26 de dezembro de 2015

Maidan do Loznitsa (e convém aqui dizer que Loznitsa é dos cineastas contemporâneos que mais me apraz) é coisa bruta em estado puro… cristalino… coisa que recusa análises políticas e julgamentos (ainda que se esteja perante algo notoriamente parcial), só pretende (e executa-o) expor e mostrar os acontecimentos daquele final de 2013 e início de 2014 da praça Maidan em Kiev. Mas é visível que Loznitsa quer (e fá-lo) glorificar a nação ucraniana, a luta contra a opressão e a corrupção e a subserviência do regime de Yanukovitch à Rússia, fala-se e refala-se na glória dos heróis, na dignidade dos homens, da nação… inicia com o hino nacional ucraniano e aquele ambiente festivo para finalizar com aquela canção tradicional e folclórica e o ambiente fúnebre… Maidan tem como protagonista o povo ucraniano e só o povo, num registo documental que foge a todo e qualquer convencionalismo do género (coisa que não é estranha a quem já viu outros documentários do bielorusso), glorifica-o e isso tudo numa constante observação das pessoas na praça… a sua camaradagem, a sua energia e motivação nas manifestações e consequente revolução, o fervilhar do sangue daquelas pessoas… algo histórico estava a acontecer e Loznitsa soube-o bem cedo, como todas aquelas pessoas sabem e tudo fazem para assim ser… a câmara está sempre fixa, planos abertos e distantes pra observar e filmar o povo, só isso, o dia-a-dia daquela praça na revolta daqueles ucranianos cansados do regime… do folclore inicial onde poetas, cantores e tantos outros se passeiam por aquele palco passa-se para o caos das batalhas campais na praça, para a guerra das pessoas em confronto com a polícia, para as chamas e o fogo-de-artifício, as barricadas, a destruição, os mortos e os feridos… o que faz de Maidan mais que um simples documentário sobre uma revolução e um documento histórico é a simplicidade do que Loznitsa quis fazer, mostrar aqueles dias e aquelas pessoas, mostrar como foi, sem entrevistas, sem personagens ou protagonistas, longe de manifestos políticos ou ideais ainda que não seja isento de parcialidade e que os discursos fervescentes e idealistas estejam lá… a glorificação dum povo, dum acontecimento histórico acima de tudo… o renascer do povo ucraniano.
Pela forma como foi montado, "Maidan" parece recusar interpretações do que aconteceu entre Dezembro e Fevereiro em Kiev. Era sua intenção manter esse distanciamento?
 

Tudo o que faço quando construo os meus filmes é intencional. Não pode haver "acidentes" no cinema. Fi-lo porque quis dar aos espectadores a hipótese de experienciarem a atmosfera dos eventos e tirarem as suas próprias conclusões.


Porque decidiu fazer este filme?


Foi quando cheguei a Kiev a 14 de Dezembro. Não pude ir mais cedo, porque estava a terminar uma curta documental, mas assim que dei por mim na Maidan, percebi que tinha de fazer um filme. A atmosfera era incrível, fez-me lembrar um carnaval medieval. Conseguia ver o rosto da nação ali, um que nunca tinha visto antes - havia genuína solidariedade, camaradagem e um desejo de mudança. Tornou-se óbvio para mim que o regime de Yanukovitch estava condenado. Conseguia ver a nação a acordar, senti que a História estava a ser escrita na Maidan.


O que o levou a focar-se na massa, na multidão, e não em personagens específicas como líderes dos protestos?


Os protagonistas da Maidan são o povo ucraniano. O povo que fez a revolução. Não queria concentrar-me em nenhum indivíduo em particular porque o meu herói é a minha nação, a massa, a sociedade civil. Queria observar o que se estava a passar na sua inteireza. Queria ver uma nação a nascer, observar a nação a alterar o seu próprio destino.


A cena inicial mostra-nos os manifestantes a cantar o hino nacional e o filme termina com milhares a cantar uma música igualmente patriótica. Parecem ser as únicas cenas do documentário que são, de certa forma, interpretativas. Sentiu ser fulcral definir o início e o fim dessa forma?


A canção da cena final é uma canção folclórica, cujo protagonista contempla a sua morte longe da sua pátria e da sua mãe, que foi cantada durante o funeral dos heróis da Maidan. Fiquei maravilhado com a explosão de criatividade e de cultura folclórica durante os eventos na praça, havia poetas e cantores todos juntos, a cantar e a recitar. Vi uma manifestação em que as pessoas entraram em contacto com as suas raízes e celebraram a sua identidade. É absolutamente natural que uma revolução desta natureza liberte uma quantidade enorme de sentimentos patrióticos. Na realidade, é impossível para uma nação construir-se sem este tipo de patriotismo "não-violento", uma coisa de que Isaiah Berlin fala num ensaio sobre nacionalismo e o seu papel na criação das sociedades modernas.


