2 de julho de 2012


De nórdico para nórdico, de Sjöström para Stiller, ancoro nas neves de Solberg, na Dinamarca, levado, levado, sim, pelo filme sueco do finlandês Mauritz Stiller (1883-1928), Herr Arnes Pengar. Ano de estreia: 1919 (18 de Setembro). Tradução conhecida: O Tesouro de Arne. Mas é tradução do conto de Selma Lagerlöff em que se baseou (publicado em 1904) já que o filme nunca teve distribuição em Portugal, nem em salas de cinema nem na televisão. Meu particular motivo de orgulho: fui eu quem o trouxe a Portugal, e fui eu, com a preciosa ajuda de Alberto do Nascimento Regueira, quem adquiriu a cópia, hoje na colecção da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
Como é remota a possibilidade dos que me lêem conhecerem o filme, sou forçado a ser vagarosamente pedagógico, antes de ser arrebatadamente apaixonado, já que vos vou falar de um dos filmes que mais amo.
Nesse ano de 1919 - ano de Broken Blossoms e True Heart Susie de Griffith, ano de Male and Female de Cecil B. DeMille, ano de Blind Husbands de Stroheim, ano de Blade of Satans Bog de Dreyer, ano de Satanas de Murnau, ano de Die Spinnen de Fritz Lang, ano de Die Puppe e Madame Dubarry de Lubitsch, ano de Das Kabinett des Dr. Caligari de Robert Wiene (que ano, Meu Deus!) - nesse ano de 1919, dizia eu, apesar do que já se passava em Hollywood e em Berlim, os estúdios da Svenska, em Estocolmo, eram o maior alfobre de obras-primas do planeta. Eram-no desde 1917, sê-lo-iam até 1921.
Basicamente, essa posição cimeira devia-se a quatro homens: o produtor Charles Magnusson, os realizadores Viktor Sjöström e Mauritz Stiller e o director de fotografia Julius Jaenzon.
Sjöström já vo-lo apresentei. Stiller, que para o caso mais importa, era um judeu, de origem polaco-russa (Mowscha Stiller, era o vero nome dele) nascido em Helsínquia, quando Helsínquia dos russos era. Órfão aos quatro anos, começou a estudar para música (violino) e diz-se que, desde muito novo, cultivou um lado snob e requintado, que lhe teria valido a alcunha de «grão-duque». Em 1899, aos 16 anos, não lhe apeteceu nada servir nos exércitos do Czar. Fugiu para a Suécia. Conhecia os seus clássicos, sabia o seu latim, sabia até muitas outras línguas. Fez-se actor, depois encenador, e obteve alguma fama com uma adaptação de Tolstoi. Em 1911, Magnusson chamou-o para a Svenska. Primeiro, como actor, depois, como realizador, carreira em tudo idêntica à do antecedente Sjöström. E, como ele, estreou-se como realizador em 1912, Stiller tinha 29 anos, Sjöström 33. Sjöström precedeu-o em grandes êxitos mundiais (Terje Vigen de 1916 e Os Proscritos de 1917). Por essa altura, Stiller fazia comédias pré-lubitschianas (a série dos Thomas Graal). Mas, de 1919 a 1924, Stiller tornou-se tão célebre como Sjöström, graças, sobretudo, a Herr Arnes Pengar (O Tesouro de Arne), Erotikon (1920), Gunnar Hedes Saga (A Casa Solarenga, de 1922) e Gösta Berlings Saga (A Lenda de Gösta Berling, de 1924).
Por estes anos, Hollywood pagava e apagava a concorrência. Aconteceu com os alemães (Lubitsch, Murnau, Dupont, Leni), aconteceu com os suecos. Lubitsch chegou à América em Outubro de 1922, Sjöström em Janeiro de 1923.
