27 de junho de 2024

 








| 1945, The body snatcher, Robert Wise | 



Em the body snatcher a escuridão é total, se há filme em que a descida ao hades é de tal forma tão terrifica e tão vertiginosa é este; em nome do progresso, o conto de stevenson analisa o facto macabro de que a evolução da medicina e o conhecimento da anatomia humana passou, obrigatoriamente, pela dissecação de cadáveres, a morte como via sine qua non para a vida, ponto de partida para o que wise executa com mestria, é esse mergulho tão negro quanto o carvão e tão assustador quanto as casas assombradas mais assustadoras; na verdade, em body snatcher assistimos a uma simbiose de almas - "tu e eu temos dois corpos... sim, tipos de corpos muito diferentes... mas estamos mais próximos do que se estivéssemos na mesma pele, pois salvei essa sua pele uma vez e não te vais esquecer disso” diz gray a dada altura a macfarlane -, o passado que assombra e tolda o presente, é coisa que determina a acção, a tal descida vertiginosa ao hades, a perversão progressiva da alma, a sua completa escuridão que tem o seu pico naquele final tão aterrador e negro; e depois, que eu saiba, não há outro filme em que o frankenstein mata o drácula... 
















 | 1964, Lilith, Robert Rossen | 



há em lilith um dos maiores gritos cinematográficos por redenção, contido e reprimido durante o filme todo até ao momento final em que é expressado e suplicado; na verdade, toda a narrativa de lilith é sobre os fantasmas reprimidos de bruce, expelhados em lilith, mulher oposta mas também "gémea" do seu fantasma, a mãe, a perda irrecuperável que o assombra lá no âmago da sua alma, é, portanto, ela o veículo para o libertar, lilith, a doente bipolar, tão pura quanto perversa que "caiu" após a morte do irmão, a doente que apenas quer ser irmã de todos, que o seduz e o enlouquece e assim o guia para o limite onde se encontra ou a destruição ou a salvação. 






"Será uma almeia?... às primeiras horas azuis
Destruir-se-á ela como as flores defuntas...
Diante da esplêndida vastidão em que se sente
Respirar a cidade largamente florescente!

É belo de mais! De mais! Mas é necessário
- Para a Pescadora e a Canção do Corsário,
E também porque as últimas máscaras contaram
Ainda com as festas nocturnas no mar puro!

Julho de 1872
A. R."

(Rimbaud)













 | 1991, Avstriyskoe pole, Andrei Chernykh | 



a procura da esperança (e da felicidade e do amor e dum sentido na vida) num mundo alienado e fragmentado; ambiguidade narrativa no tempo e no espaço; magnético e imersivo 



 “Saímos, com efeito, de uma evolução natural, mas desde que ingressamos no mundo da cultura, as nossas relações com a natureza tornaram-se mediatizadas, misturadas com o 'ruído' ideológico. É porque nos afastamos da natureza que queremos reencontrá-la. Entretanto, não podemos reencontrar a unidade perdida, nem um 'saber reconciliado'. O pensamento humano é algo singular, bizarro, no Univerno; ele não reflete o real, ele o traduz, não reflete o mundo, faz uma representação dele. Não podemos pôr fim a essa alienação, o nosso estranhamento com essa natureza, que é contudo nossa mãe/madrasta. É preciso romper com a visão sobrenatural e insular do homem, mas não podemos romper com nossa situação peninsular e biocultural.” 
 
Edgar Morin 














 | 1971, Emitaï, Ousmane Sembène | 

      (o sangue dos "impuros") 



 “Why did Africa let Europe cart away millions of Africa's souls from the continent to the four corners of the wind? How could Europe lord it over a continent ten times its size? Why does needy Africa continue to let its wealth meet the needs of those outside its borders and then follow behind with hands outstretched for a loan of the very wealth it let go? How did we arrive at this, that the best leader is the one that knows how to beg for a share of what he has already given away at the price of a broken tool? Where is the future of Africa?” 

 Ngũgĩ wa Thiong'o, 'Wizard of the Crow' 














 (o amor é a verdadeira força da natureza para além dos tempos) 




 | 2023, La bête, Bertrand Bonello | 




o último bonello, além de ser daqueles filmes que precisa de ser revisto para se entender melhor, é uma imersão experimental por um universo lynchiano somado a laivos weerasethakulianos e resnaisnianos; daquilo que me ficou e depreendi das quase duas horas e meia que, diga-se, passam a voar, foi a tentativa de dissolver a barreira da morte como interrupção das emoções ou dos sentimentos no ser humano; três épocas, três versões das mesmas duas pessoas, sempre interligadas por esse amor intemporal, interrompido, quase que proibido, sempre acompanhado pelo mensageiro da morte, o pombo; se entramos num mundo místico, onde as vidas passadas são recuperadas para entender (ou tentar) os sentimentos presentes, vamos depois chegar ao pós-humanismo e à ameaça da ia onde a morte assume outro sentido, mais vasto, mais destruidor que a própria morte em si; no final fica a dúvida se o amor sobreviverá também a isso. 






