas mais fugitivas.»
Esta ideia tem uma imagem suprema nas
conversas, entre López e Gran, sobre uma reprodução do Juízo Final de Miguel Ângelo, quando opõem à terrífica visão divina
de Miguel Ângelo («um Deus que inspira terror até aos eleitos») a visão
luminosa dos gregos sobre os deuses deles, transparente na reprodução da Vénus
de Milo que desde o princípio do filme é figurada. Miguel Ângelo é o «homem das
crostas», Fídias o homem da luz. E é pouco depois que Gran diz quenato é breve
o tempo real.
E é tempo de falar do outro quadro interrompido de El Sol del Membrillo. É um quadro em que
Marga López (mulher de Antonio e, também ela, pintora) representou o marido a
dormir. No último dia do filme, ou na última noite do filme, Marga López pede a
Antonio para retomar a tela. Ele deita-se na cama, com o fato do quadro (fato
negro), segurando na mão o «poliedro perfeito» de Platão, que igualmente evoca
a bola de cristal do Kane de Welles.
A certa altura, adormece e o objecto
cai no chão. A mulher continua a pintar e a imagem é a imagem de um homem
morto, ou é a imagem da morte.
Depois, apaga as luzes, e sai, em off,
e sob essa imagem de morte, Antonio
López conta um sonho que teve em criança e em que havia uma luz que tudo
transformava em metal e cinza. «Não era a luz da noite, não era a luz do
crepúsculo, não era a luz do dia, não era a luz da aurora.»
Que luz era, López não o diz. Mas a
imagem que precede essa sequência e se lhe segue é a da câmara de filmar e do projector
aceso, frente uma ao outro, no jardim, iluminando os marmelos podres com uma
luz que nada tem de solar e, evocando memórias cinematográficas antiquíssimas
(do desenho animado à ficção científica), dá pleno sentido aos fabulosos planos
dos céus de Greco ou da lua de Méliès que, sobre Madrid, pontuaram o filme
quase desde o início.
Percebemos então por que é que Victor
Erice só fugiu à unidade de lugar (a
casa do pintor) para filmar «a árvore electrónica» (o posto de televisão) e
aquelas janelas na noite em que toda a gente mais não faz do que olhar o
televisor. «Hoje, a noite só cai sobre o mundo quando as televisões se apagam.»
E neste filme de tempo e sobre o tempo,
o último tempo é o dessa última luz que não doura mas dura e vem, de um tempo
futuro, apagar a doçura e o «cariño»
com que López e Gran cantando, procuraram – e não conseguiram – encantar os
frutos e a árvore.
Será por acaso que o desenho final de
López se aproxima do Juízo Final? Eu,
pelo menos, vi-o assim, neste filme genial em que a pintura caminha para o
esplendor e continuam a substituir, no final, na natureza apodrecida, as marcas
que López fez nas folhas e nos marmelos para melhor se acercar do centro da
perspectiva e da integridade que um
dia, há muito tempo, um velho professor lhe fixou como objectivo último.
E, no seu duplo sentido em espanhol
(obra completa, obra moral), esse é o substantivo que melhor convém ao filme íntegro chamado El Sol del Membrillo.
João Bénard da Costa
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