Há várias notícias sobre extremistas-naiconalista e grupos fascistas a actuarem em Kiev e noutras partes do país. Como relaciona isso com esse patriotismo que depôs Yanukovitch?


O regime de Yanukovitch não foi deposto pelos sentimentos patrióticos da nação, mas sim pelo desdém com que tratou as pessoas e a sua forma indecente e corrupta de "governação". As pessoas simplesmente não conseguiam tolerar mais isso. Não podemos esquecer-nos que a Ucrânia foi uma colónia da Rússia e uma província do império russo durante séculos, pelo que não é surpreendente que as pessoas tenham reagido fortemente quando perceberam que as acções de Yanukovitch estavam, novamente, a reduzir o país a um papel de estado-satélite da Rússia. Se alguém entrar na tua casa e disser que é sua, tu também irás resistir e querer identificar-te como dono da casa através de todos os meios possíveis, incluindo vestindo um traje nacional.


Reparou em movimentações desses grupos nazis ou de extrema-direita na Maidan durante a feitura do filme?


A maioria dessas coisas que ouvimos nas notícias são produto da propaganda estatal russa, que infelizmente é muitas vezes traduzida e disseminada pelos media ocidentais. Durante as eleições de Maio de 2014, os candidatos da extrema-direita receberam uma minúscula parte dos votos, cerca de 1,5% do total, menos do que os candidatos que representavam a comunidade judaica ucraniana. Isto diz tudo o que uma pessoa precisa de saber sobre a existência de "fascistas" na Ucrânia.


Li que, durante o Festival de Cinema de Cannes, se recusou a falar com jornalistas russos sobre o filme. Foi por causa dessa propaganda?


É verdade que recusei e que foi por causa disso. Não queria e não quero falar com pessoas que trabalham para os media russos, porque os media russos perderam a sua função de fornecer informação. Tornaram-se uma arma de propaganda na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Uma arma letal. Não desejo estar envolvido nessa guerra.


Alguns críticos dizem que o seu filme falha ao não transmitir de forma abrangente o que se está a passar desde Novembro. O que pensa disso?


Que não sou um jornalista nem uma agência de notícias, cujo trabalho é passar essa imagem abrangente. O que faço é cinema, que tem funções diferentes.


Sente que "Maidan" é um prelúdio cinematográfico para a crise que se instalou no país entretanto?


O que estamos a atravessar não é uma crise, é uma agressão de um país que atacou o seu vizinho quando estava num momento de maior fraqueza e anexou parte do território do vizinho. A história da Maidan acabou quando Yanukovitch fugiu para a Rússia. O que se está a passar na Ucrânia agora é uma história diferente. Claro que tem origem nos eventos da Maidan, mas deve ser vista e entendida num contexto diferente.


Voltando à questão da interpretação, mas do ponto de vista de cidadão e não de realizador: como vê o que se está a passar agora no país?


Essa pergunta requer uma entrevista à parte, uma discussão ou até uma palestra... Resumindo, penso que há três revoluções diferentes a acontecer e que começaram no último inverno: uma anticorrupção, uma anti-soviética e uma anticolonial. Apesar de o país ser oficialmente "independente" desde a queda da URSS, só depois dos eventos do passado inverno é que o povo ucraniano tentou realmente separar-se do passado soviético e começar a construir um estado democrático. Agora o país está sob ataque militar da Rússia e parte do seu território - a Crimeia e certas regiões do Leste - estão sob ocupação russa. O futuro próximo irá mostrar se o povo ucraniano será capaz de aguentar a pressão e resistir à agressão russa. Acredito que o futuro do país é com a Europa, mas também acredito que esta passagem para uma democracia vai ser extremamente traiçoeira.


Acredita que as eleições antecipadas vão ser um primeiro passo?


Acredito que não haveria rebeldes no Leste da Ucrânia se as tropas russas e cidadãos militantes não tivessem invadido o território ucraniano. Achas que aquelas centenas de tanques e unidades de artilharia pesada e milhares de mísseis que estão a ser usados ali foram comprados em lojas de conveniência da Ucrânia? Se o lado russo decidir parar a agressão, a guerra vai acabar. Se a Rússia decidir continuar, a guerra também continuará. A guerra pode afectar as eleições de 26 de Outubro, mas as eleições não podem afectar a guerra.