"MEMÓRIA 

Amar o perdido 
deixa confundido 
este coração. 

Nada pode o olvido 
contra o sem sentido 
apelo do Não. 

 As coisas tangíveis 
tornam-se insensíveis 
à palma da mão 

 Mas as coisas findas 
muito mais que lindas, 
essas ficarão."

Carlos Drummond de Andrade

















| 2015, Kishibe no tabi, Kiyoshi Kurosawa | 



 o sobrenatural de kiyoshi é aqui transcendido na procura da eternidade, o perdão como busca imperativa para alcançar essa eternidade; no entanto, há em rumo à outra margem uma tranquilidade pristina associada não só à morte como à busca pela redenção nessa vida para além da morte; belíssimo.




"SABEDORIA I, III 

Que dizes, viajante, de estações, países? 
Colheste ao menos tédio, já que está maduro, 
Tu, que vejo a fumar charutos infelizes, 
Projectando uma sombra absurda contra o muro? 

Também o olhar está morto desde as aventuras, 
Tens sempre a mesma cara e teu luto é igual: 
Como através dos mastros se vislumbra a lua, 
Como o antigo mar sob o mais jovem sol, 

Ou como um cemitério de túmulos recentes. 
Mas fala-nos, vá lá, de histórias pressentidas, 
Dessas desilusões choradas plas correntes, 
Dos nojos como insípidos recém-nascidos. 

Fala da luz de gás, das mulheres, do infinito 
Horror do mal, do feio em todos os caminhos 
E fala-nos do Amor e também da Política 
Com o sangue desonrado em mãos sujas de tinta. 

 E sobretudo não te esqueças de ti mesmo, 
Arrastando a fraqueza e a simplicidade 
Em lugares onde há lutas e amores, a esmo, 
De maneira tão triste e louca, na verdade! 

Foi já bem castigada essa inocência grave? 
Que achas? É duro o homem; e a mulher? E os choros, 
Quem os bebeu? E que alma capaz de os contar 
Consola isso a que podes chamar tuas dores? 

Ah, os outros, ah, tu! Crendo em vãos lisonjeios, 
Tu que sonhavas (e era também demasiado) 
Com uma qualquer morte suave e ligeira! 
Ah, tu, que espécie de anjo sempre amedrontado! 

Mas que intenções, que planos? Terás energia 
Ou o choro destemperou esse teu coração? 
A julgar pela casca, é uma árvore macia 
E os teus ares não parecem de vencedor, não. 

Tão desastrado ainda! e com a agravante inútil 
De seres cada vez mais um sonolento idílico 
A fitar pla janela o céu sempre tão estúpido 
Sob o astuto olhar do diabo do meio-dia. 

Sempre o mesmo na tua extrema decadência! 
Ah! — Mas no teu lugar, e assumindo as culpas, 
Um ser sensato quer impor outra cadência 
Com o risco de alarmar um pouco os transeuntes. 

Não terás, vasculhando os recantos da alma, 
Um vício pra mostrar, qual sabre à luz do dia, 
Algum vício risonho, descarado, que arda 
E vibre, dardejante, sob o céu carmim? 

Um ou mais? Se os tiveres, será melhor! E parte 
Prà guerra e briga a torto e a direito, sem 
Escolher ninguém e enverga a indolente máscara 
Do ódio insaciado, mas farto também… 

Não devemos ser tansos neste alegre mundo 
Onde a felicidade não é saborosa 
Se nela não vibrar algo perverso, imundo, 
E quem não quer ser tanso tem de ser maldoso. 

- Sabedoria humana, eu ligo a outras coisas 
E, de entre esse passado de que descrevias 
O tédio, em conselhos ainda mais penosos, 
Só consigo lembrar-me, hoje, do mal que fiz. 

Em todos os estranhos passos desta vida, 
Dos lugares e dos tempos, ou também dos meus 
«Azares», de mim, dos outros, da estrada seguida, 
Sempre retive apenas a graça de Deus. 

Se me sinto punido, é porque o devo ser. 
O homem e a mulher não estão aqui em vão. 
Mas espero que um dia possa conhecer 
O perdão e a paz que aguardam os cristãos. 

É bom não sermos tansos neste mundo efémero, 
Mas pra que o não sejamos na eternidade, 
O que é mais necessário que reine e governe 
Nunca é a maldade, mas sim a bondade."