Stiller foi mais reticente às propostas. Mas, em Agosto de 1925, para lá foi, também, sob uma condição. Que o contracto não o envolvesse só a ele, mas englobasse a actriz que descobrira em A Lenda de Gösta Berling. Louis B. Mayer, o homem da Metro, foi relutante. «In America, men don’t like fat women». Mas dessa, gostaram. Chamava-se Greta Garbo. E se Greta Garbo, contrapeso na bagagem de Stiller, teve em Hollywood o destino que se sabe, o realizador, inicialmente pago pelo triplo do cachet dela, nunca se adaptou. Sjöström, no início, ainda foi muito bem tratado. Com Stiller tudo correu sempre mal e nem sequer o deixaram terminar o único filme que lá fez com «a divina» (The Temptress, de 1926). Em 1927, doente e destroçado, regressou à Suécia, onde morreu no ano seguinte, aos 45 anos. Teve direito a um ramo de flores da Garbo cada ano, no seu túmulo, e a mil lendas sobre a relação Pigmaleão-Galateia, que entre eles teria existido. Mas, se teve direito, não há direito que seja sobretudo lembrado por causa dela. Garbo, por muito admirável que seja em Gösta Berling ou nos planos de The Temptress em que foi filmada por ele, nem sequer é a sua melhor mulher. A melhor mulher de Stiller chamou-se Mary Johnson e é através de Mary Johnson, essa que n’O Tesouro de Arne se chamou Elsalill, que mergulho, finalmente, na terra gelada e na água ardente do mais belo dos filmes.
De todos os personagens para que até aqui me puxou a conversa, é a mais esquecida. Procurem nos melhores dicionários, nem o rasto lhe encontrarão. E, no entanto, mesmo quando eu já for velhinho, acabado de morrer, se me olharem bem nos olhos, continuarei a dizer que é uma das dez mais fabulosas mulheres que o cinema me fez aparecer. Porque é que toda a gente se esquece daquela a quem, em 1919, chamaram a «Lillian Gish sueca?» Possivelmente, por ser sueca, como hoje teríamos esquecido Greta Garbo ou Ingrid Bergman, se da Suécia nunca tivessem saído. Possivelmente, porque deixou de filmar muito nova, em 1931. Possivelmente, porque nunca ninguém viu (eu nunca vi) Haus der Lüge de Lupu Pick (baseado em O Pato Selvagem de Ibsen) ou Geschlecht in Fesseln (Sexos Encadeados), de Dieterle, filmes que fez na Alemanha entre 1925 e 1928. Mas hoje, como há 75 anos, valem por inteiro as palavras de Louis Delluc, quando viu o filme e a viu a ela: «Mary Johnson. Le jour se lève… Elle a dix-sept ans et nous en avons aussitôt dix-huit. C’est le “trésor” du Trésor d’Arne.»
É a meio da segunda bobina do filme que ela aparece. Ao princípio, uma legenda fala-nos da lendária tempestade de 1574, que, durante meses, isolou a Suécia do mundo exterior. Depois, na primeira das imagens do mais belo trabalho de Julius Jaenzon, vemos árvores. É um plano relativamente breve (quase todos o são, neste filme de 80 minutos e 800 cenas) mas tão cerradamente enigmático que, ainda sem nada sabermos da história, «sentimos» o signo sob o qual se irá processar (amor e morte, lenda e mito). Três cavaleiros, um dos quais é Sir Archie (Richard Lund, celebérrimo actor de teatro sueco), erram na neve, sem aparente destino ou objectivo. Vestem-se todos de negro e, no branco da neve, a «mancha da morte» parece completar-se. Conspiraram contra o rei João III e são perseguidos. Em breve serão presos, encarcerados numa fortaleza sinistra, onde assistimos a um ambíguo jogo. Aparentemente, distraímo-nos (filme de aventuras?) até surgir, num prodigioso trabalho de montagem (alternância de longos planos com breves close-up) a primeira das muitas mortes do filme, a de um guarda, vítima da própria arma. E, paradoxalmente, a morte visível (começo da aventura ou da «acção», com a fuga dos prisioneiros) apaga as primeiras imagens, até que o «cá fora» (visto num assombroso enquadramento através da frecheira do canhão) nos faz voltar ao mesmo tom opressivo que «lá dentro» não tínhamos sentido.