13 de dezembro de 2015


EL SOL DEL MEMBRILLO
(O Sol do Marmeleiro)


Victor Erice


           
            El Sol del Membrillo foi realizado pelo espanhol Victor Erice (n. 1940) em 1992.
Erice, que começou a «carreira» em 1968 (bastante novinho) só realizou, até hoje, três longas-metragens: El Espiritu de la Colmena (1973), El Sur (1983) e o filme que hoje aqui me traz. Quem lhe conheça um pouco de história da vida, pode legitimamente lamentar-se destes tempos em que se come Almodóvar por Buñuel. Mas nem de Cassandra nem de carpideira são os meus propósitos. Senão, não acabava quando uma figura…
E a figura é a do pintor Antonio López (n. 1936) que, numa tarde de Junho de 1993, descobri no Centro Reina Sofia, em Madrid, ser o segundo espanhol deste século – depois de Picasso – a transformar a história da pintura. No sentido oposto e como o anti-Picasso? Aparentemente sim, se se achar – e pode achar-se – que ele está para a história da pintura não-figurativa como a queda do Muro de Berlim está para a história do comunismo. Mas a questão é muito mais complexa e eu prefiro dizer – como Victor Erice – que a questão que a pintura de López coloca não é a do realismo mas a do naturalismo.
Aconteceu que, no dia 29 de Setembro de 1990, Antonio López começou a pintar o marmeleiro do seu jardim, tentando captar a luz tão bonita que o sol do outono dá aos marmelos. Tentando agarrar «el sol del membrillo» e não «el sol nel membrillo» - e tenho pena que a palavra marmeleiro seja muito mais feia do que a palavra membrillo, embora prefira a rude tradução literal à falsa poesia do título francês (Le Songe de la Lumière) que, num filme sobre a luz e que acaba com um sonho, se presta, ainda por cima, a muitas outras confusões. Mas nada de pressas e recomenda-se à caneta o vagar do pincel de López.
Uns meses antes desse dia, Victor Erice entrou pela casa de Antonio López. Conheciam-se e admiravam-se mutuamente mas nunca se tinham encontrado pessoalmente. Passearam muito, conversaram muito. E, um dia, López disse a Erice que no tal 29 – um sábado – ia começar a pintar o marmeleiro. «Queres vir ver? Queres vir filmar?» E foi assim que tudo começou, sem qualquer plano, «sem nenhuma premeditação».
O tempo do filme é o tempo que vai de 29 de Setembro (dia em que López começou a pintar o quadro e Victor Erice começou a filmar o filme) a 11 de Dezembro, dois dias depois de López acabar. É um tempo seguido a par e passo, ao princípio dia-a-dia (29,30,1 e 2 de Outubro), depois com maiores intervalos, embora sem regularidade (por exemplo, o dia-a-dia volta entre 24 e 28 de Outubro e há saltos de uma semana). Mas sempre uma legenda nos previne em que dia estamos, para que o tempo não seja esquecido.
Diz-se que a pintura não é uma arte do tempo mas neste filme ela é-o. Porque não é um filme sobre um quadro, mas sobre o tempo que demorou a pintá-lo. E foi por questões de tempo (um outono especialmente chuvoso e em que não houve verão de S. Martinho) que no dia 24 de Outubro (vinte e cinco dias depois de o ter começado a pintar) Antonio López desistiu do quadro a óleo e desistiu de procurar «el sol del membrillo», arrumou a tela inacabada e principiou a desenhar o marmeleiro, novo trabalho que iniciou a 26 de Outubro. Alguém lhe diz, nesse tempo, que talvez o próximo ano seja melhor e que ele poderá recomeçar então o quadro interrompido. López responde que é impossível. No ano seguinte, a árvore estará maior e a relação sol-árvore-frutos será inteiramente diversa, não se podendo repetir – nunca mais – o que só teria sido possível em Outubro de 1990. Má sorte ou, como ele próprio diz, «mierda de tempo».
Mas, como é evidente, essa «mierda de tempo» nunca podia ter sido captada por nenhum quadro, nenhuma pintura. É uma história à volta da pintura, narrável mas não figurável nela. Se, em El Sol del Membrillo, a pintura se faz tempo é porque El Sol del Membrillo não é um quadro mas um filme e um filme sobre o tempo que um quadro e um desenho demoraram a ser pintados ou desenhados. Como Victor Erice declarou, o tempo «é o tempo do cinema e não o tempo da pintura. Creio que o filme exprime uma certa impossibilidade do cinema em relação à pintura.»
