29 de maio de 2024




 

Oyu [2023, Atsushi Hirai] 


 numa curta-metragem onde nada nos é explicado, é apenas no final que percebemos ao que esta vem, o sentido das palavras dos frames de cima se declara e um pequeno gesto para com uma idosa desconhecida tem todo o sentimento do mundo e acarreta toda a amargura da perda e do sentimento de não ter aproveitado o tempo; é, portanto, sobre o tempo que oyu se debruça, o tempo que não volta mais e que não traz aquilo que não foi aproveitado, a companhia e o cuidar da mãe

28 de maio de 2024

 


| 2023, Le ravissement, Iris Kaltenbäck | 



há em le ravissement, a primeira longa-metragem de iris kaltenbäck, um arrebatamento de ternura que atravessa todo o filme tentando combater a melancolia; desde o inicio somos induzidos a depreender uma situação fatídica ou de alguma forma determinante e impactante na relação do narrador, presente e ausente, e de lydia, relação construída sob as cinzas doutra relação e da solidão seguida (ou do vazio que ficou) e da rejeição de milos, a voz-off que conta a história e que passa uma noite com ela; há portanto, no encarar uma noite de prazer como um possível novo começo, a chama necessária para alimentar o fogo obsessivo de lydia e determinar assim as suas acções... le ravissement é uma agradável surpresa






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| 2023, La chimera, Alice Rohrwacher | 



 O que é verdadeiramente admirável em la chimera é a frescura e a leveza com que oscila entre o fantasioso (e o fantasmático e o mitológico) e a realidade; o tempo e o espaço em la chimera fogem da linearidade para se envolverem no onirismo e no fantasmático em si, na busca duma quimera que se confunde com o métier de arthur e o seu bando de ladrões de túmulos; tal como orfeu que viaja para o hades em busca de trazer de volta a sua eurídice, também aqui arthur persegue a sua beniamina no seu métier, ambas chimeras que ele persegue, coisa alcançada naquele final tão real quanto simbólico, lembrando também o mito de ícaro que chega demasiado perto do sol, também aqui arthur chegará perto demais da tumba/quimera; a música no filme de rohrwacher consegue alcançar o protagonismo, na medida em que consegue imprimir ritmo e frescura, assim como acaba por alcançar a coerência numa intenção declarada de glorificar o passado italiano...





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| 2022, O trio em bi menol, Rita Azevedo Gomes | 

 décor e formalismo, beleza e magnificência





22 de maio de 2024

 



Ukigumo [Mikio Naruse, 1955] 



 “Rotina! Oh, natureza! As pessoas estão sozinhas na Terra – é esta a desgraça! «Alguma alma ficou viva no campo?», grita o guerreiro russo. Também eu, que não sou guerreiro, grito, e ninguém responde. Dizem que o Sol dá vida ao universo. Vai levantar-se o Sol e… olhai para ele, não estará morto? Está tudo morto, por todo o lado só há mortos. Gente sozinha, e à volta dela o silêncio – eis a Terra! «Homens, amai-vos uns aos outros» – quem o disse? De quem é este mandamento? O pêndulo bate insensível, abominavelmente. Duas da madrugada. As botinhas dela ao lado da cama, como que à espera… Não, a sério, quando a levarem amanhã, o que vai ser de mim?”

(Fyodor Dostoyévsky, fragmento de A Submissa) 






   

um mundo do pós-guerra, de um japão dilacerado pela derrota, com as feridas abertas e o orgulho espezinhado, colónia perpétua da grande potência emergida do final dessa aniquiladora e devastadora grande guerra, é o ponto de partida para esta obra-prima de naruse, adaptada do livro do mesmo nome da escritora fumiko hayashi; é sob essa égide, na aspereza e na miserabilidade da recuperação desse japão ocupado que caminha lentamente para a recuperação económica, que se ocidentaliza forçada e apressadamente, que nuvens flutuantes irrompe e declara toda a sua magnificência.

entre yukiko e tomioka estabeleceu-se uma relação na indochina ocupada pelos japoneses, o filme inicia a partir do retorno dela ao japão, ela solteira, ele casado, relação que irá suportar tudo e todos os desgostos e vicissitudes e manifestações de orgulho tanto da parte dele como dela; a ele ainda lhe é cara a ligação com a esposa, mesmo já tendo deixado de a amar, a ela a quebra da promessa dele é lacerante, irá assombrá-la e atormentá-la ad eternum ainda que tudo se revele circular com o retorno sempre a tomioka; naruse usa de flashbacks e de elipses para nos contar o passado, e exceptuando a lembrança do estupro – elipse perfeita e assombrosa –, o passado é sempre claro enquanto o presente é maioritariamente sombrio, cria-se aí uma distinção na temporalidade da acção, as trevas da miserabilidade do país que se ergue das cinzas e da sua população passam a ter expressão visual e narrativa precisamente após essa memória do estupro.