Com grande lentidão, muitas aberturas e fechos em íris e novos admiráveis grandes planos, seguimos o percurso sanguinário dos cavaleiros: assalto a um velho casal, o pescador que tinha um cão preto como um lobo e que conduz os foragidos a casa de Arne, o pastor protestante, que escondia em sua casa um tesouro que amaldiçoa quem o detém. Uma série de panorâmicas, e conhecemos a família toda. Até à neta dele, Berghild (Wanda Rothgardt) e até Elsalill, irmã de leite dela. «Le jour se lève…» Nunca as vi, tão louras, tão assustadas, com os vestidos bordados até aos pés, que não me lembrasse do quadro de Cornelius de Vos, As Filhas do Artista, que vi em Berlim. Nem faltam as cruzes, as romãs, as golas de rendas. E se Berghild é uma criança, Elsalill, criança também, tem o olhar de quem sempre soube que aquele momento ia acontecer, olhando com os olhos azulíssimos os olhos escuríssimos de Sir Archie. Como muito mais tarde dirá: «Sir Archie, Sir Archie, porque é que pensar em si me faz pensar na morte?». Ainda não sabemos da maldição do tesouro e já sabemos que ela está marcada e que, como ele, carrega uma antiquíssima danação.
Depois, é a festa na taberna. Depois, as chamas vistas de longe, na casa de Arne. E, como em The Searchers de Ford, que este filme também me faz lembrar, não é preciso lá chegarmos para percebermos que todos foram mortos e o tesouro roubado. Só Elsalill sobreviveu e, aparentemente, não se lembra de nada. O pescador e a mãe tomam conta dela.
Até que um dia (quanto tempo depois?) os cavaleiros regressam, transfigurados e sem que ninguém os reconheça. Mas entre ela e Sir Archie, que tanto amaldiçoou, começa uma estranhíssima história de amor, sem que nem nós nem Sir Archie saibamos ao certo de que é que ela se lembra, o que é que ela sabe.
Mas sabe que a morte tomará conta de tudo e que o amor, como os olhares e as palavras, mais não faz do que reflecti-la. Tudo se passa entre os rostos (voltamos sempre aos grandes planos), entre o medo e o espanto de tão grande destruição e o medo e o espanto de tão grande harmonia.
E a sequência mais inolvidável do filme é aquela em que Elsalill, levada pela mãe do pescador, narra aos assassinos o que eles tão bem como ela e como nós conhecem. Só nesse momento, vemos em flashback como todos foram mortos e sobretudo como foi morta Berghild. Mas deixa de fazer sentido separar aparições e memórias (transparências e sobre-impressões) do que pertence a um só e comum reino. Não é só o passado que Elsalill revê no seu fabuloso racconto: é a morte futura dela, é a morte de Sir Archie, é a morte de todos. «Foi Deus quem te trouxe», diz Elsalill a Sir Archie. Deus ou o Diabo? Porque, quando Elsalill vê o tesouro nas mãos dos assassinos e tem a prova de que foi Sir Archie quem lhe matou a família, pede-lhe que fuja, antes de o denunciar. E cada vez mais se confundem um no outro, até os cavalos se afundarem na neve e até aparecer o navio-fantasma em que nem um nem outro navegarão. E nada há mais belo do que o plano em que o peito de Elsalill atravessa a espada, sem se saber se Sir Archie a usou como escudo ou se é ela quem o protege da morte.
Há ainda uma sequência celebérrima (a mais célebre do filme): o enterro de Elsalill na neve, com o povo todo seguindo o caixão, no «número de ouro» de uma movimentação que Eisenstein recriou no final da primeira parte do Ivan.
Mas se é uma sequência belíssima, por mim preferia ter ficado na morte de Elsalill - Mary Johnson. Porque é o momento supremo da magia deste filme entre todos mágico. E porque é nesse plano que os dois temas maiores de Herr Arnes, o tesouro e a maldição, se fundem num só. Só nesse momento Sir Archie detém o tesouro, só nesse momento os dois amantes são simultaneamente dourados e malditos. E as neves derretem-se, finalmente, e finalmente o navio pode fazer-se ao mar.
E nunca mais ouviremos, como neste filme mudo, o duplo vocativo «Sir Archie, Sir Archie», como se o primeiro apelo fosse ao assassino e o segundo ao amante. Ou rigorosamente o inverso.

João Bénard da Costa

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