Por isso mesmo, a instância do tempo é tão forte neste filme. Não só as datas, as folhas do calendário a passar. São as inúmeras conversas sobre outros tempos (particularmente os dois planos-sequência admiráveis em que Antonio López conversa com o seu amigo, também pintor, Enrique Gran), é o tempo que demoram as obras na casa (paralelas ao trabalho do pintor), são os noticiários que López ouve no rádio (a guerra do Golfo), é a transformação da árvore e dos frutos durante esse tempo. No princípio, uma e outros são radiosos; no fim, as folhas da árvore estão caídas no jardim e os frutos engelhados ou apodrecidos. É o outono e a passagem do outono ao inverno. Mas não apenas como estações do tempo dito «natural». Insensivelmente, desse outono passa-se a outro, quando Enrique Gran, mais velho sete anos do que López, e, portanto, à data das filmagens com 61 anos, fala dos pintores velhos que pintam febrilmente e diz compreendê-los, agora, porque, a partir de certa idade, se sabe que já resta muito pouco tempo.
Essa obsessiva presença do tempo (neste filme situado num só espaço) introduz, lentamente, a presença da decomposição e da morte, tema que une El Sol del Membrillo aos filmes anteriores de Erice. El Sol del Membrillo acompanha o movimento do tempo que dá a morte (ou traz a morte) e, como disse o realizador: «O cinema é formidável para exprimir o nascimento e a decadência das coisas (…) Apresenta-se sempre o cinema como algo de muito jovem, de apolíneo, mas eu acho que o cinema é a língua que exprime as coisas mais fugitivas.»
Esta ideia tem uma imagem suprema nas conversas, entre López e Gran, sobre uma reprodução do Juízo Final de Miguel Ângelo, quando opõem à terrífica visão divina de Miguel Ângelo («um Deus que inspira terror até aos eleitos») a visão luminosa dos gregos sobre os deuses deles, transparente na reprodução da Vénus de Milo que desde o princípio do filme é figurada. Miguel Ângelo é o «homem das crostas», Fídias o homem da luz. E é pouco depois que Gran diz quenato é breve o tempo real.
E é tempo de falar do outro quadro interrompido de El Sol del Membrillo. É um quadro em que Marga López (mulher de Antonio e, também ela, pintora) representou o marido a dormir. No último dia do filme, ou na última noite do filme, Marga López pede a Antonio para retomar a tela. Ele deita-se na cama, com o fato do quadro (fato negro), segurando na mão o «poliedro perfeito» de Platão, que igualmente evoca a bola de cristal do Kane de Welles.
A certa altura, adormece e o objecto cai no chão. A mulher continua a pintar e a imagem é a imagem de um homem morto, ou é a imagem da morte. Depois, apaga as luzes, e sai, em off, e sob essa imagem de morte, Antonio López conta um sonho que teve em criança e em que havia uma luz que tudo transformava em metal e cinza. «Não era a luz da noite, não era a luz do crepúsculo, não era a luz do dia, não era a luz da aurora.»
Que luz era, López não o diz. Mas a imagem que precede essa sequência e se lhe segue é a da câmara de filmar e do projector aceso, frente uma ao outro, no jardim, iluminando os marmelos podres com uma luz que nada tem de solar e, evocando memórias cinematográficas antiquíssimas (do desenho animado à ficção científica), dá pleno sentido aos fabulosos planos dos céus de Greco ou da lua de Méliès que, sobre Madrid, pontuaram o filme quase desde o início.
Percebemos então por que é que Victor Erice só fugiu à unidade de lugar (a casa do pintor) para filmar «a árvore electrónica» (o posto de televisão) e aquelas janelas na noite em que toda a gente mais não faz do que olhar o televisor. «Hoje, a noite só cai sobre o mundo quando as televisões se apagam.»
E neste filme de tempo e sobre o tempo, o último tempo é o dessa última luz que não doura mas dura e vem, de um tempo futuro, apagar a doçura e o «cariño» com que López e Gran cantando, procuraram – e não conseguiram – encantar os frutos e a árvore.
Será por acaso que o desenho final de López se aproxima do Juízo Final? Eu, pelo menos, vi-o assim, neste filme genial em que a pintura caminha para o esplendor e continuam a substituir, no final, na natureza apodrecida, as marcas que López fez nas folhas e nos marmelos para melhor se acercar do centro da perspectiva e da integridade que um dia, há muito tempo, um velho professor lhe fixou como objectivo último.
E, no seu duplo sentido em espanhol (obra completa, obra moral), esse é o substantivo que melhor convém ao filme íntegro chamado El Sol del Membrillo.



João Bénard da Costa