naruse, assim como mizoguchi, foram talvez os cineastas que mais exploraram a condição da mulher na sociedade patriarcal japonesa, naruse fê-lo mais na contemporaneidade enquanto mizoguchi recorreu mais à ancestralidade; no entanto, há em ukigumo uma análise mais abrangente da condição não só da mulher como do ser humano - nos raccords, no campo e contra-campo em que a complexa relação de yukiko e tomioka se materializa, o foco oscila tanto do masculino para o feminino -, assim como o ulterior ensaio seja a desconstrução da estabilidade emocional dos dois personagens, com especial enfoque em yukiko, sim, personagem mais frágil mas ao mesmo tempo sólida, que se perde e se encontra e se volta a perder no caos do japão do pós-guerra, mas a metáfora do título que tem expressão na insistência de ambos em retornarem um ao outro ano após ano é, digamos assim, dual.

explorando assim a carga emocional adjacente aos personagens, yukiko talvez como representação suprema do martírio emocional, paralelo talvez encontrado no mito da psique ainda que tenha os seus diferendos, é depois em tomioka distendido, homem abatido pelo determinismo social e económico caminhando sempre rumo à penúria, o caos emocional reflecte-se na procura infrutífera dum futuro financeiro radioso, a constante flutuação de envolvimentos amorosos como forma não só de colmatar um vazio emocional deixado em suspenso pelas ausências de yukiko como forma, também, de magoar e determinar o rumo da sua relação com ela, yukiko, que no seu calvário oscila entre o orgulho e a humilhação, entre a fraqueza e a solidez, percorre as trevas lancinantes do destino, como o marido traído que acabará por matar a mulher tanta fé tem nele, no destino, mas dizia eu, yukiko entrega-se ao destino e tal como as nuvens flutuantes do título deixa-se levar pela correnteza da vida.






se é na escuridão deste portento melodramático que se pressente ou se anuncia um desfecho trágico, e curiosamente nuvens flutuantes faz paralelo com outra obra sublime e elegíaca do mesmo ano, o para sempre mulher da tanaka, é também na melancolia e na sua pungência que ukigumo se transfigura e se sacraliza naquele final onde se declara ao mundo o sentimento por décadas disfarçado (ou enterrado), seja pela sua natureza, seja pela conjuntura social e económica do país dilacerado ou pelo orgulho, de tomioka, é portanto, na renúncia total à sua renúncia do amor dela, ou por ela, que toda a obscuridade da alma dilacerada pelos vazios emocionais desse fluxo da vida se cristalizam naquele momento final, erupção e exteriorização da dor lancinante, revelação total; sacralidade; magnífico, obra-prima. 






“A órbitra excêntrica que o ser humano, no plano universal e
individual, acaba por percorrer, de um ponto (o da maior
ou menor singeleza) a outro (o da mais ou menos acabada
formação cultural), parece ser sempre igual a si mesma nas
suas orientações essenciais.”

(Friedrich Hölderlin, fragmento do Hipérion)

21 de maio de 2024


 

Canción sin nombre [Melina León, 2019]


ainda que se registem alguns lugares-comuns e desnecessários, canción sin nombre, baseado num caso verídico, é coisa arrojada e admirável, tem um tom quase que expressionista, onírico, é contido e não se perde na sua morosidade, no seu virtuosismo (ou estilismo) nem na sua contemplação; o filme de melina león é um lamento corrosivo e político-social, carrega consigo os ritos e a etnografia dos indígenas peruanos bem como a melancolia que está sempre associada ao ritmo do filme, assim como a sua cinematografia e o preto e branco têm ligações tanto com a burocracia e a corrupção que por ali se expõe, como com a marginalização e o preconceito para com a etnia indígena, é tudo sombrio e a cineasta peruana parece dizer-nos que não há cor naquele país em crise sócio-económica.

 






(um top 5 - a ordem é cronológica, não de importância) 




The King of Kings [Cecil B. DeMille, 1927] 
King of Kings [Nicholas Ray, 1961] 
Il vangelo secondo Matteo [Pier Paolo Pasolini, 1964] 
Il messia [Roberto Rossellini, 1975] 
Histoire de Judas [Rabah Ameur-Zaïmeche, 2015]

13 de maio de 2024


 

| a sacralidade da natureza | 


 La panthère des neiges [2021, Marie Amiguet * Vincent Munier] 


 a "caça" ao leopardo das neves, sendo esta caça a espera para o fotografar, resulta num filme onde o métier do fotógrafo é exposto ou analisado, como um roteiro do que o move e o faz ficar horas camuflado, sob a neve ou a chuva ou o sol, aguardando a aparição do tão aguardado leopardo; entretanto filmam-se os outros animais, regista-se essa sacralidade da natureza e da comunhão dos animais selvagens com ela, a natura, a simbiose que o ser humano perdeu com o progresso; de resto, o filme incorre num festival de planos e panorâmicas de beleza magnífica e indescritível mas que pouco abonam em seu favor, funcionando mais como instrumento publicitário e panfletário (e a semelhança com os documentários da national geographic é total e absoluta) do que propriamente objecto cinematográfico.

1 de maio de 2024










2022, Le rêve et la radio, Renaud Després-Larose e Ana Tapia Rousiouk 


    | cosmologia cinéfila, política, filosófica e social | 



"One must not begin with individuality in freedom, not with the singular self-consciousness, but only with its essence, for this essence, whether the individual knows it or not, is realised as an independent force in which individual beings are merely moments." 
Hegel


"You cannot buy the revolution. You cannot make the revolution. You can only be the revolution. It is in your spirit, or it is nowhere." 
Ursula K. Le Guin 


 "Societies in decline have no use for visionaries."
Anaïs Nin