31 de dezembro de 2010

Urga (1991)
Nikita Mikhalkov

Em Urga temos o espaço (a natureza) como condutor enérgico (embora transpareça serenidade) da definição individual (e cultural) daquele homem e daquela família. Ali, na vastidão dos montes verdejantes e longínquos, luta-se pela permanência da sua cultura (e de certa forma pelo primitivismo inerente ao aspecto sociocultural, daquele sentido retrógrado) face ao avanço da civilização no seio daquela família mongol. A televisão e os contraceptivos funcionam como metáforas desse desenvolvimento civilizacional. Dum lado temos a mulher (apologista do consumismo e de um desenvolvimento civilizacional) e do outro o homem (receoso nesse progresso). O que há ali é um confronto de mentalidades. Em comum existe o amor e a necessidade das relações sexuais. Nessa matéria, Urga é filme de descobertas, é filme de reflexões sobre a relação conjugal, sobre a forma de resolver os dilemas. No entanto, toda essa incitação numa procura de explorar a relação conjugal advém primordialmente dum pressuposto político-social. Pagma quer uma televisão para poder estar informada sobre o mundo, para evoluir socialmente. Quer os preservativos porque a lei não permite mais de três filhos aos mongóis e um aos chineses. Tudo deriva de razões políticas e sociais.

Mas Urga emerge na disparidade entre os rituais de tal primitivismo em que Gombo e a sua família vivem (se bem que primitivismo será uma palavra forte demais, talvez costumes tradicionais se adeqúe melhor) e os sinais do mundo moderno que emite (o boné do filho, o poster do vizinho, o aparecimento de Sergei que resulta da chegada das construções rodoviárias, posteriormente a televisão, os preservativos e a bicicleta). O que Mikhalkov nos mostra são esses ritos em que aquela etnia subsiste (e aqui, aliado à sua beleza paisagística, lembrei-me de Tulpan que vi há dias), é o valor que a natureza adquire aqui, é o humanismo daquele primitivismo. Porque Sergei reconhece o bem que Gombo lhe fizera (e é grato por isso). Porque o russo descobre que ali está longe da falsidade humana, ali está perto duma candura rara, duma ingenuidade própria de quem é alheio ao desenvolvimento social e civilizacional. O humanismo. E aí dá-se o confronto de culturas (que atinge o seu auge quando Gombo vai à cidade) e o início de uma amizade. Mas acima de tudo, dá-se a descoberta da civilização por parte de Gombo, dá-se a colmatação do desconhecimento e a aceitação de alguns bens afectos a essa modernização (a televisão e a bicicleta). Dá-se o progresso (por pouco que seja e embora se continue mergulhado nos ritos mongóis) naquela família. E a beleza do espaço, a beleza dos enquadramentos, a mise-en-scène de Mikhalkov.

1 comentário:

Remédios a bela disse...

Álvaro gostei muito do filme e achei seu texto ótimo.
O filme nos trás uma inocência, uma paz em meio às perturbações humanas. Não é mesmo possível ficarmos parados no tempo.
Paz.