7 de abril de 2023


 

Li algures que café lumière é uma homenagem a Ozu... talvez seja, ainda que seja no seu todo um "anti-ozu", ou um "pós-ozu", com tudo o que Ozu (leia-se o seu cinema) signifique e acarrete. No fundo, que tenha reparado, a única grande referência a Ozu são os comboios, as estações e as linhas dos comboios, depois alguns enquadramentos (sobretudo nos interiores) e nada mais; de facto, café lumière é o oposto de Ozu, é o antagonismo do Japão de Ozu e do seu cinema, é o desprendimento total da família, dos laços familiares, do conceito de família, é o modernismo que rompeu com a tradição, é o enaltecimento da independência e do individualismo, é o Japão completamente ocidentalizado, aquilo que os últimos filmes de Ozu prenunciavam...

No entanto, café lumière é, de certa forma, um tipo de retorno de Hsiao-Hsien ao classicismo do seu cinema, coisa que millennium mambo (e até já goodbye south, goodbye) tinha abandonado - aliás, filmes que lembram sobretudo Kar-Wai mas também o cinema recente de Kechiche, coisas que mergulham na sua relação com os corpos e com o espaço-tempo como coisa mais intensa e momentânea ao invés da construção narrativa clássica (e da découpage e por aí fora) e que, de certa forma, café lumière resgata... talvez o seu filme mais lancinante e mais melancólico (o Millennium) sem que se deixe abraçar completamente pelo sentimentalismo (tal como o lumière também), millennium mambo é na sua génese, mais uma vez, tal como café lumière, um grito de vigor, mas onde um mergulha no sofucamento desse vigor, o outro fá-lo respirar, aliás, vigor que já goodbye south, goodbye transportava, mas que no café lumière abandona a violência e a procura pelo êxtase, e é isso que o faz respirar... é, juntamente com three times, casos únicos daquilo que vi do seu cinema (e apenas não vi os seus quatro primeiros filmes, outros dois da década de 80 e mais dois de 90), são coisas onde imerge a ausência da violência, coisas sadias ainda que melancólicas… no fundo, há uma mudança após goodbye south, goodbye, Hsiao-Hsien abandona aquele sentido nostálgico que carregam os seus filmes anteriores, e fá-lo com o redireccionamento para os corpos e a luz e as cores (os néons dos bares e das ruas) e o vigor (ou a juventude) disso tudo. Café lumière retém o vigor, a independência e o rompimento com a tradição e com a nostalgia, a poesia disso tudo, mas vinca o modernismo e abandona a agressividade, a irascibilidade e a dureza dos anteriores. Simbolicamente, é como se o cinema tivesse encontrado o que procurava, ou tivesse alcançado o seu amadurecimento, analogia (ou metáfora) de Taiwan, da pátria.





É também em café lumière que Hsiao-Hsien rejeita o romantismo, nunca vemos o tal noivo de Taiwan por exemplo, assim como nunca vemos um beijo ou algum envolvimento amoroso, ao contrário de millennium mambo que é um filme romântico no seu imo, toda a melancolia que dele exala é pela perda do romantismo que ensombra desde o início, romantismo que teria o seu zénite no filme seguinte, o three times, filme de três histórias interligadas, talvez, por um misticismo ou uma transcendentalidade qualquer, duas almas que atravessam três tempos mas que estão ligadas como que por predestinação, coisa que navega entre o resgate da candura do romantismo (novamente a puerilidade no seu cinema) e a sua melancolia (tristeza mesmo), há ali sempre um sentimento de perda que caminha com aquelas personagens, mesmo que o tal vigor ou a juventude (como se todas aquelas juventudes de todos os seus filmes fossem afinal a juventude de Taiwan, e three times é uma metáfora perfeita disso) seja o seu objecto, o desenvolvimento do seu amadurecimento, talvez por isso mais que sentimento de perda (ou além disso), exista nos seus filmes "mais maduros" (a partir do goodbye...) um sentimento de insatisfação...

Há, portanto, no seu cinema uma relação directa e declarada com a pátria, como se aquela juventude e aquele vigor que teima em filmar seja no fundo o da pátria.





Em the assassin (e desconfio que nunca mais Shu Qi, a coisa mais bela que Hsiao-Hsien revelou ao mundo, terá aquela tristeza e aquela beleza como no millenniun), Hsien parece conciliar a arte da violência com a sua rejeição, é como se o filme fosse um manifesto da sua rejeição, da abolição desse vigor irascível que pauta todos os seus filmes até ao millenniun. O preto e branco inicial, mais que apresentar o passado da história do filme, cria a relação com o seu passado cinematográfico e o da pátria, como se o sofrimento que determinou a eterna melancolia tivesse finalmente encontrado a pacificação e tivesse ainda assim conservado a compaixão e o sentimento, como se a desumanização não se tivesse consumado. A melancolia, essa, é eterna no seu cinema, é a sua alma!

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