22 de maio de 2024

 



Ukigumo [Mikio Naruse, 1955] 



 “Rotina! Oh, natureza! As pessoas estão sozinhas na Terra – é esta a desgraça! «Alguma alma ficou viva no campo?», grita o guerreiro russo. Também eu, que não sou guerreiro, grito, e ninguém responde. Dizem que o Sol dá vida ao universo. Vai levantar-se o Sol e… olhai para ele, não estará morto? Está tudo morto, por todo o lado só há mortos. Gente sozinha, e à volta dela o silêncio – eis a Terra! «Homens, amai-vos uns aos outros» – quem o disse? De quem é este mandamento? O pêndulo bate insensível, abominavelmente. Duas da madrugada. As botinhas dela ao lado da cama, como que à espera… Não, a sério, quando a levarem amanhã, o que vai ser de mim?”

(Fyodor Dostoyévsky, fragmento de A Submissa) 






   

um mundo do pós-guerra, de um japão dilacerado pela derrota, com as feridas abertas e o orgulho espezinhado, colónia perpétua da grande potência emergida do final dessa aniquiladora e devastadora grande guerra, é o ponto de partida para esta obra-prima de naruse, adaptada do livro do mesmo nome da escritora fumiko hayashi; é sob essa égide, na aspereza e na miserabilidade da recuperação desse japão ocupado que caminha lentamente para a recuperação económica, que se ocidentaliza forçada e apressadamente, que nuvens flutuantes irrompe e declara toda a sua magnificência.

entre yukiko e tomioka estabeleceu-se uma relação na indochina ocupada pelos japoneses, o filme inicia a partir do retorno dela ao japão, ela solteira, ele casado, relação que irá suportar tudo e todos os desgostos e vicissitudes e manifestações de orgulho tanto da parte dele como dela; a ele ainda lhe é cara a ligação com a esposa, mesmo já tendo deixado de a amar, a ela a quebra da promessa dele é lacerante, irá assombrá-la e atormentá-la ad eternum ainda que tudo se revele circular com o retorno sempre a tomioka; naruse usa de flashbacks e de elipses para nos contar o passado, e exceptuando a lembrança do estupro – elipse perfeita e assombrosa –, o passado é sempre claro enquanto o presente é maioritariamente sombrio, cria-se aí uma distinção na temporalidade da acção, as trevas da miserabilidade do país que se ergue das cinzas e da sua população passam a ter expressão visual e narrativa precisamente após essa memória do estupro.






naruse, assim como mizoguchi, foram talvez os cineastas que mais exploraram a condição da mulher na sociedade patriarcal japonesa, naruse fê-lo mais na contemporaneidade enquanto mizoguchi recorreu mais à ancestralidade; no entanto, há em ukigumo uma análise mais abrangente da condição não só da mulher como do ser humano - nos raccords, no campo e contra-campo em que a complexa relação de yukiko e tomioka se materializa, o foco oscila tanto do masculino para o feminino -, assim como o ulterior ensaio seja a desconstrução da estabilidade emocional dos dois personagens, com especial enfoque em yukiko, sim, personagem mais frágil mas ao mesmo tempo sólida, que se perde e se encontra e se volta a perder no caos do japão do pós-guerra, mas a metáfora do título que tem expressão na insistência de ambos em retornarem um ao outro ano após ano é, digamos assim, dual.

explorando assim a carga emocional adjacente aos personagens, yukiko talvez como representação suprema do martírio emocional, paralelo talvez encontrado no mito da psique ainda que tenha os seus diferendos, é depois em tomioka distendido, homem abatido pelo determinismo social e económico caminhando sempre rumo à penúria, o caos emocional reflecte-se na procura infrutífera dum futuro financeiro radioso, a constante flutuação de envolvimentos amorosos como forma não só de colmatar um vazio emocional deixado em suspenso pelas ausências de yukiko como forma, também, de magoar e determinar o rumo da sua relação com ela, yukiko, que no seu calvário oscila entre o orgulho e a humilhação, entre a fraqueza e a solidez, percorre as trevas lancinantes do destino, como o marido traído que acabará por matar a mulher tanta fé tem nele, no destino, mas dizia eu, yukiko entrega-se ao destino e tal como as nuvens flutuantes do título deixa-se levar pela correnteza da vida.






se é na escuridão deste portento melodramático que se pressente ou se anuncia um desfecho trágico, e curiosamente nuvens flutuantes faz paralelo com outra obra sublime e elegíaca do mesmo ano, o para sempre mulher da tanaka, é também na melancolia e na sua pungência que ukigumo se transfigura e se sacraliza naquele final onde se declara ao mundo o sentimento por décadas disfarçado (ou enterrado), seja pela sua natureza, seja pela conjuntura social e económica do país dilacerado ou pelo orgulho, de tomioka, é portanto, na renúncia total à sua renúncia do amor dela, ou por ela, que toda a obscuridade da alma dilacerada pelos vazios emocionais desse fluxo da vida se cristalizam naquele momento final, erupção e exteriorização da dor lancinante, revelação total; sacralidade; magnífico, obra-prima. 






“A órbitra excêntrica que o ser humano, no plano universal e
individual, acaba por percorrer, de um ponto (o da maior
ou menor singeleza) a outro (o da mais ou menos acabada
formação cultural), parece ser sempre igual a si mesma nas
suas orientações essenciais.”

(Friedrich Hölderlin, fragmento do Hipérion)

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