Paul Verlaine





 "O perdão é um catalisador que cria a ambiência necessária para uma nova partida, para um reinício."

Martin Luther King 















 | 2023, Eureka, Lisandro Alonso | 



 historicidade e misticismo dos povos indígenas ameríndios olhado sobre o estigma das suas comunidades; a narrativa tripartida serve os seus propósitos criando as pontes necessárias ao objecto analisado; soberbo. 

 

“Qual é a sua estrada, homem? - a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada… Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?” 

Jack Kerouac 
















| 2023, All of us strangers, Andrew Haigh | 

       (a morte fica-vos tão bem)





"POÉTICA 

De manhã escureço 
De dia tardo 
De tarde anoiteço 
De noite ardo. 

 A oeste a morte 
Contra quem vivo 
Do sul cativo 
O este é meu norte. 

Outros que contem 
Passo por passo: 
Eu morro ontem 

Nasço amanhã 
Ando onde há espaço: 
– Meu tempo é quando." 

 Vinicius de Moraes 

















 | 2022, Unrueh, Cyril Schäublin | 

 os relógios (o tempo) da anarquia 





 «O mundo só será salvo, se o puder ser, por insubmissos. Sem eles, que seria feito da nossa civilização, da nossa cultura, daquilo que amávamos e que dava uma justificação secreta à nossa presença neste mundo. Esses insubmissos são «o sal da terra» e os responsáveis de Deus.» 

André Gide 




 «Não são as sociedades secretas, nem sequer as organizações revolucionárias, que acabam com os governos. A sua função, a sua missão histórica, é preparar os espíritos para a revolução. E quando os espíritos estão preparados - com a ajuda das circunstâncias externas -, o último impulso vem, não do grupo iniciador, mas da massa que está fora das ramificações da sociedade.» 

 'Paroles d'un révolté', Piotr Kropotkin 



















 | 2021, Una escuela en Cerro Hueso, Betania Cappato | 



 numa coisa semi-autobiográfica, o intimismo e o estilo semi-documental (a atenção ao detalhe, o olhar os siêncios, etc) resultam na análise de que a comunidade é determinante para a reabilitação quer da doença (autismo) quer da frustação paternal; a sensibilidade e a dedicação (e a paciência) como factores decisivos; muito interessante. 





"Ter paciência é difícil, mas o resultado é gratificante." 

Jean-Jacques Rousseau 



"Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência." 

Santo Agostinho 





















| 2024, No other land [Yuval Abraham, Basel Adra, Hamdan Ballal, Rachel Szor] | 


no other land devia ser filme obrigatório em todas as escolas, em todos os institutos, em todos os lugares onde se preze a humanidade e o direito à vida, à dignidade e a todos os direitos alienáveis do ser humano; num tempo que se intitula civilizacional, que se orgulha dos avanços tecnológicos e científicos, etc, é completamente absurdo e incompreensível que se permita (e se financie e se defenda e se propagandeie como o oposto daquilo que é) um regime colonial, despótico e desumano como o regime sionista; ainda bem que o cinema tem (ainda) o poder de expor a(s) verdade(s) 




 "Quando a injustiça se torna a lei, a resistência passa a ser um dever." 

Thomas Jefferson 










"MORCEGOS 

 Morcegos na minha janela 
Sugam as minhas palavras 
Morcegos à entrada da minha casa 
Atrás dos jornais, nos cantos 
Seguem os meus passos, 
Observando todos os movimentos da minha cabeça. 

Por trás da cadeira, os morcegos observam-me 
Seguem-me nas ruas 
Espreitam sobre os meus livros 
Ou sobre as pernas das raparigas... 
Vigiam-me, vigiam-me sempre.
 
Há morcegos na varanda dos meus vizinhos 
E aparelhos escondidos nas paredes. 
Agora os morcegos 
Estão à beira do suicídio.
 
Estou escavando uma estrada para a luz do dia." 

Samih Al-Qasim 
















 | 2023, Slimane, Carlos Pereira | 



 slimane não só consegue evitar o registo panfletario como embarca numa viagem formalista e simbólica naquilo que me parece um futuro distante (ou não) e distópico; no âmago dessa distopia reside a desolação da marginalização, o luar e a noite como refúgios e a consciencialização do poder interior do indivíduo; muito bom.




"RETRATO

Eu não tinha este rosto de hoje, 
Assim calmo, assim triste, assim magro, 
Nem estes olhos tão vazios, 
Nem o lábio amargo. 

Eu não tinha estas mãos sem força, 
Tão paradas e frias e mortas; 
Eu não tinha este coração 
Que nem se mostra. 

Eu não dei por esta mudança, 
Tão simples, tão certa, tão fácil: 
- Em que espelho ficou perdida 
a minha face?" 

Cecília Meireles

Sem comentários: