25 de março de 2025

 

1970, Five easy pieces, Bob Rafelson 


| too long in exile | 

Em five easy pieces, “filme-herdeiro” de easy rider que acaba por se desconstruir e progressivamente ir aniquilando esse herdamento - na verdade five easy pieces fala da geração seguinte - há um confronto entre dois mundos no interior de um homem inadaptado ou permanentemente insatisfeito; se em five easy pieces reluz ainda algo daquela américa mítica de ford ou (sobretudo) de huston, é na verdade com os seus contemporâneos que o filme de rafelson dialoga (cassavetes, bogdanovitch, malick, hellman, altman…), numa constante confrontação entre esses dois mundos declarados e metaforizados (burguesia vs proletariado, erudição vs rudeza, limpeza vs sujidade, culto vs inculto, racionalidade vs irracionalidade, etc) que desaguam no tédio e na insatisfação que bobby sente e que lhe proporcionam a sua complexidade; é portanto essa a origem da sua irritabilidade e da sua frieza emocional que apenas sofre flutuações aquando das suas explosões irascíveis; na verdade, é a sua insatisfação, que lhe faz rejeitar o elitismo do mundo familiar, que resulta na sua irascibilidade e na sua falta de amor-próprio como lhe diz catherine perto do final, por isso se prende a alguém que despreza, que acha inferior e patética, até ao final libertador em que se dá ou a tomada de consciência ou o recomeçar de mais um ciclo.

23 de março de 2025


 

2016, Cartas da Guerra, Ivo M. Ferreira 


| ecos coloniais | 

Filme soberbo que consegue transcender as suas principais influências (a malickiana do the thin red line e a coppoliana do apocalypse now). Fica um excerto do texto do Vasco Câmara aquando da estreia: 

 E eis que nos devemos preparar para um filme que foge das armadilhas colocadas no percurso e, mais surpreendente ainda, que tacteia no escuro atrás da sua vida interior, que fiel à voz que ouve. É filme simultaneamente delicado e temerário. Por isto: aventura-se a procurar um corpo, para a personagem António (interpretada por Miguel Nunes) e para si próprio, que esteja num lugar que não aquele a que parecia destinado. Aventura-se a criar e organizar o (seu) mundo, como se não houvesse pré-existências. 

 Voz-off? Não, a voz não vem de fora a sublinhar ou a demonstrar, impossibilitando assim a vida própria dos planos. A voz vem de dentro, é o próprio filme a construir-se, a falar (-se). É voz in, à procura de um lugar out. Isto vale para Cartas da Guerra e vale para António - as cartas são o desejo de um encontro erótico com uma mulher (Margarida Vila Nova), num espaço que anule a guerra, que a derrote, que faça o mundo, que é essa história de amor, recomeçar do zero. A personagem e o filme querem estar num outro lugar. 

 Muito cedo António deixa de ser prisioneiro das expectativas "criadas" pelo facto de ser o escritor António Lobo Antunes quando jovem e parte para a sua própria aventura de personagem. Quer ganhar corpo. Figura frágil, inicialmente presença diáfana, vai conquistando progressivamente o (seu) espaço, a consciência política, a dimensão como escritor. Essa é exactamente a aventura de Cartas da Guerra: filme à procura de si próprio, de um corpo que chame seu. Este corpo a corpo filiam-no menos no Tabu de Miguel Gomes do que, por exemplo, nas aventuras malickianas. Há um filme para que este remete, se assim o quisermos, A Barreira Invisível/The Thin Red Line. Mas mais do que um título em especial, é com a experiência da criação do mundo que está nos filmes de Terrence Malick - como se todas as matérias se organizassem num caos inicial, e o filme fosse o testemunho vivo, a prova, de um nascimento - que Ivo M. Ferreira caminha. De forma desassombrada, aliás. Por isso a meia hora final de Cartas da Guerra pode mesmo ser qualquer coisa de triunfante. É um filme que não só sobrevive a si próprio, como se ergue. É uma personagem que se afirma. A guerra foi de Ivo M. Ferreira, o filme é dele.

21 de março de 2025

 


a registar: 


2007, Ferien, Thomas Arslan 
2020, Blanco de verano, Rodrigo Ruiz Patterson 
1956, Kiri no oto, Hiroshi Shimizu 
2013, Grzeli nateli dgeebi, Nana Ekvtimishvili e Simon Groß 
1999, Dealer, Thomas Arslan 
2013, Gold, Thomas Arslan 
2017, Helle Nächte, Thomas Arslan 
1985, Tokyo-Ga, Wim Wenders 
2024, Longlegs, Oz Perkins 
1981, Coup de torchon, Bertrand Tavernier 
2017, Braguino, Clément Cogitore 
1941, Ball of fire, Howard Hawks 
2007, United Red Army, Kôji Wakamatsu 
1985, Le livre de Marie, Anne-Marie Miéville 
2023, Bonnard, Pierre et Marthe, Martin Provost 
2018, Maghzhaye Koochake Zang Zadeh, Houman Seyyedi 
2002, Occident, Cristian Mungiu 
1989, Chodník cez Dunaj, Miloslav Luther 
1972, Ludwig - Requiem für einen jungfräulichen König, Hans-Jürgen Syberberg 
1923, Cœur fidèle, Jean Epstein 
1938, L'étrange Monsieur Victor, Jean Grémillon 
1946, The spiral staircase, Robert Siodmak 
1993, Chronicle of the undeclared war (Transnistria 1992), S. Fateev 
2017, Le vénérable W., Barbet Schroeder 
1933, Okraina, Boris Barnet 
2008, Adoration, Atom Egoyan 
1931, The miracle woman, Frank Capra 
2022, Slovo, Beaty Parkanové 
1950, Luci del varietà, Federico Fellini e Alberto Lattuada 
1969, L'amour fou, Jacques Rivette 
1974, Céline et Julie vont en bateau, Jacques Rivette 
1976, Duelle (une quarantaine), Jacques Rivette 
1976, Noroît (Une vengeance), Jacques Rivette 
1959, Middle of the night, Delbert Mann 
1980, Merry-Go-Round, Jacques Rivette 
1981, Le pont du Nord, Jacques Rivette 
1984, L'amour par terre, Jacques Rivette 
2003, Buongiorno, notte, Marco Bellocchio 
1960, Jungfrukällan, Ingmar Bergman 
1982, Fitzcarraldo, Werner Herzog 
2023, A flor do buriti, Renée Nader Messora e João Salaviza 
2024, Juror #2, Clint Eastwood 
2024, Verbrannte Erde, Thomas Arslan 
2024, Dahomey, Mati Diop 
2014, Timbuktu, Abderrahmane Sissako 
2018, Alpha: The right to kill, Brillante Mendoza 
2024, Anora, Sean Baker 
2016, Kedi, Ceyda Torun 
2024, All we imagine as light, Payal Kapadia 
2024, Feng liu yi dai, Jia Zhang-Ke 
1968, La concentration, Philippe Garrel 
1931, Kameradschaft, G. W. Pabst 
1960, The Apartment, Billy Wilder 
1982, The Verdict, Sidney Lumet 
2024, The room next door, Pedro Almodóvar 
2024, Maria, Pablo Larraín 
2010, O estranho caso de Angélica, Manoel de Oliveira 
1944, Kanko no machi, Keisuke Kinoshita 
1956, Together, Lorenza Mazzetti 
2024, Keyke mahboobe man, Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha 
2024, Grand Tour, Miguel Gomes 
1969, Adelheid, František Vláčil 
2024, Wu suo zhu, Tsai Ming-Liang 
2006, Pillar, Bas Devos 
2014, Violet, Bas Devos 
2019, Hellhole, Bas Devos 
2019, Ghost tropic, Bas Devos 
2023, Here, Bas Devos 
1958, Idiot, Ivan Pyryev 
2022, Da-eum So-hee, July Jung 
2024, L'Histoire de Souleymane, Boris Lojkine 
1977, Budapesti mesék, István Szabó 
2012, Simon killer, Antonio Campos 
1995, La fille seule, Benoît Jacquot 
1985, Hurlevent, Jacques Rivette 
2017, Northerners, Ilya Povolotsky 
2019, Froth, Ilya Povolotsky 
2023, Blazh, Ilya Povolotsky 
1999, Pas de scandale, Benoît Jacquot 
2024, Hors du temps, Olivier Assayas 
2020, Jeongmal meon gos, Park Kun-Young 
2009, Villa Amalia, Benoît Jacquot 




 Revisões: 


1966, La religieuse, Jacques Rivette 
1984, Once upon a time in America, Sergio Leone 
1999, Todo sobre mi madre, Pedro Almodóvar 
1990, Goodfellas, Martin Scorsese 
1988, The Accused, Jonathan Kaplan 
1997, Donnie Brasco, Mike Newell 
1972, The Godfather, Francis F. Coppola 
1974, The Godfather II, Francis F. Coppola 
1990, The Godfather III, Francis F. Coppola 
1975, Dog Day Afternoon, Sidney Lumet 
1998, New Rose Hotel, Abel Ferrara 
1953, Gentlemen prefer blondes, Howard Hawks 
1959, Some like it hot, Billy Wilder 
1987, The Sicilian, Michael Cimino 
2017, Good time, Benny Safdie e Josh Safdie 
2002, Road to Perdition, Sam Mendes 
2009, Public Enemies, Michael Mann 
1999, Bringing out the dead, Martin Scorsese 
1958, Man of the west, Anthony Mann 
1958, The Big Country, William Wyler 
1946, It’s a wonderful life, Frank Capra 
1973, Mean Streets, Martin Scorsese 
1995, Casino, Martin Scorsese 
2001, Enemy at the gates, Jean-Jacques Annaud

20 de março de 2025

 


Jeongmal meon gos (2020, Park Kun-Young) 


 A distant place é um filme inteligente, consegue transmitir uma mensagem subliminarmente sem se tornar um chorrilho quer de propaganda quer de sensacionalismo; na verdade, em todo o seu lirismo que coexiste na perfeição com o realismo, o filme de kun-young fala-nos de amor e das barreiras que a sociedade lhe criou; mas o mais interessante em a distant place é não fazer da temática um panfleto propagandístico, ainda que no fundo, a mensagem esteja lá; em todo seu vórtice psicológico e na sua imersiva imanência das personagens - alcançando mesmo o mediúnico lá perto do final -, o filme projecta em si o conflito interior de quem enfrenta o preconceito e se vê face à iminência de abdicar de quem criou; ora está, naquilo que o filme de kun-young reclama, a plenitude do amor, a recusa em se centrar na questão homossexual resulta na sua grande vantagem, reforçada pelo ritmo, pela contemplação e pelo distanciamento que a própria câmara adopta a maior parte das vezes… sem ser exuberante, a distant place resulta num filme bastante competente.

 

18 de março de 2025

 


2024, Hors du temps, Olivier Assayas 


 O último assayas deixou-me indeciso sobre o que achar dele, pretende ser várias coisas ao mesmo tempo, sem que seja necessariamente competente nem inepto, mas resulta num certo pretensiosismo que cria algum desconforto no espectador; hors du temps é uma mistura de rohmer com woody allen e sang-soo, recheado de referências literárias e cinematográficas, naquilo que pretende ser uma análise ao comportamento humano em tempos de isolamento pandémico; as tensões criadas entre os personagens são mal exploradas (ou insuficientemente exploradas), confunde-se a origem dos conflitos oscilando entre as memórias da infância e o isolamento em si, a paranoia “covideira” dum vs o relaxamento doutro, etc; assayas faz um filme de diálogos e aquilo que mais me ficou foi o pretensiosismo eclético que o cineasta adopta descurando assim do desenvolvimento das suas personagens e das suas neuroses/conflitos…

 

17 de março de 2025

 

Ilya Povolotsky

 

2017, Northerners 
2019, Froth 
2023, Blazh 


 | de northerners (cura-metragem documental) a blazh (road movie ficcional), o cinema de povolotsky é tão belo quanto a aridez das suas paisagens; se em northerners e em froth, povolotsky documenta o métier das gentes de murmansk num olhar meio que etnográfico mas incisivamente frio e perto da desolação, em blazh a desolação é total e aliada à alienação e ao tumulto interior em conflito intenso com a contenção; belíssimo |

15 de março de 2025

 


1995, La fille seule, Benoît Jacquot 


| la solitude | 


 Primeira coisa de jacquot que vejo, maravilhamento total! Se la fille seule não é uma obra-prima, anda lá perto, muito perto; num filme tão bressoniano quanto se pode ser, jacquot é exímio e soberbo na sua linguagem cinematográfica - na atenção ao detalhe, na perseguição à personagem (a belíssima ledoyen), no ritmo que imprime na tela, nos movimentos, nos raccords… é, portanto, na magistralidade da sua mise-en-scène que se dilata a sua narrativa, aí se encontram linguagem técnica e narrativa e se envolvem e se complementam; por isso que la fille seule resulta tão bem numa história relativamente simples duma jovem que decide ser mãe solteira, onde a genialidade de jacquot explora os detalhes (e é aí que a influência de bresson se declara abertamente) com os seus movimentos de câmara, explora o comportamento humano com os gestos, os olhares, os impulsos, etc; maravilhoso!




14 de março de 2025


 

| 2012, Simon killer, Antonio Campos |


a amoralidade como resposta ao caos interior…

13 de março de 2025


 

1977, Budapesti mesék, István Szabó 


Numa alegoria que vaticina, entre outras coisas, o destino da nação húngara, budapesti mesék analisa o comportamento humano de forma tão lírica quanto subjectiva; em meio à sua rudeza e à liberdade narrativa que faz da metáfora a sua cadência cardíaca, o filme de szabó fala da colectividade como força motriz da humanidade e da individualidade (e tudo o que ela traz de arrasto) como a sua grande ameaça.

 


Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.

Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.

Do fundo do tempo,
martelava.
Contra o muro.

Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.

(Eugénio de Andrade)