Natais Brancos
«Um Natal sem
presentes nem parece Natal.» Era assim, se a memória não me trai, que começava
a adaptação portuguesa – As Quatro
Raparigas – do popular romance de Louise May Alcott, Little Women, tantas vezes adaptado ao cinema. Estou de acordo. Sempre
adorei dar e receber presentes, no Natal mais do que nunca. E sou daqueles que
gosta do Natal, que gosta imenso do Natal. Natal com todos os efes e erres, com
todas, todas as tradições. Desconfio até das pessoas – falo daquelas que não
entraram para a vida pela porta de serviço – que não gostam do Natal. No sentido
em que Godard dizia, no Petit Soldat:
«Méfiez-vous des femmes qui n’aiment pas manger.»
Mas quando eu era
miúdo, não era só um Natal sem presentes que não era Natal. Era um Natal sem
Cinema, ou um Natal sem Circo. Filmes e Coliseu eram inseparáveis da festa. Com
as tias velhas e os primos diferentes, foram das coisas que perdi. As tias
morreram, os primos tornaram-se diferentes (ou indiferentes), o Circo acabou.
Só o Cinema continua.
Em relação ao Circo
tinha sentimentos contraditórios. Fascinava-me mas assustava-me. As feras, os
faquires, os prestidigitadores, os ventríloquos, sobretudo os palhaços. E o sr.
França, que não se chamava José-Augusto. Eram reais e irreais, ao mesmo tempo e
demais. Depois, um triste dia, descobri que não havia palhaços, que os palhaços
não existiam. Foi quando me cruzei na rua com um sisudo e insignificante
cidadão e alguém me disse que aquele era o palhaço rico, da cara branca, do
Coliseu. Tive um choque muito maior do que no dia em que soube que afinal não
era o Menino Jesus quem descia pela chaminé para me por os presentes no
sapatinho, ou quando soube como nasciam as crianças. Se a minha fé em Deus e
nos homens resistiu a isso, é porque resiste a tudo. Graças a Deus, foram
revelações tardias. Nunca suportei também aqueles pais pedagógicos que, em nome
da verdade, acham que não se deve contar às crianças a história do Menino
Jesus. Como se os pais não existissem senão para dizer mentiras, como se educar
não fosse senão mentir. Quando muito transijo – com pouca simpatia – na substituição
pagã do Menino Jesus pelo Pai Natal. O cinema era o décor – a profundidade de campo – de onde saíam todas as maravilhas
dos dias seguintes, já que, geralmente, acontecia antes de tudo o resto, no dia
em que era conveniente que estivéssemos fora de casa, para não ver os
preparativos do Natal. A minha mais antiga recordação vem dos cinco anos e tem
como nome O Feiticeiro de Oz, que em
1989 fará 50 anos (a Portugal só chegou no Natal de 1940).
Esse filme, que
continua a ser um dos «filmes da minha vida», esse filme de que já se tem dito,
com carradas de razão, que é a mais portentosa metáfora de Hollywood (até se
diz que todos os filmes posteriores contêm uma referência a The Wizard of Oz), foi paixão à primeira
vista. Dorothy «Over the Rainbow». A passagem do sépia às cores. O Espantalho,
o Homem de Lata e o Leão (sempre amei mais o Leão do que todos os outros). A Cidade-Esmeralda,
o Feiticeiro, os «Munchkins», os sapatinhos de rubi, os chupa-chupas
liliputianos. E a bruxa, aquela bruxa má, primeiro de bicicleta e, depois,
soterrada, a seguir ao ciclone, só com os sapatos de fora. O único ciclone da
minha vida – Lisboa, 1941 – misturou-se tanto com o do Kansas que já não sei
onde começou um e acabou o outro. também dizem que aconteceu na vida real. Há quem
jure que no dia da morte de Judy Garland um ciclone se abateu sobre Kansas. Assim
deve ser. «De cada vez que vemos Judy passar para lá do arco-íris» - escreveu
Denny Peary - «temos vontade de a avisar que é preciso ter muito cuidado.» Ela
não teve. Só me pergunto se o cuidado a ter é com os ciclones que nos levam ou
com os balões que nos trazem.
The Wizard of Oz está ainda ligado à minha primeira
dúvida metafísica. Nesse Natal – o tal Natal de 1940 – o Menino Jesus deu-me o
livro de L. Frank Baum, reeditado, em português. Tinha uma capa dura, amarela,
onde estavam Dorothy (Judy Garland), o Leão (Bert Lahr), o Espantalho (Ray
Bolger), o Homem de Lata (Jack Haley) e, a um canto, o Feiticeiro (Frank
Morgan). E tinha uma cinta onde se dizia, mais ou menos, «O livro que serviu de
base ao filme da METRO-GOLDWYN-MAYER, actualmente em exibição no cinema Éden». Não
foi a descoberta da vocação publicitária do Menino Jesus que me fez suspeitar. Mas
o excesso de precisão. Como é que, lá no Céu, a distribuir Feiticeiros de Oz por todo o mundo, o Menino Jesus acertava com o
cinema de Lisboa? Mudava de cinta conforme os países e as cidades? Não sou
capaz de reconstruir exactamente os fundamentos da dúvida, mas andavam à roda
de tão particular localização. Lá me deram uma explicação qualquer (a
omnisciência do Menino) e convenci-me. Admirei-O ainda mais depois de tal
façanha. E essa capa ficou para mim como a prova suprema da existência divina,
certamente mais convincente do que o argumento de Santo Anselmo.
