13 de dezembro de 2015


EL SOL DEL MEMBRILLO
(O Sol do Marmeleiro)


Victor Erice


           
            El Sol del Membrillo foi realizado pelo espanhol Victor Erice (n. 1940) em 1992.
Erice, que começou a «carreira» em 1968 (bastante novinho) só realizou, até hoje, três longas-metragens: El Espiritu de la Colmena (1973), El Sur (1983) e o filme que hoje aqui me traz. Quem lhe conheça um pouco de história da vida, pode legitimamente lamentar-se destes tempos em que se come Almodóvar por Buñuel. Mas nem de Cassandra nem de carpideira são os meus propósitos. Senão, não acabava quando uma figura…
E a figura é a do pintor Antonio López (n. 1936) que, numa tarde de Junho de 1993, descobri no Centro Reina Sofia, em Madrid, ser o segundo espanhol deste século – depois de Picasso – a transformar a história da pintura. No sentido oposto e como o anti-Picasso? Aparentemente sim, se se achar – e pode achar-se – que ele está para a história da pintura não-figurativa como a queda do Muro de Berlim está para a história do comunismo. Mas a questão é muito mais complexa e eu prefiro dizer – como Victor Erice – que a questão que a pintura de López coloca não é a do realismo mas a do naturalismo.
Aconteceu que, no dia 29 de Setembro de 1990, Antonio López começou a pintar o marmeleiro do seu jardim, tentando captar a luz tão bonita que o sol do outono dá aos marmelos. Tentando agarrar «el sol del membrillo» e não «el sol nel membrillo» - e tenho pena que a palavra marmeleiro seja muito mais feia do que a palavra membrillo, embora prefira a rude tradução literal à falsa poesia do título francês (Le Songe de la Lumière) que, num filme sobre a luz e que acaba com um sonho, se presta, ainda por cima, a muitas outras confusões. Mas nada de pressas e recomenda-se à caneta o vagar do pincel de López.
Uns meses antes desse dia, Victor Erice entrou pela casa de Antonio López. Conheciam-se e admiravam-se mutuamente mas nunca se tinham encontrado pessoalmente. Passearam muito, conversaram muito. E, um dia, López disse a Erice que no tal 29 – um sábado – ia começar a pintar o marmeleiro. «Queres vir ver? Queres vir filmar?» E foi assim que tudo começou, sem qualquer plano, «sem nenhuma premeditação».
O tempo do filme é o tempo que vai de 29 de Setembro (dia em que López começou a pintar o quadro e Victor Erice começou a filmar o filme) a 11 de Dezembro, dois dias depois de López acabar. É um tempo seguido a par e passo, ao princípio dia-a-dia (29,30,1 e 2 de Outubro), depois com maiores intervalos, embora sem regularidade (por exemplo, o dia-a-dia volta entre 24 e 28 de Outubro e há saltos de uma semana). Mas sempre uma legenda nos previne em que dia estamos, para que o tempo não seja esquecido.
Diz-se que a pintura não é uma arte do tempo mas neste filme ela é-o. Porque não é um filme sobre um quadro, mas sobre o tempo que demorou a pintá-lo. E foi por questões de tempo (um outono especialmente chuvoso e em que não houve verão de S. Martinho) que no dia 24 de Outubro (vinte e cinco dias depois de o ter começado a pintar) Antonio López desistiu do quadro a óleo e desistiu de procurar «el sol del membrillo», arrumou a tela inacabada e principiou a desenhar o marmeleiro, novo trabalho que iniciou a 26 de Outubro. Alguém lhe diz, nesse tempo, que talvez o próximo ano seja melhor e que ele poderá recomeçar então o quadro interrompido. López responde que é impossível. No ano seguinte, a árvore estará maior e a relação sol-árvore-frutos será inteiramente diversa, não se podendo repetir – nunca mais – o que só teria sido possível em Outubro de 1990. Má sorte ou, como ele próprio diz, «mierda de tempo».
Mas, como é evidente, essa «mierda de tempo» nunca podia ter sido captada por nenhum quadro, nenhuma pintura. É uma história à volta da pintura, narrável mas não figurável nela. Se, em El Sol del Membrillo, a pintura se faz tempo é porque El Sol del Membrillo não é um quadro mas um filme e um filme sobre o tempo que um quadro e um desenho demoraram a ser pintados ou desenhados. Como Victor Erice declarou, o tempo «é o tempo do cinema e não o tempo da pintura. Creio que o filme exprime uma certa impossibilidade do cinema em relação à pintura.»