No Natal de 41, foi
The Thief of Bagdad. Sabu tomou o
lugar de Judy Garland e Conrad Veidt o de Margaret Hamilton (a Bruxa Má).
O Natal de 42 foi o
do meu heterónimo Dumbo, outra
criatura já aqui convocada e que, desde essa altura, me comove tanto como comovia
aquele general do 1941 de Spielberg. Passei
a sonhar a cor-de-rosa e ia de maravilha em maravilha e de voo em voo: o voo
dos balões no Feiticeiro; o voo de
Sabu às costas do gigante no Ladrão de
Bagdad; o voo de Dumbo, com as
orelhas a fazer de asas.
A voar continuei,
no Natal de 43, sem reparar que mudara de imaginário e dos campos então em
conflito. O filme desse ano era alemão e chamava-se Münchhausen (Josef Von Baky, 43). Em Portugal, chamaram-lhe O Barão Aventureiro. Vi-o no Ginásio. Deve
ter sido das primeiras vezes que fui ao cinema sem adultos, já que me lembro
bem que o meu único companheiro era um amigo do colégio, da mesma idade que eu.
Está-me ligado na memória a uma das minhas primeiras humilhações socias. Quando
lá chegámos, a lotação estava praticamente esgotada e só havia lugares no
Balcão de 3ª. Comprei os bilhetes e lá subimos até aos carrapitos, com ele
muito calado. Antes do filme começar, olhando com ar desaprovador a sala,
disse-me secamente: «E eu, habituado a Plateias e Balcões de 1ª, venho hoje
para um Balcão de 3ª.» Engoli em seco. Afinal era a precoce manifestação de uma
vocação. É, hoje, Embaixador de Portugal.
Mas o filme fê-lo
esquecer a posição de classe, como me fez esquecer a mim o embaraço. Hans Albers
– o Barão – tinha uma bola de cristal e voava de corte em corte e de prodígio
em prodígio. Deu-nos uma lição de geografia e uma lição de astronomia. Passamos
a seguir em mapas e em colecções de
selos os países por onde tinha andado o Barão de Münchhausen, que deixara os
russos de boca aberta perante os poderes mágicos dos alemães, em contraste
flagrante com o que no mesmo ano se passava, mas não entrava nessa história nem
na nossa história. Rússia era a de Catarina, não era a de Estaline. Alemanha era
a de Münchhausen, não era a de Hitler. Não me venham dizer que o cinema aliena.
Natais seguintes
foram menos mágicos e mais religiosos. Passei-os com o Padre O’Malley (Bing
Crosby, mais querubínico do que nunca) ora às voltas com um velho sacerdote
rabugento (o genial Barry Fitzgerald) em Going
My Way (Natal de 44) ora às voltas com uma freira sadia e sorridente
(Ingrid Bergman) em The Bells of St. Mary’s
(Natal de 46). Ambos foram realizados pelo mais romântico e mais céptico
dos cineastas de Hollywood: Leo McCarey. Nessa altura, dei mais pelo romantismo
e menos pelo cepticismo. Chorei muito com a chegada da velha mãe de Barry
Fitzgerald no final do Bom Pastor (título
português de Going My Way) e não
percebi por que é que Bing Crosby e Ingrid Bergman não se casavam no final de Os Sinos de Santa Maria.
A vida-cinema
ensinou-me que Going My Way é também
um dos mais sinistros filmes sobre a solidão e que The Bells of St. Mary’s acaba com uma das mais equívocas lines de qualquer diálogo de Hollywood.
É quando Bing Crosby se despede de Ingrid Bergman e lhe diz: «If you’re ever in
trouble dial O for O’Malley.»
No fundo, é uma
despedida equivalente à de Judy Garland do Espantalho quando se mete no balão e
lhe diz: «I’m going to miss you must of all.» É sempre a mesma história, ficam
sempre as mesmas saudades. Ao som de Irving Berlin e do White Christmas, cantado pela primeira vez noutro filme natalício, Holliday Inn (Mark Sandrich, 42) com
Bing Crosby e Fred Astaire.
No cinema, como no
Natal, tudo mudou para ficar na mesma. Louvados sejam.
João Bénard da Costa
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