Por isso mesmo, a instância do tempo é tão forte neste filme. Não só as datas, as folhas do calendário a passar. São as inúmeras conversas sobre outros tempos (particularmente os dois planos-sequência admiráveis em que Antonio López conversa com o seu amigo, também pintor, Enrique Gran), é o tempo que demoram as obras na casa (paralelas ao trabalho do pintor), são os noticiários que López ouve no rádio (a guerra do Golfo), é a transformação da árvore e dos frutos durante esse tempo. No princípio, uma e outros são radiosos; no fim, as folhas da árvore estão caídas no jardim e os frutos engelhados ou apodrecidos. É o outono e a passagem do outono ao inverno. Mas não apenas como estações do tempo dito «natural». Insensivelmente, desse outono passa-se a outro, quando Enrique Gran, mais velho sete anos do que López, e, portanto, à data das filmagens com 61 anos, fala dos pintores velhos que pintam febrilmente e diz compreendê-los, agora, porque, a partir de certa idade, se sabe que já resta muito pouco tempo.
Essa obsessiva presença do tempo (neste filme situado num só espaço) introduz, lentamente, a presença da decomposição e da morte, tema que une El Sol del Membrillo aos filmes anteriores de Erice. El Sol del Membrillo acompanha o movimento do tempo que dá a morte (ou traz a morte) e, como disse o realizador: «O cinema é formidável para exprimir o nascimento e a decadência das coisas (…) Apresenta-se sempre o cinema como algo de muito jovem, de apolíneo, mas eu acho que o cinema é a língua que exprime as coisas mais fugitivas.»
Esta ideia tem uma imagem suprema nas conversas, entre López e Gran, sobre uma reprodução do Juízo Final de Miguel Ângelo, quando opõem à terrífica visão divina de Miguel Ângelo («um Deus que inspira terror até aos eleitos») a visão luminosa dos gregos sobre os deuses deles, transparente na reprodução da Vénus de Milo que desde o princípio do filme é figurada. Miguel Ângelo é o «homem das crostas», Fídias o homem da luz. E é pouco depois que Gran diz quenato é breve o tempo real.
E é tempo de falar do outro quadro interrompido de El Sol del Membrillo. É um quadro em que Marga López (mulher de Antonio e, também ela, pintora) representou o marido a dormir. No último dia do filme, ou na última noite do filme, Marga López pede a Antonio para retomar a tela. Ele deita-se na cama, com o fato do quadro (fato negro), segurando na mão o «poliedro perfeito» de Platão, que igualmente evoca a bola de cristal do Kane de Welles.
A certa altura, adormece e o objecto cai no chão. A mulher continua a pintar e a imagem é a imagem de um homem morto, ou é a imagem da morte. Depois, apaga as luzes, e sai, em off, e sob essa imagem de morte, Antonio López conta um sonho que teve em criança e em que havia uma luz que tudo transformava em metal e cinza. «Não era a luz da noite, não era a luz do crepúsculo, não era a luz do dia, não era a luz da aurora.»
Que luz era, López não o diz. Mas a imagem que precede essa sequência e se lhe segue é a da câmara de filmar e do projector aceso, frente uma ao outro, no jardim, iluminando os marmelos podres com uma luz que nada tem de solar e, evocando memórias cinematográficas antiquíssimas (do desenho animado à ficção científica), dá pleno sentido aos fabulosos planos dos céus de Greco ou da lua de Méliès que, sobre Madrid, pontuaram o filme quase desde o início.
Percebemos então por que é que Victor Erice só fugiu à unidade de lugar (a casa do pintor) para filmar «a árvore electrónica» (o posto de televisão) e aquelas janelas na noite em que toda a gente mais não faz do que olhar o televisor. «Hoje, a noite só cai sobre o mundo quando as televisões se apagam.»
E neste filme de tempo e sobre o tempo, o último tempo é o dessa última luz que não doura mas dura e vem, de um tempo futuro, apagar a doçura e o «cariño» com que López e Gran cantando, procuraram – e não conseguiram – encantar os frutos e a árvore.
Será por acaso que o desenho final de López se aproxima do Juízo Final? Eu, pelo menos, vi-o assim, neste filme genial em que a pintura caminha para o esplendor e continuam a substituir, no final, na natureza apodrecida, as marcas que López fez nas folhas e nos marmelos para melhor se acercar do centro da perspectiva e da integridade que um dia, há muito tempo, um velho professor lhe fixou como objectivo último.
E, no seu duplo sentido em espanhol (obra completa, obra moral), esse é o substantivo que melhor convém ao filme íntegro chamado El Sol del Membrillo.



João Bénard da Costa

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